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8. Trópico de Câncer

Leia trechos do livro

Estou vivendo na Villa Borghese. Não há um resquício de sujeira em parte alguma, nem uma cadeira fora do lugar. Estamos completamente sozinhos aqui e estamos mortos.

Ontem à noite, Bóris descobriu que estava com chatos. Tive de raspar-lhe as axilas e mesmo depois disso a coceira não passou. Como pode alguém adquirir chatos num lugar bonito como este? Mas isso não tem importância. Talvez nunca nos tivéssemos conhecido tão intimamente, Bóris e eu, se não fossem os chatos.

Bóris acaba de oferecer-me uma síntese de suas idéias. É um profeta meteorológico. O tempo continuará ruim, diz ele. Haverá mais calamidades, mais morte, mais desespero. Não há a menor indicação de mudança em parte alguma. O câncer do tempo está-nos comendo. Nossos heróis mataram-se ou estão se matando. O herói, então, não é o Tempo, mas a Ausência de Tempo. Precisamos acertar o passo, em ritmo acelerado, em direção à prisão da morte. O tempo não vai mudar.

Estamos no outono do meu segundo ano em Paris. Mandaram-me para cá por uma razão que ainda não consegui compreender.

Não tenho dinheiro, nem recursos, nem esperanças. Sou o mais feliz dos homens vivos. Há um ano, há seis meses, eu pensava ser um artista. Não penso mais nisso. Eu sou. Tudo quanto era literatura se desprendeu de mim. Não há mais livros a escrever, graças a Deus.

E isto então? Isto não é um livro. Isto é injúria, calúnia, difamação de caráter. Isto não é um livro, no sentido comum da palavra. Não, isto é um prolongado insulto, uma cusparada na cara da Arte, um pontapé no traseiro de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza.... e do que mais quiserem. Vou cantar para você, um pouco desafinado talvez, mas vou cantar. Cantarei enquanto você coaxa, dançarei sobre seu cadáver sujo...

Para cantar é preciso primeiro abrir a boca. É preciso ter um par de pulmões e um pouco de conhecimento de música. Não é necessário ter harmônica ou violão. O essencial é querer cantar. Isto é, portanto, uma canção. Eu estou cantando.



É para você, Tânia, que estou cantando. Desejaria poder cantar melhor, mais melodiosamente, mas então talvez você jamais consentisse em ouvir-me. Você já ouviu outros cantarem e permaneceu fria. Cantavam bonito demais ou não cantavam suficientemente bonito.

Estamos em vinte e tantos de outubro. Não acompanho mais as datas. Que diz você? Meu sonho de 14 de novembro do ano passado? Há intervalos, mas ficam entre sonhos e deles não resta consciência alguma. O mundo ao meu redor está se dissolvendo, deixando aqui e acolá manchas de tempo. O mundo é um câncer que está comendo a si próprio... Estou pensando que, quando o grande silêncio descer sobre tudo e todos, a música triunfará por fim. Quando tudo se retirar de novo para o útero do tempo, o caos será restabelecido, e o caos é a página sobre a qual a realidade está escrita. Você, Tânia, é o meu caos. É por isso que canto. Não sou nem eu, é o mundo morrendo, deixando cair a pele do tempo. Eu ainda estou vivo, dando pontapés em seu útero, uma realidade sobre a qual escrever.

Adormecendo. A fisiologia do amor. A baleia com seu pênis de um metro e oitenta, em repouso. O morcego - penis libre. Animais com um osso no pênis. Daí, um osso espetado... "Felizmente", diz Gourmont, "a estrutura óssea está perdida no homem". Felizmente? Sim, felizmente. Imagine-se a espécie humana andando de um lado para outro com um osso espetado. O canguru tem pênis duplo: um para os dias úteis e outro para os feriados.

Adormecendo. Uma carta de fêmea perguntando se encontrei um título para meu livro. Título? Certamente: "Adoráveis Lésbias".

Sua vida anedótica! Uma frase do Sr. Borowski. É nas quartas-feiras que almoço com Borowski. Sua esposa, que é uma vaca seca, preside. Ela agora está estudando inglês e sua palavra favorita é "filthy". Isso permite ver imediatamente como são chatos os Borowski. Mas espere...

Borowski usa ternos de tecido aveludado e toca harmônica. Combinação insuperável, especialmente se considerarmos que ele não é mau artista. Faz-se passar por polonês, mas naturalmente não é. É judeu, esse Borowski, e seu pai era um filatelista. Na verdade, quase todo Montparnasse é judeu ou meio-judeu, o que é ainda pior. Há Carl e Paula, Cronstadt e Bóris, Tânia e Sylvester, e Moldorf e Lucille. Todos, com exceção de Fillmore.

Henry Jordan Oswald também acabou revelando-se judeu. Louis Nichols é judeu. Até mesmo Van Norden e Chérie são judeus. Frances Blake é judeu ou judia. Titus é judeu. Os judeus estão caindo sobre mim como neve. Estou escrevendo isto para meu amigo Carl, cujo pai é judeu. É importante compreender tudo isto.

De todos os judeus, a mais adorável é Tânia, e por ela eu também ficaria judeu. Por que não? Já falo como um judeu. E sou feio como um judeu. Além disso, quem odeia os judeus mais do que o judeu?



