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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

Em quarto romance, Eco relata a história que poderia ter sido

(publicado em 15/09/2001)

MARCELO PEN
free-lance para a Folha

Vinte anos depois de lançar "O Nome da Rosa", o semiólogo e escritor Umberto Eco voltou à Idade Média com seu quarto romance, "Baudolino". Trata-se de um relato transmitido ao historiador bizantino Nicetas Coniate, em meio ao ataque dos cruzados a Constantinopla, por um personagem que se define como mentiroso.

Mentiroso ou visionário? Logo no início, Baudolino entrega a Nicetas um pergaminho que escrevera, em dialeto arcaico, quando tinha 14 anos: "Tenho o dom das línguas como os apóstolos et o dom de a Visão como as madalenas porque caminho pella silva et vejo santo Baudolino montado em hum Liãocorno com seu Chifre retorcido no lugar em que os chavalos tem aquillo que pera nós é o Nariz".

De sonhar com são Baudolino montado num unicórnio, o herói passa a armar outros artifícios após ser adotado por Frederico, o Barba Ruiva, imperador do Sacro Império Romano Germânico de 1152 a 1190. Suas mentiras, porém, têm o estranho dom de se tornarem realidade.

Os logros de Baudolino concorrem para que os doutores do "studium" de Bolonha ganhem independência diante do papa e para que Carlos Magno seja canonizado, por exemplo. Por meio de Baudolino, Eco reescreve a história não como ela foi, mas como poderia ter sido.

Baudolino também contribui para a disseminação de lendas famosas, como a do Santo Graal e a do reino mítico do preste, ou padre, João. Este último é um rei cristão que teria governado os confins orientais do mundo, nas vizinhanças do paraíso terrestre.

Induzidos por uma substância alucinógena, Baudolino e alguns amigos concebem uma carta escrita pelo preste João e partem à procura das terras míticas.

Com seu inegável talento de fabulador e sua reconhecida erudição, Eco mistura diversos gêneros e referências: das novelas de cavalaria às epístolas amorosas de Abelardo e Heloísa, do romance policial aos relatos de viagens de aventureiros, transitando com desenvoltura do lírico ao picaresco, do épico ao mítico.

A busca pela origem reflete característica bastante pessoal deste romance.

Baudolino é natural da região da planície do Pó, onde, "quando não faz tanto calor a ponto de cozinhar os ovos colocados sobre uma pedra, a neblina é densa; quando não há neblina, neva; quando não neva, cai granizo e, quando não cai granizo, faz frio do mesmo jeito".

Foi nessa região que se ergueu a cidade de Alexandria, onde Eco nasceu. Baudolino exerce papel importante tanto em sua construção quanto na posterior vitória da urbe contra as forças imperiais.

A aventura desse herói autóctone fornece, assim, um comentário todo especial sobre a gênese civilizatória da área, fincando suas raízes na história e relacionando-a às lendas européias.

Embora alicerçada no poder religioso, por ter sido nomeada em honra ao papa Alexandre 3º, a fundação de Alexandria, no texto de Eco, também está investida de foro imperial, pelos laços de adoção que unem Frederico a Baudolino, e, principalmente, místico, pelo modo como o herói realimenta a lenda do Graal.

Outros personagens

Além de Frederico e Nicetas, há outros personagens históricos no livro.

Um dos parceiros de viagem do herói é (Robert de) Boron, divulgador dos feitos dos cavaleiros da Távola Redonda.

Outro é Kyot, citado pelo poeta alemão Wolfram von Eschenbach como sua fonte para a lenda de Parsifal. O curioso é que Eco utiliza o "Parsifal" de Wolfram em sua pesquisa sobre o Graal.

Ou seja, Baudolino, por meio de suas invenções, legitima o Graal diante de Kyot, cuja inspiração move a pena de Wolfram, que, por sua vez, contribui para a fabulação de Eco, que cria Baudolino, o mentiroso.

Como o demiurgo de Platão, o ficcionista está destinado a trabalhar com matéria imperfeita, de segunda mão, fruto da imitação, do simulacro ou da mentira. Mas também pode produzir utopias e contribuir para mudar o destino da humanidade.

Eco definiu "Baudolino" como uma "apologia da utopia, daquelas invenções que movem o mundo". E acrescentou: "O que dizer de Eldorado? Um continente pode ser conquistado na esteira de um mito". Verdade? Cabe ao leitor decidir.

Baudolino
Ótimo
Autor: Umberto Eco
Tradução: Marco Lucchesi
Editora: Record
Quanto: R$ 35 (460 págs.)

Trecho

"Agarrei uma daquelas vestes corroídas, puxando-a com força. Um cadáver caiu exatamente entre mim e o Poeta, erguendo uma nuvem de poeira e de ínfimos pedaços de roupa que se dissolveu ao cair no chão. A cabeça (...) desprendera-se do tronco e rolara até os pés de meu perseguidor, mostrando-lhe o sorriso atroz."
de "Baudolino"

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