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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

A Internet é a revolução do século

(publicado em 10/01/2000)

do "Libération"

Autor do best-seller "O Nome da Rosa", que virou filme em 1986, e de estudos sobre literatura, semiologia e assuntos que abrangem cultura e comunicação social, o escritor e ensaísta italiano Umberto Eco é uma referência no assunto "novas mídias".

Eco afirma que a "Internet é a verdadeira revolução do século". Ele acaba de lançar o "Manual Interativo dos Saberes", publicação da Academia Universal de Cultura, da França, que pode ser visto na Internet em www.academie-universelle.asso.fr/manuel/manuelf.htm



Pergunta - Qual a opinião do senhor sobre as novas mídias, como a Internet?

Umberto Eco - O computador e a Internet são a verdadeira revolução do século. Como a imprensa de tipos móveis de Gutenberg, eles podem modificar nossa maneira de pensar e aprender. A criação de Gutenberg produziu a livre interpretação da Bíblia, arruinou os calígrafos e causou a aparição de uma nova pedagogia, fundada sobre os livros e as imagens. Antes da invenção da prensa de Gutenberg, uma criança não podia ter manuscritos. Hoje, com a Internet, podemos saber coisas que nossos ancestrais levaram uma vida para aprender.

Pergunta - Mas o saber que encontramos na Internet está desordenado. Essa profusão não é uma fonte de confusão?

Eco - A Internet é um equivalente virtual do universo. Como nele, onde há florestas e cidades, os Estados Unidos e Burkina Fasso, na Internet você encontra de tudo: sites nazistas, os que querem vender não importa o quê, a pornografia e até mesmo os textos dos concílios dos patriarcas da Igreja!

Pode-se encontrar também a "Crítica da Razão Pura", de Kant, em inglês --uma edição do século 19, isenta do pagamento de direitos autorais. O problema da Internet é a filtragem. Eu sei como distinguir um site sério de um criado por um maluco, mas, para os estudantes jovens, isso é perigoso.

Pergunta - Faltam na Internet mediadores para avaliar e fazer uma triagem do conteúdo disponível on line?

Eco - Até agora, as igrejas, instituições científicas e outras tinham por função filtrar e reorganizar o conhecimento e a informação. Elas restringiam minha liberdade intelectual, mas garantiam a filtragem essencial à comunidade. Sem filtragem, corremos o risco da anarquia no saber.

Pergunta - O saber comunitário pode desaparecer em favor de um saber parcelado?

Eco - Exatamente. Trata-se de uma nova era, onde cada um cria sua religião, sua filtragem pessoal. E, além disso, cada site se torna o filtro de sua especialidade. No site do manual interativo, estabelecemos links com documentos da Unesco, e não com grupos anti-semitas. Isso já é um filtro.

No futuro, instituições como a Academia de Ciências poderão propor um boletim dos sites fantasiosos, e cada pessoa terá de decidir por conta própria em que filtros confiar. Eu insisto em preservar a função dos filtros externos às redes, quer tratem de escolas, de livros ou de jornais.

Não acredito em um mundo em que não façamos nada além de navegar na Internet, como não seria possível crer em um mundo no qual a gente só ande de carro, sem caminhar, visitar as lojas, tomar um trem ou um avião.

Pergunta - Qual é a sua opinião sobre essas mudanças na transmissão do conhecimento?

Eco - Não sou nem otimista nem pessimista. É preciso que estejamos preparados para enfrentá-las. Não sou hegeliano, não acredito que o progresso seja sempre positivo. Sou realista, no sentido de que nenhum chefe de Estado ou organização pode abolir a Internet, mas também é impossível impô-la. A Internet acarreta uma desnacionalização do saber. Pode-se pensar que os Estados nacionais nascidos no século passado desaparecerão, substituídos por elos virtuais entre cidades com interesses comuns.

Na França, teme-se o vento da globalização que imporá o inglês. Talvez o modelo do novo milênio seja São Paulo. Nascido na Pérsia, filho de uma família judia que falava grego, ele lia a Torá em hebraico e viveu em Jerusalém, onde o idioma falado era o aramaico. Se lhe pedissem seu passaporte, seria romano. Um exemplo interessante de globalização: o Império Romano não impôs uma língua única em todo o seu território.

Pergunta - Todos colherão os frutos da mestiçagem cultural?

Eco - Existe o risco de um universo orwelliano, fundado sobre três classes, que não são mais marxistas: a classe dos que interagem ativamente com a rede, os que recebem e emitem mensagens, a pequena burguesia dos utilizadores passivos (o funcionário de uma linha aérea que usa a tela para descobrir os horários dos vôos), e a classe proletária, que só verá televisão. E como o filho de uma família pobre será capaz de aprender coisas muito rapidamente à moda da Internet, a divisão de classes deixará de se basear na riqueza. Pode ser que Rockefeller se torne pobre, enquanto Bezos, que criou a Amazon (a primeira livraria virtual), já se tornou um dos dominadores na classe dirigente. Mesmo Bill Gates terá se tornado, aos 50 anos de idade, um empregado.

Pergunta - O que se pode fazer para evitar a "tecno-exclusão"?

Eco - A solução é externa à Internet: educação. Para permitir que todas as crianças atinjam essa aristocracia de massa, na escola é preciso aprender a programar, e não simplesmente a utilizar software. Comecei a trabalhar com computadores em 1983. Na época, era preciso programar, e portanto pensar a respeito da lógica das máquinas.

Meus alunos de então são muito capazes hoje. Os que vieram mais tarde, com o Mac e o "Windows", e não fazem mais do que responder a perguntas ou clicar sobre ícones, estão perdidos. Se ensinarmos uma criança a programar em "Basic" ou "Pascal" (linguagens de informática), o enorme exercício mental envolvido a tornará senhora dos computadores.

Pergunta - Ensinar as crianças a programar não é ainda mais utópico do que ensinar diversidade cultural por meio de um manual dos saberes?

Eco - Não, é a coisa mais fácil do mundo. Essa geração já nasceu fascinada por computadores. Lembro de quando comprei uma máquina para a minha casa e mostrei ao meu filho. Quando o computador enguiçou, uma semana depois, meu filho fez um "plac plac" lá e o consertou.

Tradução de Paulo Migliacci

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