Hora do crepúsculo. Azul indiano, água de vidro, árvores reluzentes e liquescentes. Os trilhos desaparecem no canal em Jaurés. A comprida lagarta com os lados esmaltados mergulha qual montanha-russa. Não é Paris. Não é Coney Island. É uma mistura crepuscular de todas as cidades da Europa e América Central. Os pátios ferroviários embaixo de mim, os trilhos pretos e trançados, não ordenados pelo engenheiro, mas de desenho cataclísmico, como aquelas sombrias fendas no gelo polar que a câmara registra em tons de preto.

Comida é uma das coisas de que gosto tremendamente. E nesta bela Villa Borghese raramente há indícios de comida. É positivamente pavoroso às vezes. Repetidamente pedi a Bóris que encomendasse pão para o desjejum, mas ele sempre se esquece. Parece que faz seu desjejum fora. E quando volta está palitando os dentes e há um pouco de ovo pendurado em seu cavanhaque. Come no restaurante, por consideração a mim. Diz que lhe dói comer uma grande refeição enquanto olho.

Gosto de Van Norden, mas não partilho de sua opinião a respeito de si próprio. Não concordo, por exemplo, em que ele seja um filósofo ou pensador. É obcecado por fêmeas, nada mais. E nunca será um escritor. Sylvester também jamais será um escritor, embora seu nome cintile em lâmpadas vermelhas de 50 000 velas. Os únicos escritores ao meu redor pelos quais tenho algum respeito, atualmente, são Carl e Bóris. São possessos. Brilham por dentro com uma chama branca. Estão mortos e surdos aos tons musicais. São sofredores.

Por outro lado, Moldorf, que também sofre à sua maneira, não é louco. Tem a embriaguez da palavra. Não tem veias ou vasos sangüíneos, nem coração ou rins. É um armário portátil com inúmeras gavetas e nas gavetas há etiquetas escritas com tinta branca, marrom, vermelha, azul, escarlate, cor de açafrão, cor de malva, castanho-avermelhado, damasco, turquesa, ônix, Anjou, arenque, Corona, verdigris, gorgonzola...

Mudei a máquina de escrever para o aposento ao lado onde posso ver-me no espelho enquanto escrevo.

Tânia é como Irene. Espera cartas gordas. Mas existe outra Tânia, uma Tânia semelhante a uma grande semente, que espalha pólen por toda parte -_ou, digamos, um pouco de Tolstói, uma cena de estábulo na qual o feto é desenterrado. Tânia é uma febre também-- les voies urinaires, Café de la Liberté, Place des Vosges, gravatas brilhantes no Boulevard de Montparnasse, banheiros escuros, Porto Sec, cigarros Abdullah, sonata patética em adágio, amplificadores auditivos, sessões de anedotas, peitos castanho-avermelhados queimados, ligas pesadas, que horas são, faisões dourados recheados com castanhas, dedos de tafetá, crepúsculos vaporosos transformando-se em azinheiras, acromegalia, câncer e delírio, véus quentes, fichas de pôquer, tapetes de sangue e coxas macias. Tânia diz para que todos ouçam: "Eu o amo!" E, enquanto Bóris se queima com uísque, ela diz: "Sente-se aqui! Ó Bóris... Rússia... que farei? Estou estourando!"

À noite, quando olho o cavanhaque de Bóris estendido sobre o travesseiro, fico histérico.

Ó Tânia, onde estão agora aquela sua boceta quente, aquelas ligas gordas e pesadas, aquelas coxas macias e arredondadas? Em meu membro há um osso de quinze centímetros de comprimento. Tânia, alisarei todas as pregas de sua vulva, cheia de semente. Mandá-la-ei de volta para seu Sylvester com a barriga doendo e o útero virado. Seu Sylvester! Sim, ele sabe acender um fogo, mas eu sei inflamar uma vagina. Enfiarei pregos quentes em você, Tânia. Deixarei seus ovários incandescentes. Seu Sylvester agora está um pouco ciumento? Ele sente alguma coisa, não sente? Sente os remanescentes de meu grande membro. Deixei as margens um pouco mais largas. Alisei as pregas. Depois de mim, você pode receber garanhões, touros, carneiros, cisnes e São Bernardos. Pode enfiar pelo reto sapos, morcegos, lagartos. Você pode defecar arpejos ou amarrar uma cítara sobre o umbigo. Eu estou fodendo, Tânia, para que você fique fornicada. E se tem medo de ser fornicada em público, eu fornicarei privativamente. Arrancarei alguns pêlos de sua vulva e os grudarei no queixo de Bóris. Morderei seu clitóris e cuspirei moedas de dois francos...



Céu de anil limpo de onde foram varridas as nuvens felpudas, árvores magras infinitamente estendidas, com seus galhos pretos a gesticular como um sonâmbulo. Árvores sombrias e espectrais, de troncos pálidos como cinza de charuto. Silêncio supremo e absolutamente europeu. Venezianas cerradas, lojas fechadas. Um brilho vermelho aqui e acolá para marcar encontro. Fachadas bruscas, quase proibitivas; imaculadas, não fossem as manchas de sombra que as árvores lançam. Passando pela Orangerie, lembrei-me de outra Paris, a Paris de Maugham, de Gauguin, a Paris de George Moore. Penso naquele terrível espanhol que então espantava o mundo com seus saltos acrobáticos de um estilo para outro. Penso em Spengler e seus terríveis pronunciamentos e pergunto se o estilo, o estilo à grande maneira, morreu.

