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10. Cem Anos de Solidão - Textos publicados na Folha

"Olhe, aí foi onde o mundo se acabou"

(publicado em 06/04/1998)

No primeiro capítulo de suas memórias, o escritor colombiano, prêmio Nobel de literatura, narra viagem que fez com a mãe

Leia a seguir a última parte do primeiro capítulo de "Vivir para Contarlo" ("Viver para Contar"), memórias que estão sendo produzidas pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez e que foram publicadas no dia 22 de março no jornal espanhol "El País".

No último dia 30 de março, a Ilustrada publicou um primeiro trecho desse capítulo, em que Márquez narra a viagem que ele e sua mãe fizeram a Aracataca, vilarejo onde nasceu, para, juntos, venderem a casa da família.

GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
especial para o "El País"

"Está bem", lhe disse. "Diga-lhe a verdade."

Ficamos assim, e alguém que não a conhecesse bem teria pensado que aí terminava tudo, mas eu sabia que era uma trégua para recarregar as energias. Pouco depois dormiu profundamente. Uma brisa tênue espantou os flamingos e saturou o ar novo com um odor de flores. A lancha adquiriu então a elegância de um veleiro.

Estávamos na Ciénaga Grande, outro dos mitos da minha infância. Havia navegado por ela várias vezes, quando meu avô, o coronel Nicolás Ricardo Márquez Mejía, levava-me de Aracataca a Barranquilla para visitar meus pais. "À Ciénaga não há que ter-lhe medo, mas sim respeito", havia-me dito ele, falando dos humores imprevisíveis de suas águas, que ao mesmo tempo se comportavam como um tanque e como um oceano indomável. Na estação de chuvas estava à mercê das tormentas da serra. Desde dezembro até abril, quando o tempo deveria ser manso, os alísios investiam sobre ela com tais ímpetos que cada noite era uma aventura. Minha avó materna, Tranquilina Iguarán, não se arriscava na travessia a não ser em casos de urgência maior, depois de uma viagem de espantos em que tiveram que procurar refúgio até o amanhecer na desembocadura de um rio.

Aquela noite, por sorte, era um remanso. Das janelas da proa, onde saí para respirar pouco antes do amanhecer, as luzes dos botes de pesca boiavam como estrelas na água. Eram incontáveis, e os pescadores invisíveis conversavam como numa visita, pois as vozes tinham uma ressonância espectral no âmbito da madrugada. Apoiado na varanda, tentando adivinhar o perfil da serra, me surpreendeu de repente a fisgada da nostalgia.

Em outra madrugada como essa, enquanto atravessávamos a Ciénaga Grande, meu avô me deixou dormindo e foi à cantina. Não sei que horas seriam quando me despertou a confusão de muita gente por meio do zumbido do ventilador oxidado e o barulho das latas do camarote. Eu não deveria ter mais de cinco anos e senti um grande susto, mas muito rápido se restabeleceu a calma e pensei que podia ser um sonho. Pela manhã, já no porto de Ciénaga, meu avô estava fazendo a barba com navalha, com a porta aberta e com o espelho pendurado no batente. A recordação é precisa: ainda não tinha posto a camisa, mas tinha sobre a camiseta seus eternos suspensórios, largos e com listas verdes. Enquanto se barbeava, continuava conversando com um homem que ainda hoje poderia reconhecer à primeira vista. Tinha um perfil de cordeiro, inconfundível; uma tatuagem de marinheiro na mão direita e levava penduradas no pescoço várias correntes de ouro. Eu tinha acabado de me vestir e estava sentado na cama pondo as botas, quando o homem disse ao meu avô: "Não duvide, coronel. O que queriam com o senhor era atirá-lo na água".

Meu avô sorriu sem deixar de se barbear e, com uma altivez muito sua, replicou: "Ainda bem que eles não se atreveram".

Só então entendi o escândalo da noite anterior e me senti muito impressionado com a idéia de que alguém tivesse jogado o vovô na Ciénaga. Tanto que agora o evoco com todos os seus detalhes visuais e o vejo nos ombros da multidão, sustentado como Sancho Pança e jogado pela borda. Mas aquele momento apagou-se completamente da memória, até 20 anos depois, quando voltou de repente e sem nenhum motivo, exato e nítido, enquanto almoçava com meu tio Esteban Carrillo numa estalagem de Riohacha, na época em que fui vender enciclopédias e tratados de medicina nos povoados de Guajira.

