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José Saramago fala para a caverna chamada São Paulo

(publicado em 06/12/2000)

CASSIANO ELEK MACHADO
da reportagem local

Brasil, todos pela Cia das Letras, com exceção de "Levantado do Chão" e "Memorial do Convento", publicados pela editora Bertrand Brasil No domingo, quando vinha do aeroporto de Guarulhos para São Paulo, José Saramago viu algo que "julgava impensável". Sobre uma casa modesta, um letreiro anunciava: "Igreja de Cristo. Fundada em Jerusalém no ano 30 d.C.".

"Vivemos mesmo na caverna", pensou o escritor português.

Chegou o dia de São Paulo ter seu "abre-te Sésamo". Depois de passar por 14 cidades portuguesas, por Angola e Moçambique e por Belo Horizonte, Saramago explica hoje no teatro do Sesc Pompéia por que acredita que estamos todos em uma grande gruta.

Ele estará lançando "A Caverna", o primeiro romance que escreveu depois de vencer o Prêmio Nobel, em 1998.

Com a obra, que chegou às livrarias no dia 16 de novembro, data de seu aniversário de 78 anos, o autor fecha a "trilogia involuntária" que começou com "Ensaio sobre a Cegueira" e "Todos os Nomes".

"É como se eu tivesse andado a descrever uma estátua. Ela é apenas a superfície da pedra. A partir de 'Ensaio sobre a Cegueira', eu deixei de descrever os horrores ou as belezas dessa estátua e passei para o interior dela. É como se eu quisesse passar para dentro do indivíduo. Voltei-me para as indagações que o homem se faz desde que começou a pensar. Quem diabos somos nós?", indagou-se o escritor, em conversa com a Folha.

Na entrevista a seguir, Saramago fala sobre algumas características que encontrou nesse mergulho ao interior das estátuas. Ataca a globalização, fala sobre Harry Potter, comenta o "Brasil, o país do presente", relembra a "inacreditável" igreja que encontrou nos seus primeiros momentos no Brasil e explica como sairemos da caverna: "Dando trabalho à cabeça. Pensando, oras".



Folha - Por que a essa altura de sua carreira, tendo vendido milhões de livros e vencido o Prêmio Nobel, o sr. ainda se submete a maratonas de lançamento como essa de "A Caverna"?

José Saramago - Não creio que já fosse necessário nessa altura da vida e do meu trabalho andar a correr o mundo como uma espécie de caixeiro-viajante a vender aquilo que faz. O que acontece na minha vida é que sempre tive uma participação constante na vida social e política em Portugal.

A partir de uma certa altura, sobretudo a partir de "O Memorial do Convento", de 1982, isso tudo se ampliou até chegar ao Nobel e ao ponto em que estamos. Nunca considerei que o êxito literário me devesse afastar de um procedimento que foi sempre o meu, o de fazer intervenções na vida. Mesmo com algum prejuízo, não só do meu descanso, como da própria regularidade do meu trabalho, eu prefiro essa incomodidade a encerrar-me, para usar uma velha expressão, em uma torre de marfim, dizendo que não tenho nada com o mundo.

Folha - O que faz com que o sr. prefira o exterior da torre?

Saramago - Depois do prêmio, tanto do plano material como do plano de difusão mundial de um nome e uma obra, pude decidir finalmente a ficar em casa. Mas continuei com o mesmo tipo de participação.

Se corro tanto de um lado para o outro é porque também cheguei a outra conclusão, talvez a mais importante. Os meus leitores, além de gostarem dos livros que faço, gostam da pessoa que os escreveu. Isso é razão mais do que bastante para que eu vá até eles.

Folha - O sr. disse que acha importante fazer intervenções. Que tipo de intervenções o sr. pensa fazer aqui no Brasil?

Saramago - Neste momento não há como falar em Brasil, em Portugal ou em Itália. Hoje está-se a falar do mundo, que está todo envolvido em um processo, do qual não se pode escapar.

Vamos arrastados pela mesma vaga em direção à mesma praia. Se ela será agradável ou não, não sabemos.

