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Nabokov disseca crueldade em "Riso no Escuro"

(publicado em 14/11/1998)

JOSÉ GERALDO COUTO
articulista da Folha

"Riso no Escuro'' é um título perfeito para o esplêndido e terrível romance de Vladimir Nabokov que acaba de sair no Brasil.

Resume não só o conteúdo do livro, mas o espírito de toda a literatura de seu autor, que se comprazia em fazer-nos rir das fraquezas mais íntimas do ser humano, aquelas que só se revelam na "câmara escura'' (para citar outro livro seu) da alma de cada um.

No primeiro parágrafo do livro, Nabokov anuncia a história que vai contar: "Era uma vez um homem que se chamava Albinus e vivia em Berlim. Era rico, respeitável e feliz; certo dia abandonou a mulher por causa de uma jovem amante; amou, não foi amado; e sua vida acabou em desastre''.

É uma síntese ao mesmo tempo precisa e enganosa, pois aquilo que poderia parecer a enésima história de um infeliz amor extraconjugal acabará se mostrando um estudo fino e multifacetado da capacidade humana de produzir o mal.

O tal Albinus é um crítico de arte aburguesado, casado e pai de uma menina de oito anos. Um belo dia, apaixona-se por Margot, jovem lanterninha de um cinema, e sua vida entra em parafuso.

O drama do intelectual maduro que tem a cabeça virada por uma garota frívola e sensual já havia sido tratado na literatura, especialmente no romance "Professor Unrath'' (1905), de Heinrich Mann, que no cinema viraria "O Anjo Azul''. O próprio Nabokov voltaria ao tema no célebre "Lolita'' (1955).

Algumas características distinguem "Riso no Escuro'' no interior desse filão e o tornam um dos livros mais interessantes e atuais de Nabokov, 60 anos depois de ter sido escrito.

Em primeiro lugar, a forma. Duas coisas chamam imediatamente a atenção no artesanato literário do autor: a liberdade na manipulação do ponto de vista e o controle absoluto da velocidade narrativa.

O narrador, em terceira pessoa, é onisciente, mas só nos revela, de cada personagem, aquilo que Nabokov quer que ele nos revele.

Cada cena é decomposta _ou melhor, desdobrada_ a partir dos vários pontos de vista envolvidos, quase como numa decupagem cinematográfica, com a diferença de que o narrador nabokoviano penetra, quando lhe interessa, na consciência dos personagens.

Ritmo e perspectiva

Analogamente a essa extrema mobilidade do foco narrativo, o tempo também é elástico nas mãos de Nabokov: assim como uma década pode ser comprimida em poucas linhas, eventos de poucos minutos podem estender-se por páginas inteiras.

Outro traço marcante de "Riso no Escuro'' é sua ambientação em Berlim, cidade em que Nabokov morou entre 1923 e 1937.

Não que haja no livro uma descrição física da cidade, nem mesmo referências a seus pontos característicos.

Com a mesma desenvoltura com que molda a velocidade e o foco da narração, Nabokov usa a geografia e a história como matérias-primas a serem trabalhadas a serviço do efeito literário.

O que fica no livro, no que se refere ao ambiente, é um certo espírito do tempo, uma atmosfera nebulosa de umidade e torpor. Talvez não fosse assim a Berlim nazista dos anos 30, mas é assim a Berlim de Nabokov.

Albinus, o personagem, pertence a essa cidade, assim como a cidade é, em grande medida, a projeção de seu estado de espírito.

A intenção de Nabokov parece estar sempre além dos fatos, da psicologia dos personagens, do ambiente geográfico e histórico. Seu escopo é, talvez, tão ambicioso quanto o de Flaubert: traduzir em literatura as idéias e sensações mais abstratas.

Em "Riso no Escuro'', principalmente depois da entrada em cena do amoral Axel Rex, amante de Margot, o objetivo parece ser o de compor uma anatomia da crueldade e, contraposta a ela, da ingenuidade humana.

Livro: Riso no Escuro
Autor: Vladimir Nabokov
Tradução: Jorio Dauster
Editora: Companhia das Letras

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Lançado: 21/12


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