Digo que meu espírito está ocupado com esses pensamentos, mas não é verdade; somente mais tarde, depois de ter atravessado o Sena, depois de ter deixado para trás o carnaval de luzes, é que permito a meu espírito brincar com essas idéias. No momento, não posso pensar em nada - exceto em que sou um ser senciente ferido pelo milagre destas águas que refletem um mundo esquecido. Ao longo de toda a extensão das margens, as árvores curvam-se pesadamente sobre o espelho embaçado; quando o vento se ergue e as enche de um murmúrio farfalhante, elas derramam algumas lágrimas e estremecem sobre a água rodopiante que passa. Estou sufocado por isto. Ninguém a quem possa comunicar sequer uma fração de meus sentimentos...

O mal de Irene é ter uma valise em lugar de vulva. Quer cartas gordas para enfiar na valise. Imensa, avec des choses inouïes. Agora, Llona tem uma boceta. Sei disso porque ela nos mandou alguns pêlos arrancados bem do fundo. Llona --uma égua selvagem cheirando prazer no vento. Em todo monte alto ela fez o papel de puta-- e às vezes também em cabinas telefônicas e lavatórios. Ela comprou uma cama para o Rei Carol e um púcaro para sabão de barba com as iniciais dele. Deitava-se em Tottenham Court Road com o vestido levantado e fazia com os próprios dedos. Usava velas, velas romanas, e trincos de porta. Não havia na terra membro tão grande que lhe servisse... nenhum. Homens entravam nela e fraquejavam.

Ela os queria com extensão, foguetes explosivos, óleo fervente feito de cera e creosoto.

Cortaria o seu e o conservaria dentro dela, se você lhe desse permissão. Uma boceta como não se encontra em um milhão, Llona! Uma vagina de laboratório, sem papel de tornassol que pudesse tomar-lhe a cor. Era uma mentirosa também, essa Llona. Jamais comprou uma cama para o seu Rei Carol. Coroou-o com uma garrafa de uísque e sua língua estava cheia de chatos e amanhãs. Pobre Carol, dentro dela ele só poderia fraquejar e morrer. Uma chupada, e ele caiu para fora --qual morta lesma.

Cartas enormes e gordas, avec des choses inouïes. Uma valise sem alças. Um buraco sem chave. Ela tinha boca alemã, orelhas francesas, bunda russa. Vagina internacional. Quando hasteava a bandeira, era vermelha em toda a extensão até a garganta. Você entrava no Boulevard Jules-Ferry e saía na Porte de la Villette. Você jogava seu pâncreas em carrinhos de mão - carrinhos de mão vermelhos, com duas rodas, naturalmente. Na confluência do Ourca e Marne, onde a água escorre através dos diques e pára como vidro sob as pontes. Llona lá jaz agora e o canal está cheio de vidro e de lascas; as mimosas choram e há sobre as vidraças um peido úmido e nevoento. Uma vulva como não se encontra em um milhão, era Llona! Só vulva, e um traseiro de vidro no qual se podia ler a história da Idade Média.

É a caricatura de um homem o que Moldorf apresenta a princípio. Olhos de tireóide. Lábios Michelin. Voz como sopa de ervilha. Por baixo do colete, leva uma pequena pêra. Todavia, olhando-o, a gente sempre vê o mesmo panorama: caixinha de rapé enfeitada, cabo de marfim, peça de xadrez, leque, motivo de igreja. Já fermentou durante tanto tempo, que é amorfo. Fermento privado de suas vitaminas. Vaso sem a sua planta de borracha.

As fêmeas eram cobertas duas vezes no século IX e também durante a Renascença. Ele foi levado durante as grandes dispersões sob barrigas amarelas e brancas. Muito tempo antes do Êxodo, um tártaro cuspiu-lhe no sangue.

Seu dilema é o de um anão. Com o olho pineal enxerga em silhueta projetada sobre tela de incomensurável tamanho. Sua voz, sincronizada com a sombra de uma cabeça de alfinete, intoxica-o. Ele ouve um rugido onde outros ouvem apenas um rangido.

Há sua mente. E um anfiteatro onde o ator tem atuação protéica. Moldorf, multiforme e impecável, vai através de seus papéis - palhaço, prestidigitador, contorcionista, padre, devasso, saltimbanco. O anfiteatro é excessivamente pequeno. Ele põe-lhe dinamite no interior. A platéia está entorpecida. Ele machuca-a.

Estou tentando inutilmente aproximar-me de Moldorf. É o mesmo que tentar aproximar-me de Deus, pois Moldorf é Deus - nunca foi outra coisa. Estou simplesmente registrando palavras...

Tive sobre ele opiniões que abandonei; tive outras, que estou reexaminando. Fixei-o apenas para descobrir que não era um besouro de esterco que tinha nas mãos, mas uma libélula. Ele me ofendeu com sua brutalidade e depois me dominou com sua delicadeza. Mostrou-se volúvel até a sufocação e depois calmo como o Jordão.