Na época, o vovô tinha morrido e contei a lembrança ao tio Esteban porque achei divertido. Mas ele se levantou num pulo, furioso porque não contei a ninguém imediatamente, e também ansioso para que eu conseguisse identificar o homem na memória, para que esse lhe dissesse quem eram os que tinham tentado afogar seu pai.

Em todo o caso, disse-me Esteban, nunca seria tarde para que ele e seus numerosos irmãos castigassem a agressão. Era a lei de Guajira: a ofensa a um membro da família tinha que ser paga por todos os varões da família do agressor.

Desde então, cada vez que nos encontrávamos em nossos andares errantes pela costa do Caribe, renascia nele a esperança de que eu tivesse me lembrado. Uma noite se apresentou no meu cubículo no jornal, na época em que eu andava esquadrinhando o passado da família para a minha primeira novela que nunca terminei, e me propôs que fizéssemos uma investigação do atentado. Nunca se rendeu. A última vez que o vi, em Cartagena das Índias, já velho e com o coração partido, se despediu de mim com um sorriso triste: "Não sei como você conseguiu ser escritor com uma memória tão ruim".

Pois bem: a recordação desse episódio nunca esclarecido me surpreendeu naquela madrugada em que ia com minha mãe vender a casa, enquanto contemplava as neves da serra que amanheciam azuis com os primeiros raios de sol. Daí em diante, até hoje, fiquei à mercê da nostalgia.

O atraso nos tubos nos permitiu ver em pleno dia as barras de areia luminosas que mal separam o mar e a Ciénaga, onde havia ladeiras de pescadores com as redes postas a secar na praia e meninos esquálidos que jogavam futebol com bolas de pano. Era impressionante ver nas ruas os muitos pescadores com braços mutilados por não atirarem a tempo os cartuchos de dinamite. Ao passar a lancha, os meninos se punham a mergulhar para recuperar as moedas que lhes atiravam os passageiros. Eram mais de 8h quando atracamos em um pântano pestilento, a pouca distância do povoado de Ciénaga. Quadrilhas de carregadores com o lodo nos joelhos nos receberam nos braços e nos levaram cambaleando até o porto, entre uma revoada de galináceos que disputavam as imundícies do lodaçal.

Enquanto tomávamos o café da manhã nas mesas do porto, onde serviam as saborosas "mojarras" da Ciénaga com fatias fritas de banana verde, minha mãe aproveitou a ocasião para uma nova ofensiva de sua guerra pessoal. Sentada junto a mim, sem levantar a vista, voltou a perguntar-me de repente:

"Então, diga-me de uma vez: que vou dizer a seu pai?"

Tratei de ganhar tempo para pensar:

"Sobre o quê?"

"Sobre o único que lhe interessa", disse ela um pouco irritada. "Seus estudos."

Tive a sorte de um comensal impertinente, intrigado com a veemência do diálogo, querer conhecer minhas razões. A resposta imediata da minha mãe não só me intimidou um pouco, como também me surpreendeu. "É que ele quer ser escritor", disse.

"Um bom escritor pode ganhar um bom dinheiro", replicou o homem com seriedade. "Sobretudo se trabalha com o governo."

Não sei se foi por discrição que minha mãe lhe escamoteou o tema, ou por temor aos argumentos do interlocutor imprevisto, mas ambos terminaram compadecendo-se das incertezas da minha geração e repartindo-se as nostalgias. No final, rastreando nomes de conhecidos comuns, terminaram descobrindo que éramos parentes duplos pelos Cotes e pelos Iguarán. Isso nos acontecia naquela época com uma de cada três pessoas que encontrávamos na costa caribenha, e minha mãe celebrava sempre como um acontecimento familiar.

Fomos à estação de trem numa carroça de um cavalo só, talvez o último de uma estirpe legendária, já extinta no resto do mundo. Minha mãe ia absorta, olhando a árida planície carbonizada pelo salitre que começava no lodaçal do porto e se confundia com o horizonte. Para mim era um lugar histórico: um dia, com meus três ou quatro anos, meu avô me havia levado pela mão através daquele ermo ardente, caminhando depressa e sem dizer-me para que, e de repente nos encontramos frente a uma vasta extensão de águas verdes com arrotos de espuma, onde boiava todo um mundo de galinhas afogadas.

