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4. História do Cerco de Lisboa - Textos publicados na Folha

O labirinto e a metáfora

(publicado em 18/10/1998)

MANUEL VÁZQUEZ MONTALBÁN
especial para El País

Afinal, o Nobel premia um escritor de língua portuguesa. Um escritor difícil, avesso ao literariamente correto e que agora, mais do que nunca, necessita de apresentação para escapar do imaginário feito de estereótipos, para safar-se dos clichês que o enquadram. O imaginário Saramago reproduz um escritor tardio, como Buffalino ou Camileri, jornalista e comunista, nascido à sombra da estética de Pessoa em "O Ano da Morte de Ricardo Reis"; construtor de impossíveis utopias irônicas em "A Jangada de Pedra", interpretada como uma parábola antieuropeísta; exemplo de escritor engajado, comprometido com a literatura e com a ideologia, mas dono de uma verdade literária que não depende da ideológica.

"Ensaio Sobre a Cegueira" introduz o Saramago atual, que aponta para um discurso em que Vida, História e Morte resultam em paciência expositiva, como se o escritor se concedesse um tempo sem limites para a exposição literária, em contradição com os limites biológicos e históricos. Pode-se dizer, até, que esse Saramago tende a se afastar do otimismo, da esperança leiga na história, mas procurando não se render à tendência para o pessimismo biológico.

"Todos os Nomes" parece-me uma das obras mais reveladoras da relação entre ética e estética no Saramago de hoje.

O protagonista busca e rebusca na trama da geometria do Arquivo da Conservadoria Geral do Registro Civil, local concebido como um universo de arquivos ou como o universo arquivado, como materialização da relação entre espaço e tempo, ambos embalsamados. Se para Borges o Universo era ou merecia ser uma Biblioteca, Saramago propõe que ele seja a Conservadoria Geral do Registro Civil.

Nesse cenário há dois sujeitos dominantes: o chefe e o sr. José. Este é o que podemos chamar "probo funcionário", da estipe dos funcionários oitocentistas, embebido da náusea do autodidata e da indeterminação de Joseph K. Saramago recria-se e recreia-se na reconstrução de um romance de escriturários com atmosfera oitocentista, como que buscando uma cenografia falsamente naturalista, uma cenografia enterrada, sepultada, pré-kafkiana, um dos maiores achados do livro. Se no romance ensimesmado dos anos 60 e 70 os protagonistas levavam 30 páginas para subir uma escada e 40 para abrir uma janela, em "Todos os Nomes", o sr. José demora 40 para abrir uma pasta, instalado na íntima satisfação de proprietário da memória da vida de todos em seus dados mais óbvios.

O leitor vê-se submetido à intriga da revelação esperada e assume sua aproximação, até que vem à luz a notícia de uma mulher que levará o sr. José e o leitor fora do Arquivo, talvez na esperança de sair do labirinto. Aqui é preciso dizer que, enquanto a metáfora do mundo é a Conservadoria, o labirinto é a da vida. Essa mulher, que chama o sr. José da substância mesma de um papel mofado, talvez seja Ariadne oferecendo-lhe o fio redentor. O labirinto interior é separado do exterior pela pele, mas Valéry escreveu que nada no homem é mais profundo que a pele. O sr. José, o próprio Saramago, pensa que não tomamos decisões, mas que as decisões é que nos tomam. Temos aqui a primeira presença de Beckett: "Isto não é mover-se, isto é ser movido".

Em seu percurso pela construção de uma mulher real, o sr. José acaba por desconstruí-la, pois a indagação o conduz à morte dentro dos dois hemisférios em que a Conservadoria se divide: o dos mortos e o dos vivos. O chefe, ciente de todas as pequenas, angustiosas transgressões que o sr. José teve de perpetrar para transpor a sutil divisória que separa a vida da morte, propõe que este contemple os dois hemisférios como um só. Em uma patética cena quase final, a investigação leva o protagonista a ouvir a voz da mulher procurada em uma gravação de secretária eletrônica. Este confessa ficar sem pensamentos, enquanto a voz da fita evoca Beckett pela segunda vez, em uma referência a "Knapp's Last Tape". A vida está gravada, apenas gravada, e só faz sentido em torno dessa voz.

Romance de intriga morosa, ao passo lento de um funcionário. Romance de amor, literatura _toda a de Saramago_ de amor, acima do sensorial e dos corpos concretos: tentativa de construir um mito emocional com a vagareza de um burocrata incapaz de assumir que angústia é o nome de sua angústia. Ou o leitor assume esse tempo moroso, a identificação da relação entre tempo e espaço embalsamados, ou não adentrará o labirinto e sua metáfora.

Acabam de dar o Nobel de Literatura a um grande escritor e a uma grande literatura que o mereciam. Porque a notícia não é só a premiação de Saramago, e sim a escolha de um escritor de língua portuguesa.

Manuel Vásquez Montalbán é escritor espanhol, autor de "Os Mares do Sul" e "Autobiografia do General Franco".

Tradução de Sérgio Molina.

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