Quando o vejo avançando a trote para cumprimentar-me, patinhas estendidas, olhos transpirando, sinto que estou encontrando... Não, esta não é maneira de tratar o caso!

"Comme un oeuf dansant sur un jet d'eau"

Ele tem apenas uma bengala, uma bengala medíocre. Em seu bolso há pedaços de papel com receitas para Weltschmerz. Agora está curado e a mocinha alemã que lhe lavava os pés está desolada. Ê como o Sr. Nulidade, folheando seu dicionário Gujurati em toda parte.

"Inevitável para todos" - querendo dizer, sem dúvida, indispensável. Borowski acharia isto tudo incompreensível.

Borowski tem uma bengala diferente para cada dia da semana, e outra para a Páscoa.

Temos tantos pontos em comum que é como se eu visse minha própria imagem em um espelho rachado.

Estive olhando meus manuscritos, páginas rabiscadas com correções. Páginas de literatura.

Isto me assusta um pouco. É tão parecido com Moldorf! Só que sou um gentio e os gentios têm modo diferente de sofrer. Sofrem sem neuroses e, como diz Sylvester, um homem que nunca foi afligido por neurose não sabe o que significa sofrer.

Recordo-me distintamente de como eu sentia prazer com meu sofrimento. Era como levar um filhote de fera para a cama com a gente. De vez em quando ele arranha --e então se fica realmente assustado. Normalmente, não se tem medo-- podemos soltá-lo a qualquer momento ou cortar-lhe a cabeça.

Há pessoas que não podem resistir ao desejo de entrar em uma jaula contendo animais ferozes e ser lanhadas. Entram mesmo sem revólver ou chicote. O medo torna-as destemidas... Para o judeu o mundo é uma jaula cheia de animais ferozes. A porta está trancada e ele ali está sem chicote ou revólver. Sua coragem é tão grande que nem sequer sente o cheiro do estrume no canto. Os espectadores aplaudem, mas ele não ouve. O drama, pensa, está se desenvolvendo dentro da jaula. A jaula, pensa, é o mundo. Ali em pé, sozinho e indefeso, porta trancada, ele descobre que os leões não compreendem sua língua.

Nenhum leão até hoje ouviu falar em Spinoza. Spinoza? Mas os leões não podem sequer fincar os dentes nele. "Dê-nos carne!" rugem os leões, enquanto ele ali permanece petrificado, com as idéias congeladas, com seu Weltanschauung como um trapézio fora do alcance. Uma simples patada do leão e sua cosmogonia estará esmagada.

Os leões também estão decepcionados. Esperavam sangue, ossos, cartilagem, nervos. Mastigam e mastigam, mas as palavras são chicle, e chicle é indigerível. Chicle é uma base sobre a qual se polvilha açúcar, pepsina, tomilho, alcaçuz. O chicle, quando colhido por chicleros, é muito bom. Os chicleros apareceram na orla de um continente afundado.

Trouxeram consigo uma linguagem algébrica. No deserto do Arizona encontraram-se com os mongóis do Norte, vidrados como berinjela. Pouco tempo depois de a Terra ter assumido sua inclinação giroscópica --quando o Gulf Stream se estava separando da corrente japonesa. No coração do solo eles encontraram tufo calcário. Enfeitaram as próprias entranhas da Terra com sua linguagem. Comeram as vísceras uns aos outros e a floresta fechou-se sobre eles, sobre seus ossos e crânios, sobre seu tufo rendado. Sua língua perdeu-se. Aqui e acolá ainda se encontram os remanescentes de uma coleção de feras, uma placa de cérebro coberta de números.

Que tem isto tudo a ver com você, Moldorf? A palavra em sua boca é anarquia. Diga-o, Moldorf, estou esperando. Ninguém sabe, quando apertamos as mãos, os rios que correm através de nosso suor. Enquanto você está articulando suas palavras, com os lábios entreabertos, a saliva borbulhando na boca, salto através de metade da Ásia. Se eu tivesse apanhado sua bengala, apesar de medíocre, e aberto com ela um pequeno buraco em seu lado, poderia ter colhido material suficiente para encher o Museu Britânico. Ficamos em pé cinco minutos e devoramos séculos. Você é o crivo através do qual minha anarquia se filtra, converte-se em palavras. Por trás da palavra há o caos. Cada palavra é uma listra, um traço, mas não há e nunca haverá traços suficientes para fazer a trama.

Em minha ausência, colocaram as cortinas na janela. Tem aparência de toalhas de mesa tirolesas, molhadas em lisol. O quarto resplandece. Sento-me na cama atordoado, pensando no homem antes de seu nascimento. De repente, sinos começam a dobrar, música fantástica, sobrenatural, como se eu tivesse sido transportado para as estepes da Ásia Central. Alguns retinem num ritmo longo e demorado, outros ressoam bebedamente, chorosamente. Agora tudo está quieto de novo, a não ser por uma última nota que mal corta o silêncio da noite --apenas uma fraca e aguda batida abafada como uma chama.

Fiz comigo mesmo um pacto silencioso de não alterar uma linha do que escrevo. Não estou interessado em aperfeiçoar meus pensamentos, nem minhas ações. Ao lado da perfeição de Turgeniev coloco a de Dostoiévski (Existe algo mais perfeito que "O Eterno Marido"?).

