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10. Cem Anos de Solidão - Textos publicados na Folha

Autor vê o século 20 despontar em "Vivir para Contarla"

(publicado em 19/10/2002)

MARCELO PEN
crítico da Folha

A PRIMEIRA ficção publicada de Gabriel García Márquez nasceu embalada por Kafka e pelo desejo de vingar uma afronta. Eduardo Zalamea Borda, crítico e diretor do suplemento literário do jornal "El Espectador", de Bogotá, declarara nas páginas de seu periódico que a nova geração de ficcionistas colombianos seria esquecida pela história.

Ofendido pela nota, García Márquez, então com 20 anos, decidiu escrever um conto e enviá-lo ao "El Espectador". Urdiu-o sob o estímulo de "A Metamorfose", sua leitura de cabeceira.

Zalamea não só publicou o texto como ainda cantou loas: "Nasce um novo e notável escritor". O autor era tão pobre na época que não tinha cinco centavos para comprar o jornal e só conseguiu lê-lo porque alguém deixara um exemplar no banco de um táxi.

Ao ver sua ficção impressa, García Márquez se desiludiu: "O conto é uma merda". Mesmo assim, serviu para que se tornasse conhecido. Esse é um dos muitos episódios de "Vivir para Contarla"', primeira parte da autobiografia do Prêmio Nobel colombiano. Inicia com um pedido de sua mãe, Luisa Santiago, para acompanhá-la a Aracataca, onde venderiam a casa dos avós.

A peregrinação arrancou o escritor da apatia existencial e do impasse criativo em que se encontrava. García Márquez vivia na boemia em Barranquilla, como jornalista free-lancer, ganhando "três pesos por nota diária e quatro por editorial" que produzia para "El Espectador". Abandonara os estudos para se tornar escritor, mas não lograva seguir adiante com seu projeto de romance.

Em Aracataca, teve seu "estalo de Vieira": "O modelo de epopéia que eu sonhava não podia ser outro que o de minha própria família". Ao observar o vilarejo onde passou seus primeiros oito anos, sentiu "uma irresistível ansiedade de escrever para não morrer". Ao voltar para casa, jogou fora o seu antigo romance, que agora lhe parecia artificial, e encetou outro.

Mesmo assim, não saiu de pronto. Faltava-lhe a técnica ficcional. Inspirado em William Faulkner, elaborou um romance contado por meio de várias vozes. Intitulou-o "La Hojarasca", nome dado por sua avó à United Fruit Company, empresa americana que monopolizava o comércio de frutas na região bananeira.

Em "Vivir para Contarla" está a matéria-prima de sua ficção. O avô Nicolás Márquez, que se mudou para Aracataca por ter matado um conhecido num duelo e passou a velhice esperando uma pensão que não chega, é inspiração para "Cem Anos de Solidão" e "Ninguém Escreve ao Coronel". A provação amorosa que sofreram os pais do escritor é a base de "O Amor nos Tempos do Cólera".

García Márquez declara sua admiração por escritores anglo-americanos: Nathaniel Hawthorne, Virginia Woolf, Herman Melville e Faulkner. Septimus, pseudônimo do escritor no jornal "El Heraldo" vem de Septimus Warren Smith, protagonista de "Mrs. Dalloway", de Woolf. O autor também relata que sua primeira intuição de realismo fantástico surgiu quando andava de ônibus e julgou ter visto um fauno: "O essencial para mim não estava no fato de o fauno ser real, mas de eu tê-lo percebido como se fosse".

"Vivir para Contarla" foi estruturado como um "Bildungsroman", um romance de formação. Nesse sentido, acompanhamos a trajetória do autor, desde a infância até seu despertar artístico e político. Não por acaso a obra termina com uma viagem para o exterior, após a edição de "La Hojarasca". Márquez partiu para Genebra, onde faria a cobertura de uma reunião de líderes mundiais. Deveria ficar duas semanas na Europa e permaneceu três anos.

Se a grande reviravolta criativa resultou da viagem que fez com a mãe para a cidade dos avós, o fato político mais marcante do livro foi o levante popular que se seguiu ao assassinato do líder marxista Jorge Gaitán em Bogotá, em 9 de abril de 1948. Márquez confessa que, antes da morte de Gaitán, unira-se às passeatas da oposição "sem convicção política".

Protestos, saques e violência policial acompanharam o episódio. Na cidade, estava o então líder estudantil Fidel Castro. Manifestantes foram metralhados. Um moribundo ensanguentado implora ajuda. O autor confessa ter participado dos saques. Um longo período de repressão se seguiu, no qual morreram pelo menos 200 mil pessoas. Escreve Gabo: "creio que tomei consciência que naquele 9 de abril de 1948 começara na Colômbia o século 20". Um negro começo, que o autor descreve com mestria.

Vivir Para Contarla
ÓTIMO
Autor: Gabriel García Márquez
Editora: Sudamericana

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"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


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