"É o mar", me disse.

Desencantado, lhe perguntei o que havia na outra margem, e ele me respondeu sem duvidar: "Do outro lado não há margem". Hoje, depois de tantos oceanos vistos do direito e do avesso, continuo pensando que aquela foi mais uma de suas grandes respostas.

Não lembro quando ouvi falar do mar pela primeira vez nem qual era a imagem antecipada que tinha formado dele por meio dos relatos dos adultos.

Meu avô quis mostrar-me na confusão de seu velho dicionário descosturado e não pôde encontrá-lo. Quando se restabeleceu do desconcerto, remendou com uma explicação que merecia ser válida: "Há palavras que não estão porque todo mundo sabe o que significam". Foi por esse fracasso que levou de Santa Marta um dicionário ilustrado que tinha na lombada um desenho de Atlante com a cúpula celeste nos ombros. Esse foi o primeiro dicionário que tive na vida e o li como uma novela na escola primária, em ordem alfabética e mal o entendendo.

Nele, meu avô encontrou a definição de mar que havia perdido em outro: "Grande extensão de água salgada que cobre a maior parte do globo". Dessa forma tão vaga, é claro que jamais teria reconhecido o mar se meu avô não me dissesse que eu o tinha ante meus olhos. Pois a nenhuma de minhas imagens prévias correspondia aquele mar sórdido, em cuja praia de pedras de calcário era impossível caminhar, entre ramos de mangues podres e fragmentos de caracóis. Era horrível.

Minha mãe devia pensar a mesma coisa do mar de Ciénaga, pois, logo que o viu aparecer na janelinha do carro, suspirou: "Não há mar como o de Riohacha". Nessa ocasião, contei-lhe minhas lembranças de galinhas afogadas e, como a todos os adultos, lhe pareceu que era uma alucinação infantil. Continuou contemplando cada lugar que encontrávamos no caminho, e eu sabia o que pensava de cada um pelas mudanças de seu silêncio. Passamos diante da zona de tolerância do outro lado da linha de trem, com suas casinhas coloridas com tetos oxidados e os velhos papagaios de Paramaribo, que chamavam os clientes em português dos aros pendurados nos parapeitos. Passamos pelo abrigo das locomotivas, com a imensa cúpula de ferro na qual se refugiavam para dormir os pássaros migratórios e as gaivotas perdidas. Passamos pela casa sinistra em que assassinaram Martina Fonsenca. Passamos pelas bordas da cidade, sem entrar, mas vimos as ruas largas e desoladas e as casas de antigo esplendor, de um só andar, com janelas de corpo inteiro, onde os exercícios de piano se repetiam sem descanso desde o amanhecer. De repente, minha mãe apontou com o dedo.

"Olhe", me disse. "Aí foi onde o mundo se acabou."

Eu acompanhei a direção de seu dedo indicador e vi a estação: um edifício de madeiras descascadas, com tetos de zinco e duas águas e balcões corridos e, em frente, uma pracinha árida na qual não podiam caber mais do que 200 pessoas. Foi ali, segundo me precisou minha mãe naquele dia, que o Exército havia matado, em 1928, um número nunca estabelecido de diaristas da banana.

A informação me surpreendeu, pois sempre acreditei que a matança havia sido na estação de Aracataca. Muitas vezes, quando ia com meu avô esperar o trem, tornava a viver o horror do instante imaginário: o militar lendo o decreto por meio do qual os peões em greve foram declarados um bando de malfeitores; os 3.000 homens, mulheres e crianças imóveis sob o sol bárbaro depois que o oficial lhes deu um prazo de cinco minutos para evacuar a praça; a ordem de fogo, o ruído das rajadas incandescentes, a multidão encurralada pelo pânico, enquanto a faziam diminuir palmo a palmo com as foiçadas metódicas e insaciáveis da metralhadora. Ele estava lendo uma carta que acabara de receber e apontou, sem me olhar, para o teto dos vagões.

"Aí", me disse. Depois, acabou de ler a carta e, enquanto a rasgava em pedacinhos minúsculos para certificar-se de que nunca seria lida por sua mulher, me perguntou perplexo:

"Que era que você queria saber sobre as astromélias?"