Aqui, portanto, no mesmo meio, temos duas espécies de perfeição. Nas cartas de Van Gogh, porém, existe uma perfeição que vai além dessas duas. É a vitória do indivíduo sobre a arte.



Uma única coisa interessa-me vitalmente agora, e é registrar tudo quanto está omitido nos livros. Ninguém, pelo que posso ver, fez uso daqueles elementos, existentes no ar, que dão direção e motivação a nossas vidas. Somente os assassinos parecem extrair da vida certa medida satisfatória daquilo que nela põem. A época exige violência, mas estamos tendo apenas explosões abortivas. As revoluções são abafadas no nascedouro ou ocorrem muito depressa. A paixão esgota-se rapidamente. Os homens voltam a idéias, comme d'habitude.

Nada se propõe que possa durar mais do que vinte e quatro horas. Estamos vivendo um milhão de vidas no espaço de uma geração. No estudo da entomologia, da vida no fundo do mar ou da atividade celular, conseguimos mais...

O telefone interrompe este pensamento que eu nunca teria sido capaz de completar. Alguém vem vindo para alugar o apartamento...

Parece que isto está acabado, a minha vida na Villa Borghese. Bem, apanharei estas páginas e mudar-me-ei. Acontecerão coisas em outros lugares. Sempre estão acontecendo coisas.

Parece que onde quer que eu vá existe drama. As pessoas são como chatos --penetram na pele da gente e enterram-se lá. A gente coça e coça até sair sangue, mas não pode livrar-se permanentemente dos chatos. Em toda parte onde vou, as pessoas estão fazendo uma trapalhada em suas vidas. - Todos têm sua tragédia particular. Está no sangue agora --infortúnio, tédio, aflição, suicídio. A atmosfera está saturada de desastre, frustração, futilidade. Coça-se e coça-se --até não restar mais pele. Todavia, o efeito sobre mim é estimulante. Em vez de ficar desencorajado ou deprimido, divirto-me. Estou clamando por mais e mais desastres, maiores calamidades, malogros piores. Quero que todo o mundo se desmantele, quero que todos se cocem até morrer.

Sou agora forçado a viver tão rápida e furiosamente que mal há tempo para escrever até mesmo estas notas fragmentárias. Depois do telefonema, chegaram um cavalheiro e sua esposa. Subi para deitar-me enquanto durasse a transação. Fiquei deitado pensando qual seria meu movimento seguinte. Certamente não seria voltar para a cama do veado e virar a noite inteira de um lado para outro afastando migalhas de pão com a ponta dos pés. Aquele nojento bastardinho! Se há algo pior do que ser veado, é ser sovina. Um patifezinho tímido e covarde que vivia no constante temor de ficar sem dinheiro um dia --talvez em 18 de março ou precisamente em 25 de maio. Café sem leite ou açúcar. Pão sem manteiga. Carne sem molho ou nada de carne. Sem isto e sem aquilo! O pequeno e sujo sovina! Um dia abri a gaveta do armário e encontrei dinheiro escondido em uma meia.

Mais de dois mil francos --e cheques que ele nem sequer havia descontado. Nem isso me teria aborrecido tanto se não fosse haver sempre borra de café em minha boina e lixo no chão, para não mencionar os potes de creme, as toalhas engorduradas e o ralo sempre entupido. Ainda mais, o pequeno bastardo cheirava mal --exceto quando se ensopava com água-de-colônia. Suas orelhas eram sujas, os olhos eram sujos, a bunda era suja. Ele era molóide, asmático, piolhento, desprezível, mórbido. Poderia ter-lhe perdoado tudo se pelo menos me tivesse dado um desjejum decente! Mas um homem que tem dois mil francos escondidos numa meia suja e se recusa a usar camisa limpa ou passar um pouco de manteiga em seu pão não é apenas um veado, não é nem mesmo apenas uma sovina --é um imbecil! Mas isso do veado não quer dizer nada. Estou com os ouvidos voltados para o que acontece lá embaixo. Um Sr. Wren e sua esposa vieram ver o apartamento.

Estão falando em ficar com ele. Só falando, graças a Deus. A Sra. Wren tem uma risada solta --complicações à vista. Agora o Senhor Wren está falando. Sua voz é rouca, rangente, retumbante, como uma arma pesada e sem corte que abre caminho através de carne, osso e cartilagem.

Bóris chamou-me para ser apresentado. Esfrega as mãos, como um agiota. Estão falando sobre uma história que o Sr. Wren escreveu, uma história a respeito de um cavalo doente.

"Mas eu pensei que o Sr. Wren fosse pintor!"

"Claro", diz Bóris, com um brilho nos olhos - "mas no inverno ele escreve. E escreve bem... notavelmente bem."

Procuro induzir o Sr. Wren a falar, a dizer alguma coisa, qualquer coisa, a falar sobre o cavalo doente, se necessário. Mas o Sr. Wren é quase inarticulado. Quando tenta falar sobre aqueles sombrios meses que passou com a pena na mão, torna-se ininteligível. Leva meses e meses para pôr uma palavra no papel. (E há apenas três meses de inverno!) De que cogita ele durante todos aqueles meses e meses de inverno? Valha-me Deus, mas não posso ver neste sujeito um escritor. Todavia, a Sra. Wren diz que, quando ele se senta para escrever, a coisa jorra sozinha.

