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1. Lolita - Textos publicados na Folha

Desastres da perfeição: Nabokov é um grande poeta da interrupção e do erro

(publicado em 25/02/1996)

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha Podemos começar com dois exemplos. O primeiro vem de uma passagem na qual o narrador descreve aquele estado da consciência que, no último momento, por qualquer motivo (um ruído, uma luz, o corpo ao lado), não consegue adormecer. "As pequenas larvas desajeitadas do absurdo, que precedem as desinibidas borboletas dos sonhos vêem-se desastrosamente expostas a uma luz onde não são capazes de sobreviver, e é preciso começar de novo, relaxar a mente até que possa se desemaranhar."

É uma sentença característica de Nabokov. Ela nos convoca, logo de início, a dar o salto e acompanhar as imagens num universo paralelo, de metáforas raras. São um desafio à inteligência do leitor, como do autor também: parte do prazer da leitura é acompanhar a frase, para ver como pode acabar. A escrita, para Nabokov, é sempre uma performance; cada frase, um pequeno espetáculo. E cada metáfora, cada figura é uma outra forma de inteligência, num espaço plenamente literário.

O segundo exemplo é descritivo: "A terceira fotografia mostra uma fila de 14 meninas. Jane é a quarta, a contar da esquerda (está designada por uma cruz em cima da cabeça, sem a qual seria difícil reconhecê-la). Trata-se da cena final do Conde de Gleichen, de Yorick" --ao que se segue uma narrativa em três parágrafos da ação (inventada) da peça (fictícia) do autor (espúrio).

Escolhi o exemplo, em parte, porque a capacidade de descrever tudo, de perceber e recolher o significado de cada detalhe, é tão típica de Nabokov quanto a exuberância das metáforas. Em parte, também, porque a fabulação --quase o oposto da percepção-- não é menos característica. Labirintos, círculos, espelhos, xadrez: estes são alguns dos instrumentos mais repetidos na ficção do autor, que de certo modo é sempre a ficção da consciência fazendo um grande esforço, insuficiente, para não se perder de si.

Mas neste ponto, deve-se fazer uma ressalva. Porque essas frases são mesmo características, mas nenhuma é de Nabokov. A primeira vem de um conto de John Updike ("Falling Asleep Up North") e a outra do romance "A Vida - Modo de Usar", de Georges Perec. Updike, sem dúvida, está homenageando o Nabokov estudioso de borboletas, professor de lepidopterologia em Harvard. E Perec tem uma dívida confessa com o autor de "Lolita". Outros exemplos, tão ou mais explícitos, não seriam difíceis de achar --de Martin Amis a Nicholson Baker, de Kingsley Amis a Julio Cortázar, Thomas Pynchon e até Luiz Fernando Veríssimo-- e serviriam igualmente para mostrar como Nabokov, mais que um autor, é uma das vozes ressoando pela literatura moderna. Para nós, hoje, ele não está apenas em seus escritos, e na nossa memória, mas também, fantasmaticamente, na obra de outros tantos "pequenos Nabokovs", que ele perseguia como um ideal de leitor.

Exilado com a família durante a revolução russa, Nabokov foi aluno da universidade em Cambridge; viveu depois em Berlim e na França, e só escreveu seu primeiro romance em inglês em 1939, aos 40 anos, na véspera de sua mudança para os Estados Unidos. Como autor e/ou tradutor de seus próprios livros, ele é tido, por consenso, como um dos maiores estilistas em russo e inglês. "Conrad" --dizia ele, comparando-se a outro repatriado das letras-- "sabia melhor do que eu como usar o inglês pré-fabricado; mas eu conheço melhor o outro tipo". O outro tipo: um inglês inventado, mais inglês que o dos ingleses, e trazendo consigo a sombra de uma outra língua, a memória de um russo também imaginário, país natal de Nabokov.

Para qualquer estrangeiro, como todos nós ao chegar nesse paraíso, o prazer de ler Nabokov tem seus requintes de masoquismo: como o de um pianista amador, assistindo ao vivo algum virtuose, e consciente de que jamais chegará a tocar assim. Há traços facilmente imitáveis, que se reconhecem logo, na flor da pele da prosa de Nabokov: aliterações e rimas, vocabulário exótico, simetrias e suspensões. Há outros, ainda, mais subjetivos: a perversidade, a arrogância, a mistura de lirismo e frivolidade, o pedantismo, o sarcasmo protegido pela armadura de uma linguagem perfeita. Mas este é um Nabokov caricaturado por ele mesmo, um grande maneirista, mais do que um grande autor.

Este é o Nabokov que reaparece com maior frequência na literatura dos outros, o que é compreensível, porque um cacoete, ou um golpe de mágica é sempre mais fácil de aprender do que uma personalidade. Na nota introdutória a "As Irmãs Vane", a última e melhor história em "Perfeição", o autor nos informa que um truque como o do acróstico --o surgimento de duas mulheres mortas, que "aparecem" ao se juntar a primeira letra de cada palavra do último parágrafo-- "só pode ser tentado uma vez a cada mil anos de ficção". Mas, depois deste exemplo, ele está ao alcance de qualquer um: artistas como Updike e Perec, ou outros muito menores, qualquer autor de resenha, ou de orelha de livro.

