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8. Trópico de Câncer - Textos publicados na Folha

O pornógrafo Henry Miller está de volta

(publicado em 16/11/1994)

JOSÉ GERALDO COUTO
da Reportagem Local

De tempos em tempos, Henry Miller (1891-1980) sai da tumba para perverter a juventude e poluir com vômito e esperma o jardim das belas-letras. Desta vez trata-se da republicação, no Brasil, de sua primeira afronta em forma de livro, "Trópico de Câncer" (1934), esgotado no país há uma década.

Nessa obra literalmente seminal, Miller estabeleceu o padrão do que seria dali para diante a sua literatura: memórias pessoais vistas com a minúcia de um estudo biológico e narradas no tom exaltado de um profeta bêbado.

A matéria-prima desse primeiro livro é o período que o autor passou em Paris nos anos 20, perambulando de prostíbulo em bar, de quarto emprestado a banco de estação, enquanto tentava escrever.

Foi a época em que conviveu com a escritora libertária Anais Nin (que aliás escreveu o prefácio da obra, incluído na edição brasileira) e com um bando de autores frustrados, maridos traídos, prostitutas, bêbados, burguesas libertinas -uma fauna numerosa em cujos espécimes o autor por vezes se detém, em descrições que ocupam páginas inteiras. O filme "Henry & June", de Philip Kaufman, dá uma pálida idéia do que foram esses tempos.

Não há propriamente uma história, um "fio condutor", como se costuma dizer no jargão eletricitário da crítica. Há episódios esparsos, narrados sem nenhuma ordem -o que contribui para uma sensação de embriaguez- e alternados com reflexões e aforismos desaforados do autor -o que corresponderia à ressaca depois da farra.

Choque e censura

A fama de obra maldita de "Trópico de Câncer" não é gratuita. Publicado em inglês em Paris em 1934, ele só pôde ter uma edição nos EUA em 1961, quando foi saudado por uns como obra-prima de ousadia estética e existencial e execrado por outros como subproduto pornográfico.

No Brasil, "Trópico de Câncer" foi publicado em 1963, junto com "Trópico de Capricórnio" (1937), e ambos foram apreendidos três anos depois (em pleno regime militar) pela Polícia de Costumes, que os considerou inadequados à juventude auriverde. Semanas depois as edições foram devolvidas à editora, com alguns milhares de exemplares a menos.

Lido hoje, à luz da pornografia, da bandalheira e do ceticismo que grassaram nas últimas décadas, "Trópico de Câncer" dificilmente despertará reações apaixonadas de indignação -e dificilmente corromperá alguém, porque não há mais ninguém inocente o bastante para ser corrompido.

Pode despertar, isso sim, o protesto de guardiães da correção política, pelo modo nada educado como se refere a mulheres, homossexuais e minorias étnicas. Mas a crueza verbal de Miller, que tende a chamar as coisas por seu nome mais chulo, tem um sentido: captar a sobrevivência do humano num mundo cada vez mais mecânico e a sobrevivência do animal num homem cada vez mais alienado de si mesmo.

Literariamente, não é nenhum Proust. Em Miller, como em Sade, verdadeiras epifanias alternam-se com passagens francamente tediosas. Como Sade, também, Miller atinge uma espécie de pureza pelo avesso e encontra pérolas no esterco do chiqueiro. É, ao contrário do que muitos pensaram, um artista essencialmente moral.

Livro: Trópico de Câncer
Autor: Henry Miller
Tradução: Aydano Arruda
Páginas: 260
Editora: Ibrasa (tel. 011/607-4107)

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