A conversa desenvolve-se sem rumo. É difícil acompanhar a mente do Sr. Wren porque ele nada diz. Ele pensa à medida que avança - é como fala a Sra. Wren, que coloca sob luz encantadora tudo quanto se refere ao Sr. Wren. "Ele pensa à medida que avança" - muito encantador, realmente encantador, como diria Borowski, mas na verdade muito penoso, particularmente quando o pensador não é senão um cavalo doente.

Bóris dá-me dinheiro para comprar bebida. Só de buscar a bebida, já estou embriagado. Sei exatamente como começarei quando voltar para casa. Descendo a rua, a coisa começa, o grandioso discurso, borbulhando dentro de mim como a risada solta da Sra. Wren. Parece-me que ela já está um pouco excitada. Ouve maravilhosamente quando bêbeda. Saindo da loja de vinhos, ouço o urinol borbulhar. Tudo está solto e esparramado. Quero que a Sra. Wren ouça...

Bóris esfrega as mãos de novo. O Sr. Wren ainda está balbuciando e gaguejando. Tenho uma garrafa entre as pernas e estou enfiando o saca-rolhas. A Sra. Wren está com a boca aberta, expectantemente. O vinho derrama-se entre minhas pernas, o sol derrama-se através da janela e dentro de minhas veias borbulham e esparramam-se milhares de coisas loucas, que começam agora a jorrar para fora de mim em confusão. Estou dizendo a eles tudo quanto me vem à cabeça, tudo quanto estava fechado dentro de mim e que a risada solta da Sra. Wren libertou de uma maneira qualquer. A garrafa entre as pernas, e o sol derramando-se através da janela, experimento mais uma vez o esplendor daqueles dias miseráveis em que cheguei a Paris, indivíduo desorientado e ferido pela pobreza, a rondar pelas ruas como fantasma num banquete. Tudo me volta num jato: os lavatórios que não funcionavam, o príncipe que engraxou meus sapatos, o Cinema Splendid onde dormi sobre o capote do "patron", as grades na janela, a sensação de sufocação, as baratas gordas, as bebedeiras que aconteciam de tempos a tempos, Rose Cannaque e Nápoles morrendo sob o sol. Dançando nas ruas com a barriga vazia e de vez em quando procurando pessoas estranhas --Madame Delorme, por exemplo.

Como cheguei até Madame Delorme, não consigo mais imaginar. Mas cheguei lá, entrei de um jeito qualquer, passei pelo mordomo, passei pela criada de aventalzinho branco, cheguei bem dentro do palácio, com minhas calças aveludadas e minha jaqueta de caça --e sem um botão na braguilha. Ainda agora posso sentir novamente o gosto do ambiente dourado daquela sala onde Madame Delorme ficava sentada num trono em seus trajes masculinos, os peixes dourados nos aquários, os mapas do mundo antigo e os livros belamente encadernados; posso sentir-lhe de novo a mão pesada descansando sobre meu ombro, assustando-me um pouco com seu forte ar lésbico. Mais confortável lá embaixo com aquele grosso cozido derramando-se para dentro da Gare St. Lazare, as putas nas portas, garrafas de "seltzer" em todas as mesas; espessa onda de sêmen inundando as sarjetas.

Nada melhor, entre as cinco e as sete, do que ser empurrado de um lado para outro no meio daquela multidão, seguindo uma perna ou um busto bonito, avançando com a maré, e com tudo girando na cabeça. Uma espécie fantástica de contentamento naqueles dias. Nenhum encontro marcado, nenhum convite para jantar, nenhum programa, nenhum dinheiro. O período dourado, quando eu não tinha um único amigo. Toda manhã a sombria caminhada até o American Express e toda manhã a inevitável resposta do funcionário.

Correndo de um lado para outro como um percevejo, apanhando tocos de cigarro de vez em quando, às vezes furtivamente, outras vezes descaradamente; sentando num banco e apertando a barriga para que parasse de roer, ou caminhando através do Jardin des Tuileries e tendo uma ereção ao olhar para as estátuas mudas. Ou vagueando ao longo do Sena à noite, vagueando e vagueando, enlouquecendo com a beleza do rio, as árvores inclinadas sobre ele, as imagens quebradas na água, o sussurrar da corrente sob as luzes sangrentas das pontes, as mulheres dormindo em vãos de porta, dormindo sobre jornais, dormindo sob a chuva; por toda parte, os pórticos embolorados das catedrais, mendigos, piolhos e velhas megeras com dança de São Vito; carrocinhas amontoadas como barris de vinho nas ruas transversais, o cheiro de frutas no mercado e a velha igreja cercada de hortaliças e lâmpadas azuis, as sarjetas que o lixo tornava escorregadias, e mulheres de sapatos de cetim cambaleando no meio da sujeira e da gentalha ao fim de uma farra que durou a noite inteira.

