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7. O Caso Morel - Textos publicados na Folha

Realismo feroz

(publicado em 09/06/2001)

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
Especial para a Folha

Entre as mais ilustres vozes da ficção brasileira contemporânea destaca-se a de Rubem Fonseca. Em percurso marcado por altos e baixos, tornou-se mais prezado como contista que como romancista. Tendendo ao despojamento, anunciou tanto o desprezo pela retórica quanto a vontade de depuração, vindo em boa hora enxugar nossa prosa. Devotou-se a escrever sucinto, direto, elíptico e como que impôs um modelo de literatura metropolitana aos leitores --que, assim afinados, passaram a achar indulgente, derramada e beletrista outro tipo de prosa-- e a seus numerosos seguidores. Essas opções passaram a ser a tônica no panorama literário.

Seu novo livro, cujo título nada escamoteia, traz 14 contos. Em "Copromancia" o foco recai sobre as fezes, que servem para ler a sina e desencadear uma história de amor. Em "Coincidência" sobressaem as caspas. Em "Agora Você (ou José e Seus Irmãos)", José não pára de cuspir. Em "A Natureza em Oposição à Graça", é o sangue; em "O Estuprador", o pus; em "Belos Dentes e Bom Coração", muco nasal e lágrimas; em "Beijinhos no Rosto", a urina; em "Aroma Cactáceo", o hálito; em "Mulheres e Homens Apaixonados", cera auricular; em "A Entrega", o suor; em "Mecanismos de Defesa", o esperma; em "Encontros e Desencontros", a menstruação; em "O Corcunda e a Vênus de Botticelli", a saliva; em "Vida", os gases.

Como se vê, o conteúdo faz jus ao título; o que talvez fique faltando é desatino. Vemos agora que o escritor, ao concentrar-se no que afinal sobra da vida --as secreções/excreções do título, aliás perfeito, fiel e honesto--, como que foi visando ao longo de sua obra um alvo essencial: esses resíduos, esses vestígios, para além de qualquer ilusão terrenal dada pelos castelos de sonho construídos pelos instintos, que a serviço da espécie enganam sem clemência os indivíduos.

Resultado mecanicista

Como a concepção do livro fica evidente demais, sua originalidade repousando apenas na escolha da secreção/excreção exclusiva de cada conto, o resultado vem a ser um tanto mecanicista. Por causa disso, o interesse dos enredos, meio ralos, cai muito. É curioso, num autor tão reputado como a expressão maior da violência urbana, registrar que nesta coletânea ela só surge num conto, "A Entrega", em que o narrador dá um tiro na cabeça do passador da droga que intenta roubar. E embora seu protagonista de eleição, o assassino, só apareça nesse conto, aqui se desliga de seu duplo, o detetive de outro conto, "Belos Dentes e Bom Coração", o qual, driblando a expectativa, desengatilha um homicídio quase à vista.

Verifica-se que o autor cansou-se do experimentalismo, que dava instigação e provocação a seu texto. A variação de registro podia até desorganizar a linearidade, como acontecia, entre outros, em "Lúcia McCartney", composto em colunas de linhas que não se correspondiam, obrigando o leitor a uma leitura também menos convencional. Agora o autor atingiu a mediania de um discurso indireto, igual em todos os contos e não mais variadíssimo dentro de cada volume, em que uma voz autoral apegada à personagem fala por ela. De vez em quando um diálogo, portanto uma irrupção do discurso direto, interrompe a monotonia daquela voz. Mas isso raramente ocorre e a experimentação definha afinal numa alternância entre discurso indireto e direto.

Entretanto o abandono do experimental é aqui compensado pela ousadia no conteúdo. A sedução do horror, que ao mesmo tempo alicia e acumplicia o leitor, tão presente em sua obra, atinge seu ponto máximo, fazendo conjeturar no que virá depois. Podia-se sugerir canibalismo, aludido com laivos de gastronomia, mas não desenvolvido, em "Intestino Grosso".

Um ganho foi a tendência a deixar de lado as pitadas de erudição de enciclopédia e engavetar o latim de coroinha. Embora não resista a dar uma informação de dicionário sobre as divergentes etimologias para "escatologia", uma excrementícia e outra teológica. Faz questão de ressaltar que a palavra copromancia é um neologismo de sua lavra, enquanto recita a composição química das fezes, bem como a do esperma, e arrisca vocábulos como "geloscopia" e "aruspicação".

A "short story"

Sabemos demais o quanto nossa literatura foi dependente da francesa no passado --e pensamos menos em quanto é derivação da norte-americana novecentista. Ainda assim, depois que a crítica passou a tocar nessa tecla, Rubem Fonseca deu-lhe o troco em "Romance Negro". A "short story", versão local do conto, originou-se no jornal e em seu reduzido espaço para a literatura, que foi progressivamente encolhendo. Daí decorre também a linguagem, o desatavio e, estruturalmente, a concentração num único fulcro ou situação de enredo. Até chegarmos às verdadeiras pílulas que são as ficções de Raymond Carver lá e as de Fernando Bonassi aqui, não ultrapassando algumas linhas, sendo ambos campeões em minimalismo.

Dos EUA também vem a maior influência na obra de Rubem Fonseca, o "thriller" ou romance "noir", que aqui chamamos de romance policial ou de detetive --literatura best-seller de cidade grande. Seu arcabouço repousa em privilegiar a cena em detrimento da elucubração, a ação em vez da reflexão, o impacto em vez da nuance. O romance policial (com a possível exceção de Georges Simenon) só dá certo em língua inglesa: há várias hipóteses explicativas para isso, mas nenhuma satisfatória.