Folha - Seria essa praia na ilha que o sr. criou em "O Conto da Ilha Desconhecida"?

Saramago - Era bom se fosse. Essa ilha é uma metáfora da necessidade de fazermos a nossa própria viagem em direção a nós próprios. Infelizmente não creio que seja essa a ilha. Estamos falando de globalização econômica, do capitalismo autoritário. Muita gente vai estranhar o termo, mas me parece claro que se eu disser que a globalização econômica pode ser entendida como uma nova forma de totalitarismo, não estarei filosoficamente longe da realidade.

Folha - Diante da globalização, há aqueles que depredam McDonald's, como o pecuarista francês José Bové, e aqueles que reagem ao fast food pregando que só se consuma alimentos de qualidade e de modo bem pausado, como o movimento italiano Slow Food. Qual lhe parece o mais eficiente?

Saramago - O mais correto seria simplesmente pôr um prato de comida na frente de toda a gente. Depois, se vão comer depressa ou devagar, é outra questão.

Folha - Outro aspecto bem comentado da globalização é o sucesso mundial dos livros de Harry Potter. Se tudo correr como nos livros anteriores do sr., "A Caverna" estará logo ao lado desse outro mago na lista dos mais vendidos no Brasil. Como o sr. encara o fenômeno?

Saramago - Não li nenhum dos livros da série. Mas até onde sei, não são muito diferentes de um tipo de livro com êxito antes, como "O Senhor dos Anéis". Tem também essa espécie de falso medievalismo, com castelos misteriosos e bruxas. Isso responde a uma ansiedade que é visível até, digamos, na multiplicação das seitas. Demonstra, claro, uma necessidade de sobrenatural.

Isso me lembra que, quando vinha do aeroporto para cá, passava distraído em uma avenida e vi uma casa com um letreiro que dizia algo que eu julgava impensável, de modo que as possibilidades de que as coisas aconteçam são quase infinitas. Dizia: "Igreja de Cristo. Fundada em Jerusalém no ano 30 d.C.".

Isso mostra que a capacidade de engano de uns e a disponibilidade de ser enganado de outros juntas permitem as mistificações mais absurdas que se pode imaginar. Alguém fundou um igreja chamada Igreja de Cristo e declara ali que foi fundada por Jesus quando ele estava vivo, pois ao que parece ele morreu com 33 anos. Portanto teria fundado uma igreja em vida que só uma pequena parte do povo brasileiro estaria conhecendo.

Folha - O sr. é um ateu convicto e disse antes da conversa que voltará a Lanzarote antes do Natal. Como o sr. se relaciona com o Natal?

Saramago - Vamos apenas reunir a família, comer e beber algumas coisas. Não estaremos orando. Não teremos lá um presépio. São tolices que se convertem em festas. Da mesma maneira que o cristianismo criou o Natal aproveitando-se de uma época de festividades do calendário romano. São ocupações de terreno.

Folha - O sr. diz que parou de fazer os "Cadernos de Lanzarote", livros em que anotava as suas lembranças do dia-a-dia. Que tipo de lembranças o sr. gostaria de poder levar desta viagem ao Brasil?

Saramago - Além da Igreja de Cristo ainda tenho pouco a dizer. Mas percebo que há mudanças. A deslocação para a esquerda que vem ocorrendo aqui trará efeitos práticos para os cidadãos. Mas deve ser dito que é claro que nem tudo que se promete se cumpre.

Folha - O brasilianista Thomas Skidmore disse anteontem à Folha que o Brasil deixou de ser o país do futuro para ser o do presente. O que o sr. pensa disso?

Saramago - Essas frases que às vezes dizemos são frases que ficam bem e que têm, com certeza, uma parte de verdade. Mas devemos notar que se o Brasil é o país do presente, também o será do futuro. Pior seria se o Brasil fosse um país do passado e que não tivesse viabilidade nem no presente nem no futuro. O fato é que esses conceitos de tempo, do futuro e do presente, são bastante vagos.

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