A Place St. Sulpice, tão quieta e deserta, onde toda noite, lá pela meia-noite, surge a mulher com a sombrinha quebrada e o véu maluco; toda noite ela dorme lá num banco, embaixo de sua sombrinha rasgada; as varetas penduradas, o vestido ficando verde, os dedos ossudos e o cheiro de podridão desprendendo-se de seu corpo; e, de manhã, eu estava sentado lá, tirando uma sossegada soneca sob o sol, praguejando contra os malditos pombos que recolhem migalhas por toda parte. St. Sulpice! Os gordos campanários, os avisos berrantes na porta, as velas ardendo lá dentro. A praça tão querida de Anatole France, com o zunzum e o zumbido do altar, o jorro de água da fonte, os pombos arrulando, as migalhas desaparecendo como mágica e apenas um surdo ronco no oco da barriga. Ali eu me sentava dia após dia, pensando em Germaine e naquela suja ruazinha perto da Bastille onde ela vivia, e aquele zunzum lá atrás do altar, os ônibus passando zumbindo, o sol batendo até dentro do asfalto e o asfalto penetrando em mim e em Germaine, dentro do asfalto, e toda Paris dentro dos grandes e gordos campanários.

E era pela Rue Bonaparte que apenas um ano antes Mona e eu costumávamos caminhar toda noite, depois de termo-nos despedido de Borowski. St. Sulpice então não significava muito para mim, nem qualquer outra coisa em Paris. Cheio de conversa. Enjoado de rostos. Cansado de catedrais, e praças e jardins zoológicos, e não sei que mais. Apanhando um livro no quarto vermelho, e a incômoda cadeira de vime; cansado de sentar-me sobre a bunda o dia inteiro, cansado do papel de parede vermelho, cansado de ver tanta gente tagarelando sobre coisa nenhuma. O quarto vermelho e o baú sempre aberto; seus vestidos espalhados num delírio de desordem. O quarto vermelho com minhas galochas e bengalas, os cadernos de notas que nunca toquei, os manuscritos abandonados, frios e mortos. Paris! Significando o Café Select, o Dôme, o Mercado de Pulgas, o American Express. Paris! Significando as bengalas de Borowski, os chapéus de Borowski, os guaches de Borowski, o peixe pré-histórico de Borowski - e piadas pré-históricas. Daquela Paris de 28 somente uma noite permanece em minha memória - a noite anterior à partida para a América. Uma noite rara, Borowski ligeiramente embriagado e um pouco desgostoso comigo por eu dançar com toda sirigaita que encontrava. Mas nós vamos partir amanhã cedo! É isso que digo a toda vulva que consigo agarrar - partir amanhã cedo! É isso que estou dizendo à loura de olhos cor de ágata. E, enquanto digo isso, ela toma minha mão e enfia-a entre suas pernas. No lavatório, fico em pé diante da pia com uma ereção terrível; parece leve e pesado ao mesmo tempo, como um pedaço de chumbo com asas. E enquanto estou ali em pé, entram duas bocetas - americanas.

Cumprimento-as cordialmente, de membro na mão. Dão-me uma piscadela e passam. No vestíbulo, enquanto abotôo a braguilha, reparo em que uma delas está esperando a amiga sair da privada. A música ainda está tocando e talvez Mona venha buscar-me, ou Borowski com sua bengala de cabo de ouro, mas agora estou nos braços dela, ela me agarra e não me importa quem venha ou o que aconteça. Entramos contorcendo-nos na privada e lá eu a ergo, encosto-a à parede e tento penetrá-la, mas não dá certo. Por isso, sentamo-nos na bacia e tentamos desse jeito, mas também não dá certo. De todo jeito que tentamos, não dá certo. E todo o tempo ela segura meu membro, agarra-se a ele como a um salva-vidas, mas não adianta, estamos muito excitados, muito ansiosos. A música ainda está tocando e saímos dançando da privada para o vestíbulo. Enquanto estamos dançando ali no lavatório, eu descarrego tudo sobre seu belo vestido e ela fica louca de raiva. Volto cambaleando para a mesa e lá estão Borowski com seu rosto corado e Mona com seu olhar desaprovador. E Borowski diz: - Vamos todos a Bruxelas amanhã.

Todos concordamos e quando voltamos para o hotel eu vomito por toda parte; na cama, na bacia, sobre os ternos e vestidos, nas galochas e bengalas, nos cadernos de notas que nunca toquei e nos manuscritos abandonados, frios e mortos.

Alguns meses mais tarde. O mesmo hotel, o mesmo quarto. Olhamos para o pátio lá fora, onde há bicicletas estacionadas, e lá em cima, abaixo do sótão, fica o quartinho onde um jovem sabido tocava o fonógrafo o dia inteiro e repetia coisinhas engraçadas com o máximo de sua voz. Digo "nós", mas estou exagerando, pois Mona foi-se embora há muito tempo e é só hoje que vou encontrar-me com ela na Gare St. Lazare. Ao anoitecer, lá estou com o rosto apertado contra as grades, mas não há Mona alguma, e leio e releio o cabograma, mas de nada adianta. Volto para o Quartier e apesar de tudo faço uma copiosa refeição. Caminhando ao léu diante do Dôme um pouco mais tarde, vejo de repente um rosto pálido e pesado, com olhos ardentes - e o vestidinho de veludo que sempre adorei porque embaixo do veludo macio sempre houve uns seios quentes e pernas de mármore, frias, firmes, musculares. Ela se ergue do mar de rostos e abraça-me, abraça-me apaixonadamente - milhares de olhos, narizes, garrafas, janelas, bolsas, pires, tudo nos fitando e nós, um nos braços do outro, esquecidos. Sento-me ao seu lado e ela fala - uma torrente de palavras. Notas selvagens e consumptivas de histeria, perversão, lepra. Não ouço uma só palavra porque ela é bela, eu a amo e agora estou feliz e desejando morrer.

