Folha Online
Biblioteca Folha
2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

Mídia foi o melhor aliado de Bin Laden

(publicado em 02/12/2001)

UMBERTO ECO

Percorre o mundo ocidental um debate que não diz respeito exatamente à censura --digamos que seja sobre a "prudência". De que maneira, ao se divulgar notícias, é possível promover campanhas de propaganda política de terroristas ou até mesmo contribuir para a difusão de mensagens em código transmitidas por eles?

O Pentágono pede a jornais e a redes de televisão que tenham cautela, e o pedido faz sentido, porque nenhum Exército que se encontra em guerra fica satisfeito quando seus planos são revelados ou os apelos de seus inimigos são difundidos.

A mídia, já acostumada à liberdade total, não acha fácil adaptar-se ao clima de guerra. Houve um tempo em que quem revelasse informação que pudesse prejudicar a segurança nacional era fuzilado.

É difícil desfazer esse nó porque, na sociedade da comunicação --e, mais ainda, nestes dias de internet--, a discrição já deixou de existir. Mesmo assim, o problema é ainda maior.

Cada ato de terrorismo (e essa é uma história já conhecida) tem como objetivo divulgar uma mensagem. Mensagem que, mais especificamente, espalha o terror, ou, no mínimo, a intranquilidade ou a desestabilização. Sempre foi assim, mesmo no caso de terroristas que hoje definiríamos como "amadores" --os de épocas passadas, que se limitavam a matar um indivíduo ou colocar uma bomba numa esquina.

A mensagem do terrorista espalha o terror mesmo que o impacto seja mínimo ou que a vítima não seja muito conhecida. O efeito do terrorismo é maior se a vítima é famosa ou se simboliza algo.

Um exemplo é dado pela história italiana: o grupo terrorista de esquerda Brigadas Vermelhas deu um grande salto à frente na consciência pública quando, em vez de matar jornalistas ou assessores políticos (ou seja, pessoas desconhecidas do grande público), passou para o sequestro, a detenção e depois o assassinato do líder partidário e antes primeiro-ministro Aldo Moro, em 1978.

Agora, o que Osama bin Laden esperava realizar quando atacou as torres do World Trade Center? Criar "o maior espetáculo da Terra" --algo que nem sequer os criadores de filmes de catástrofe teriam imaginado-- e deixar a marca visível de uma agressão contra os símbolos do poderio ocidental. Ele também esperava mostrar que é possível atingir as sedes do poder norte-americano.

Bin Laden não visava acumular um número xis de vítimas (que, para as finalidades dele, não passavam de um benefício adicional): desde que as torres fossem atingidas (e, se caíssem, melhor ainda), ele teria ficado satisfeito com apenas metade das vítimas que acabou fazendo. Ele não estava travando uma guerra, na qual o número de inimigos eliminados conta para alguma coisa --estava lançando uma mensagem terrorista e tudo o que contava era a imagem criada.

Assim, dado que o objetivo de Bin Laden era criar uma impressão na opinião pública global com essa imagem, o que aconteceu? Os meios de comunicação de massa foram obrigados a difundir as notícias, e isso é óbvio. Do mesmo modo, foram obrigados a divulgar as notícias sobre o que aconteceu após os ataques --os trabalhos de resgate, os trabalhos de recuperação, o horizonte mutilado de Manhattan.

Mas será que a mídia era obrigada a repetir esses relatos diariamente e por mais de um mês a fio, com fotos, imagens em vídeo e os intermináveis relatos de testemunhas oculares, todos fazendo as pessoas reviverem e relembrarem os ataques? É uma pergunta muito difícil de responder.

Os jornais aumentaram suas vendas com a impressão daquelas imagens; as emissoras de TV aumentaram sua audiência ao reprisar aquelas imagens; o próprio público pedia para rever aquelas cenas terríveis, para cultivar sua indignação ou, às vezes, por algum sadismo inconsciente.

Talvez fosse impossível fazer outra coisa, e as emoções que marcaram os dias que se seguiram ao 11 de setembro impediram as TVs e os jornais do mundo inteiro de acordar alguma espécie de pacto de discrição. Ao mesmo tempo, os diversos órgãos da mídia não podiam optar pelo silêncio de maneira unilateral sem perder leitores ou espectadores para a concorrência.

É fato que, dessa maneira, a mídia deu a Bin Laden publicidade gratuita no valor de bilhões de dólares. Dia após dia, mostrou as imagens que ele criara --e o mundo viu as imagens, com as quais quem vive no Ocidente tentou justificar sua confusão e os seguidores de Bin Laden tentaram justificar seu orgulho.

Entre outras coisas, o processo continua, e Bin Laden continua a conseguir o que quer a um custo muito pequeno. É por isso que se pode afirmar que a mídia, ao mesmo tempo em que o criticava, atuou como a melhor aliada possível de Bin Laden, que, dessa maneira, venceu a primeira rodada.

Para nos consolarmos do desalento provocado por essa situação aparentemente insolúvel, recordemo-nos do que aconteceu com as Brigadas Vermelhas na Itália. Quando elas aumentaram tremendamente o valor de sua aposta, com a captura e a morte de Moro, a mensagem transmitida foi tão perturbadora que acabou indo contra seus autores: em lugar de desintegrar as diversas forças políticas italianas, acabou por provocar sua união. O ato terrorista também despertou o repúdio público e acabou marcando o começo do declínio desse grupo terrorista.

Só o futuro nos dirá se o "espetáculo" criado por Bin Laden --pelo fato de ter extrapolado o tolerável-- desencadeou uma série de acontecimentos que marcarão o começo de sua derrocada. Se isso acontecer, então a vitória terá sido da mídia.

Umberto Eco, escritor e ensaísta italiano, é autor de "Em Nome da Rosa" e "Baudolino"

Tradução de Clara Allain

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.