Imitar Nabokov é impossível; mas não é tão difícil remanejar os seus artifícios. Automaticamente retoma temas. Histrionicamente urde realidades. Nabokovianamente encena sonhos tornados reais, ou vigorosamente sacrificados: quilomemórias implodidas. Num lindo livro recém-publicado, "The Magician's Doubts - Nabokov and the Risks of Fiction" (Princeton, 1995), Michael Wood define a diferença entre "estilo" e "assinatura". Assinatura é o hábito de um escritor, que o identifica de pronto, como a calculada exuberância e o diabolismo de Nabokov. Já o estilo é algo de mais secreto, a maneira como o autor se dá para as coisas, sua relação construída com o mundo. A assinatura, para quem tem, é fácil, uma resposta pronta às dificuldades. O estilo é difícil; mas sem ele, no instante crítico, ninguém continua escrevendo.

O estilo em Nabokov fica ofuscado pelo brilho da assinatura. Mesmo seus leitores mais devotados perdem a paciência, às vezes, com esse trapezista das palavras. Há alguma coisa de juvenil, de humor de aluno inglês, nas suas crueldades gratuitas e seu narcisismo. Mas este, me parece, é um lado menor. Para falar numa linguagem abominada por ele, é uma "defesa" contra experiências imensamente difíceis de tratar e tocantemente reencenadas na sua literatura.

Com 23 anos Nabokov já perdera muito do que se pode perder na vida: o país, a fortuna, a família (dispersa no exílio) e o pai (assassinado por engano, num comício). Sobrevivendo como professor de tênis, em Berlim, devotado à eterna Véra das dedicatórias, e em menor escala ao xadrez e às borboletas, Nabokov começa a escrever contos para jornais de emigrados. Dois dos primeiros, de 1924, estão nesta antologia, acompanhados de outros dez do período Paris-Berlim e de um 13º, para completar uma dúzia nabokoviana. São todos contos de desastre, mas não de desespero, porque Nabokov, a despeito de tudo, é um artista da alegria.

Nem a "destruição" (no título original da coletânea, "Tyrants Destroyed", em tradução de D. Nabokov, revista pelo pai), nem a irônica "perfeição" do título brasileiro conseguem sintetizar o afeto misto que perpassa o livro, em todas essas histórias de miseráveis, atores, poetas, professores, pequenos e grandes burgueses e nobres russos perdidos no exílio. A destruição da perfeição parece, às vezes, o tema de Nabokov, memorialista da infância perdida, do instante único e das destruições do acaso. Ele é um grande poeta da interrupção e do erro. Que a forma, então, seja um milagre de controle torna a equação mais complexa e paradoxal. É o mesmo artista absoluto da palavra quem pode falar desse "instrumento tosco que é a linguagem humana".

O livro é irregular, mas contém ao menos duas obras-primas: "Uma Questão de Sorte" (1924), sobre um garçom russo, cocainômano de saudade da mulher, no expresso Berlim-Paris, e viajando, sem saber, no mesmo trem que ela, num ritmo torturante de quase-encontros e perspectivas trocadas; e "As Irmãs Vane", a história do acróstico, rejeitada pela revista "The New Yorker" em 1959, e que faz pensar no que Nabokov não poderia, a esta altura, ter feito do conto como um gênero novo. Quem escreve, a rigor, são dois fantasmas, mulheres mortas que acompanham o narrador sem que este jamais se dê conta, mas que surgem aos nossos olhos (não nos dele) no arrepiante último parágrafo, uma prosa que não é mais deste mundo, como as sombras de pontas de gelo e do parquímetro, na estranha e assombrada descrição inicial. (Diga-se de passagem que o tradutor Jorio Dauster foi capaz de recriar, além do acróstico, alguma coisa do efeito original.)

Há mais aqui do que um simples jogo espiritista. "Nós não pensamos com palavras, mas sombras de palavras", dizia Nabokov, referindo-se em sentido especial a si mesmo, como um fantasma por trás da pessoa inventada escrevendo em inglês. Mas suponho que as sombras não sejam só essas. Quem pode dizer o que está por trás de uma simples palavra, para você, para mim, para Nabokov? Quem pode medir o que o instrumento tosco da linguagem não deixa de dizer?

Nabokov não tem, acredito, nenhuma ilusão sobre a capacidade da literatura de recuperar nossas perdas. A justiça da forma, nessas histórias, está sempre negada pela desordem humana subjacente. Mas ele se torna um autor quando percebe que a perda é precisamente sua fonte de significado: "Eu o estou vendo pela última vez. Na verdade, é o que penso sempre sobre tudo...". Este é um Nabokov muito diferente do mandarim autoconfiante, do autor das introduções, do narrador gelado, que talvez não seja mais, afinal, do que uma personagem construída para rebater as raivas da história e a piedade, ou pieguice dos outros. O verdadeiro narrador quase não se deixa ver: é como uma sombra, contando outra história, que só pode ser contada assim.

Nosso autor ganha, com isto, outra dimensão. O "incomparável destilador do inefável", como escreveu Updike, também é um dos cronistas mais delicados, se bem que oblíquo, de calamidades e crueldades concretas demais para serem ditas. "A história dos homens é a história da dor", pensa consigo o professor exilado Pnin, no meu predileto dos romances de Nabokov. Entre a omissão e a lembrança das perdas, o ficcionista encontra seus momentos, colecionados com toda a paixão de um caçador de borboletas. Seu duplo habita outras memórias e outra língua, multiplicadas pelo fantasma de cada leitor, quando vem assombrar a felicidade da prosa de Nabokov.

Arthur Nestrovski é professor na pós-graduação em Comunicação e Semiótica e coordenador do Centro de Estudos da Cultura da Pontifícia Universidade Católica/SP; seu novo livro, "Ironias da Modernidade", será lançado em maio (Ática)

"Perfeição e Outros Contos", de Vladimir Nabokov. Tradução de Jorio Dauster. Companhia das Letras (r. Tupi, 522, SP, CEP 01233-000, tel. 011/826-1822). 200 págs. Preço não definido

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