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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

A maldição utópica da torre de Babel

(publicado em 14/05/1995)

MANUEL DA COSTA PINTO
Da Redação

É impossível não perceber o impacto da atividade artística sobre a reflexão crítica de Eco.

Autor de austeros tratados sobre semiótica, como "Obra Aberta" (1962) e "A Estrutura Ausente" (1968), ele só estreou como romancista em 1981, com o "O Nome da Rosa", seguido de "O Pêndulo Foucault" (1988).

Desde então, pode-se perceber uma relação especular entre seu ensaísmo e seus romances.

É nítido, por exemplo, o diálogo temático que se estabelece entre os dois últimos livros de Eco publicados no Brasil: os ensaios de "Seis Passeios pelos Bosques da Ficção" e o romance "A Ilha do Dia Anterior", de 1994.

Em ambos, ele investiga as condições de decodificação de um enunciado por seu receptor --ora no registro da reconstrução fictícia de uma aventura que se passa no século 17, ora no registro da desconstrução de narrativas de escritores como Poe ou Nerval.

"Seis Passeios...", porém, são apontamentos de aulas (as Norton Lectures) que Eco proferiu em Harvard (EUA) em 1992-93.

Já "La Ricerca della Lingua Perfetta" abandona o domínio da análise discursiva, transformando-se num passeio pelas formas mais esotéricas, fantasiosas ou pretensamente científicas pelas quais o Ocidente buscou uma linguagem universal.

Desfilam, por esse extenso tratado, temas como a "pansemiótica cabalística", o dialeto ideal de Dante, o sonho iluminista de uma língua filosófica pura e as línguas auxiliares --como o esperanto.

Embora mantendo as premissas teóricas de seus ensaios anteriores (a semiótica de Peirce e de Hjelmslev), Eco mergulha aqui no significado cultural da existência das diferentes utopias linguísticas que pretenderam ultrapassar as "deficiências" das línguas naturais.

Seu objeto não é a linguagem da ficção, mas a ficção da linguagem. Através daquelas utopias, ele descobre na metalinguagem um processo criativo análogo ao da narrativa ficcional, com a invenção de um domínio de objetos instituídos no interior do próprio discurso.

Historicamente, Eco vê uma coincidência temporal entre os primeiros projetos de uma linguagem perfeita e o nascimento da Europa como fruto da fragmentação do Império Romano e da vulgarização do latim numa miríade de dialetos medievais.

"Uma cultura que usa uma língua falada por todos não percebe o escândalo da pluralidade das línguas" --escreve Eco para explicar a crença dos gregos e dos romanos na perfeição de seus idiomas.

Quando, porém, o continente se divide num mosaico de línguas, é como se a maldição da torre de Babel tivesse encontrado o terreno fértil para disseminar a confusio linguarum latente durante a era das civilizações pagãs.

A um só tempo, a Europa descobre, na superfície da história, a matriz bíblica de sua cultura e a culpa que a fundamenta --o pecado original de Adão e Eva e a presunção babélica, punida com a dispersão linguística.

Se a diversidade de idiomas confirma a veracidade da maldição babélica, justifica também o retorno purificador à língua de Adão.

Até o século 6º, diz Eco, não se conhecem exemplos de uma iconografia da torre de Babel. A partir do século 10, porém, acontece um verdadeiro dilúvio de representações.

Paralelamente, a Cabala medieval tenta descrever o alfabeto através do qual Deus criou o mundo, enquanto, séculos mais tarde, um filósofo como Leibniz construía uma gramática ideal, baseada na racionalidade matemática, que permitisse construir enunciados sempre verdadeiros.

O afresco pintado por Eco acaba revelando, assim, o caráter sublime da maldição babélica. Afinal, o fracasso dessas utopias reafirma nossa culpa pela diversidade linguística, mas é graças a ela que podemos descobrir a multiplicidade da própria realidade.

No fundo, Eco acaba reafirmando o princípio nominalista de que é a linguagem que cria a realidade e o processo descrito por Peirce como "semiose ilimitada": se o conteúdo de uma mensagem é linguístico, só se compreende um enunciado através de outro, numa cadeia ilimitada de decodificações.

"La Ricerca della Lingua Perfetta" transforma-se, assim, numa espécie de ética da palavra. Citando Gérard Genette, Eco conclui: "as línguas naturais são perfeitas justamente porque são plurais, porque a verdade é múltipla e a mentira consiste em mantê-la única e definitiva".

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