Descemos a Rue du Château, à procura de Eugene. Atravessamos a ponte ferroviária onde eu ficava observando os trens passarem e sentindo-me todo doente por dentro, ao imaginar onde, diabo, ela poderia estar. Tudo macio e encantador, enquanto caminhamos na ponte. Fumaça subindo entre nossas pernas, os trilhos rangendo, semáforos em nosso sangue. Sinto-lhe o corpo perto do meu - todo meu agora - e paro para esfregar as mãos sobre o veludo quente. Tudo à nossa volta está ruindo, ruindo e o corpo cálido, sob o veludo quente, ansiando por mim...

De volta ao mesmo quarto e com cinqüenta francos de sobra, graças a Eugene. Olho para o pátio lá fora, mas o fonógrafo está silencioso. O baú, aberto e coisas dela espalhadas por toda parte como antes. Ela se deita vestida na cama. Uma vez, duas vezes, três vezes, quatro vezes... Tenho medo de que ela fique louca... na cama, sob as cobertas, como é bom sentir-lhe novamente o corpo! Mas por quanto tempo? Durará desta vez? Já tenho um pressentimento de que não durará.

Ela fala comigo febrilmente --como se não houvesse amanhã. (Fique quieta, Mona! Olhe apenas para mim... não fale!) Finalmente adormece e eu puxo meu braço debaixo dela. Meus olhos fecham-se. Seu corpo está ali ao meu lado... estará ali até amanhã, sem dúvida... Foi em fevereiro que saí da baía sob uma nevada cegante. A última visão que tive dela foi acenando-me adeus, na janela. Um homem estava em pé do outro lado da rua, na esquina, chapéu puxado sobre os olhos, as bochechas repousando sobre as lapelas do capote. Um feto observando-me. Um feto de charuto na boca. Mona acenando-me adeus, na janela. Rosto branco e pesado, cabelos caindo selvagemente. Agora, um quarto abafado, respirando regularmente através das guelras, o líquido ainda escorrendo entre as pernas dela, um odor quente e felino, e seus cabelos na minha boca. Meus olhos estão fechados. Respiramos calidamente um na boca do outro. Bem juntos, a América a três mil milhas de distância. Nunca mais quero ver a América. Tê-la aqui na cama comigo, respirando sobre mim, com seus cabelos em minha boca - considero isso um milagre. Nada pode acontecer agora até amanhã cedo...

Acordo de sono profundo, para olhá-la. Uma luz pálida está entrando. Olho seus belos cabelos soltos. Sinto algo rastejando pelo meu pescoço. Olho-a de novo, bem de perto. Seus cabelos são vivos! Puxo o lençol - mais cabelos. Estão enxameando sobre o travesseiro. É um pouco depois do amanhecer. Arrumamos nossas coisas às pressas e saímos furtivamente do hotel. Os cafés ainda estão fechados. Caminhamos e, enquanto caminhamos, coçamo-nos. O dia abre-se em leitosa brancura, traços de céu rosa-salmão, lesmas deixando suas conchas.

Paris. Paris. Tudo acontece aqui. Velhas paredes ruindo e o barulho agradável da água correndo nos mictórios. Homens lambendo os bigodes no bar. Venezianas erguendo-se com estrondo e pequenas correntes sussurrando nas sarjetas. Amer Picon em enormes letras escarlates. Zigzag. Para que lado iremos e por que, ou onde, ou o quê?

Mona está com fome e seu vestido é fino. Nada, a não ser agasalhos para noite, vidros de perfume, brincos bárbaros, pulseiras, depilatórios. Sentamo-nos em um salão de bilhar na Avenue du Maine e pedimos café quente. O lavatório não está funcionando. Teremos de ficar sentados algum tempo antes de podermos ir para outro hotel. Entrementes, cada um de nós cata percevejos nos cabelos do outro. Nervosa, Mona está perdendo a calma. Precisa tomar um banho. Precisa disto. Precisa daquilo. Precisa, precisa, precisa...

- Quanto dinheiro ainda lhe resta?

Dinheiro! Havia-me esquecido disso.

Hotel des États-Unis. Um elevador. Vamos para a cama em plena luz do dia. Quando nos levantamos já está escuro e a primeira coisa a fazer é arranjar dinheiro para mandar um cabograma à América. Um cabograma para o feto com o comprido e suculento charuto na boca.

Entrementes, há a espanhola no Boulevard Raspail - ela está sempre disposta a servir uma refeição quente. Amanhã cedo alguma coisa há de acontecer. Pelo menos, vamos dormir juntos. Agora não há mais percevejos. A estação das chuvas começou. Os lençóis são imaculados...

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Lançado: 21/12


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