Minha faculdade de visualizar certos episódios como se os tivesse de fato vivido, em especial durante a infância, causou-me muitas confusões de memória. Mas nenhuma como a de crer que a matança havia sido na estação de Aracataca. No entanto, a segurança de minha mãe não admitia dúvida alguma. E mais ainda: quando lhe perguntei quantos haviam sido os mortos, me respondeu com o mesmo aprumo: "Sete". Embora em seguida me advertisse que não o tomasse ao pé da letra, porque no dia da matança se ouviu dizer que eram mais de cem e em seguida a cifra foi diminuindo até o absoluto nada. De modo que o único em que coincidiam a realidade e minha memória era no fato de que os soldados haviam disparado do teto dos vagões.

A versão de minha mãe tinha cifras tão exíguas e o cenário era tão pobre para um drama tão grandioso como o que eu havia imaginado, que me provocou um sentimento de frustração. Mais tarde falei com sobreviventes e testemunhas, escavei em coleções de imprensa e documentos oficiais e me dei conta de que a verdade não estava de nenhum lado, mas a de minha mãe era a mais provável.

Os conformistas diziam, com efeito, que não houve mortos. Os do extremo oposto afirmavam, sem um tremor na voz, que foram mais de cem, que os haviam visto sangrar na praça e que foram levados em um trem de carga para serem jogados no mar, como a banana rejeitada. De forma que a verdade ficou extraviada para sempre em algum ponto improvável dos dois extremos.

Minha falsa recordação foi tão persistente que, em uma de minhas novelas, contei a matança com a precisão e o horror com que acreditava tê-la visto em Aracataca, pois não conseguia identificá-la com nenhuma versão diferente da que havia incubado durante anos na minha imaginação. Foi assim que aumentei a cifra de mortos para 3.000, em vez de sete, para manter as proporções épicas do drama. A vida real não demorou em me fazer justiça: faz pouco, em um dos aniversários da tragédia, o orador pediu um minuto de silêncio em memória dos 3.000 mártires anônimos sacrificados pela força pública.

O trem chegava a Ciénaga às 8h, recolhia os passageiros das lanchas e os que desciam da serra e continuava até o interior da zona bananeira, um quarto de hora depois. Minha mãe e eu chegamos à estação depois das 9h, mas o trem estava atrasado. Assim mesmo, fomos os únicos passageiros. Ela percebeu logo que entrou no vagão desocupado e exclamou com um humor festivo:

"Que luxo. Todo o trem só para nós."

Sempre pensei que fosse um júbilo falso para dissimular sua decepção, pois os estragos do tempo se viam a olho nu no estado dos vagões. Eram os antigos de segunda, agora convertidos em classe única, mas sem assentos de vime nem vidros de subir e descer nas janelas, mas com bancos de madeira curtidos pelos traseiros quentes e lisos dos pobres. Em comparação com o que foi em outro tempo, não só aquele vagão, mas todo o trem era um fantasma de si mesmo. Antes, tinha três classes. A terceira, na qual viajavam os mais pobres, eram as próprias gaiolas de tábuas em que transportavam bananas ou reses de sacrifício, adaptados para passageiros, com bancos longitudinais de madeira crua. A segunda classe, com assentos de vime e caixilhos de bronze. A primeira classe, na qual viajavam os funcionários do governo e altos funcionários da companhia bananeira, com tapetes no corredor e poltronas forradas de veludo vermelho, que podiam mudar de posição. Quando viajava o superintendente da companhia ou a família ou seus convidados de honra, engatavam na traseira do trem um vagão de luxo com janelas de vidros solares e parapeitos dourados e uma terraça descoberta, com duas mesinhas, para viajar tomando chá.

Não conheci mortal algum que tivesse visto por dentro essa carroça de fantasia. Meu avô tinha sido prefeito duas vezes e, além disso, tinha uma noção alegre do dinheiro, mas só viajava de segunda classe se fosse com alguma mulher da família. E quando lhe perguntavam por que viajava de terceira, respondia: "Porque não há quarta". O mais memorável do trem, no entanto, era a pontualidade. Os relógios dos vilarejos punham a hora certa pelo seu apito.

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