Esse ramo da árvore européia, aclimatado ao Novo Mundo, tornou-se estirpe fundada por Dashiel Hammett e Raymond Chandler, que ainda eram artistas mais sérios do que a incontável ninhada a que deram origem e que se alastrou pelo mercado, habituando os leitores a uma leitura de passatempo, digestiva e nada problematizante. Talvez compensatória de fantasias de hostilidade, numa resposta adaptada ao duro cotidiano da metrópole. Aludindo à influência, Antonio Candido chama a tendência em nossa literatura de "ultra-realismo" ou "realismo feroz", notando que aposta no "envolvimento agressivo" do leitor. Já Alfredo Bosi fala em "brutalismo ianque".

Na pena desses precursores, o detetive ainda é um tipo durão, com preocupações morais e sociais a respeito dos crimes que desvenda, como é o caso do grande Sam Spade, de Hammett, e de Philip Marlowe, de Chandler. Depois, com o evoluir do gênero, a brutalidade foi-se alçando ao primeiro plano, sobretudo na ficção de Mickey Spillane e de seu herói, o detetive Mike Hammer, nos anos 50. Este, ao descobrir na mulher amada a assassina, desfere-lhe um tiro de 45 na barriga nua. Ela, expirando, indaga-lhe como teve coragem de matá-la, ao que ele responde (pelo canto da boca, supõe o leitor): "It was easy." ("Foi fácil."). Assim era o incomparável Mike Hammer, que ao fim das investigações fazia justiça com as próprias mãos. Basta atentar para dois de seus títulos, "I, the Jury" e "Vengance is Mine" ("Eu, o Júri" e "A Vingança é Minha"), neste último colocando-se no lugar de Deus, cuja declaração na Bíblia usurpa sem nem sequer parafrasear.

E hoje em dia, mais aparentados com Rubem Fonseca nos temas e na secura do discurso de impacto estariam alguns escritores mais recentes, dos quais são representativos James Ellroy e Elmore Leonard. Nessa lenta evolução, é o próprio assassino, agora desligado do detetive, que se tornaria herói. O caso mais bem-sucedido devemos a Patricia Highsmith e à saga em vários tomos de Ripley, ladrão e homicida jamais punido, que leva uma bela vida a usufruir de seus crimes. Já no cinema "noir" --gênero certamente menor, mas onde o policial livresco se adaptou melhor e de onde passou por sua vez a se refletir na literatura-- é frequente o bandido que ao mesmo tempo é herói, conjunção a que estamos tão habituados que nem notamos qualquer anomalia.

Na criação de personagens, pode-se dizer que o herói e protagonista-símbolo de Rubem Fonseca é o policial, assassino por opção, mesmo quando utiliza codinomes elegantes como Matador ou Exterminador, que relevam da "science-fiction" cinematográfica e televisiva. Esse homicida-herói pode ser pobre ("Feliz Ano Novo") ou rico ("Passeio Noturno"), amador dedicado ou profissional. É verdade que os autores de romance policial costumam invocar Dostoiévski, louvando "Crime e Castigo", cujo protagonista mata para roubar. O que equivale à garrulice dos colunistas sociais identificando-se como avatares de Proust e à dos profissionais da imprensa que insistem em ser "Os Sertões" um livro de jornalismo.

"Time is money"

O leitor de best-seller sabe que pode esperar duas coisas. A primeira é uma área do saber bem explorada, por meio de enciclopédias, dicionários e manuais. O objetivo é dar-lhe o simulacro da ampliação do conhecimento, pois na cultura do "time is money" não pode haver ócio, um ínterim em que não estejamos ganhando dinheiro. Portanto o passatempo tem que ser disfarçado de estudo, que aumentaria nossas qualificações para a concorrência. Bons exemplos são a perícia em sapos de "Buffo & Spalanzani" e a ciência das facas em "A Grande Arte". A segunda é a defesa ostensiva de causas progressistas, enquanto a latência pode ser bem outra --sim, porque os leitores são progressistas: "Não digo que ele parecia um macaco, pois o homem era preto e eu não sou racista, mas ele tinha a agilidade de um macaco" ("A Entrega").

Rubem Fonseca combate sem cessar a corrupção dos poderosos, o mau uso da força, o primado do dinheiro, o jogo dos favores, a decadência moral, a selvageria das relações humanas, a instrumentalização do outro, a barbárie do asfalto e do concreto, a incivilidade --o mundo cão, enfim, oferecido ao sanguissedento leitor de best-seller. Costuma-se dizer que o autor é especialista em submundo, mas por equívoco, pois sua ficção prefere retratar as camadas dominantes.

Sem dúvida, não se pode negar que fica pairando no ar uma deleitação na violência, marcando as letras do último século desde Marinetti e o futurismo, que a propunham abertamente por sua modernidade e energia de renovação vital. E, no sepultamento da Guerra Fria, voltamos a ouvir o louvor da guerra, a qual, graças ao arrasamento que salvou da obsoletização o parque industrial da Alemanha e do Japão, conferiu-lhes a bênção de recuperar o posto de grandes potências meio século depois.

Mesmo sem ir tão longe, deparam-se em território nativo várias possibilidades de realização ficcional. Jorge Amado encontrou seu nicho na malemolência baiana. Rubem Fonseca, na metrópole, tornou-se o mestre do "thriller", categoria em que, em língua portuguesa, ninguém lhe leva a palma.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de "Desconversa" (Ed. UFRJ) e "Folha Explica Guimarães Rosa" (Publifolha), entre outros.

Secreções, Excreções e Desatinos
Rubem Fonseca
Cia. das Letras
(Tel. 0/xx/11/3846-0801)
141 págs., R$ 21,00

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