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11. O Velho e o Mar - Textos publicados na Folha

Uma travessia

(publicado em 06/10/2001)

ERNEST HEMINGWAY
Editora Bertrand Brasil

Sabe como é de manhã cedo em Havana, mendigos bêbados ainda dormindo junto às paredes dos prédios, antes mesmo de chegarem as carroças de gelo para os bares? Atravessamos a praça partindo do cais para o Perla de San Francisco a fim de tomar café, e só tinha um mendigo acordado na praia bebendo água da fonte. Mas quando entramos no café e nos sentamos, os três já nos esperavam. Um deles se aproximou.
-- E então? -- perguntou.
-- Não posso -- respondi -- Gostaria de fazer como favor. Mas lhe disse ontem que não posso.
-- Dá o seu preço.
-- Não é isso. É que não posso.
Os outros dois tinham se aproximado também e os três ficaram parados ali com ar triste. Pareciam pessoas de bem e eu gostaria de prestar-lhes o favor.
-- Mil por cabeça -- disse o que falava inglês bem.
-- Não me façam perder a alegria -- respondi -- Não posso mesmo fazer isso.
-- Depois, quando as coisas tiverem mudado, não significará muito para você.
-- Eu sei. Estou com vocês. Mas simplesmente não posso.
-- Por que não?
-- Ganho a vida com o barco. Se o perder, perco o meu meio de vida.
-- Com o dinheiro pode comprar outro barco.
-- Não se estiver na cadeia.
Devem ter pensado que eu queria negociar, porque o primeiro continuou insistindo.
-- Você ganharia US$ 3.000 que lhe iam fazer muito bem mais tarde. Isso não vai durar, você sabe.
-- Olhe -- eu disse. -- Não me interessa quem é presidente aqui. Mas não levo para os Estados Unidos nada que possa falar.
-- Quer dizer que vamos falar? -- disse um que ainda não tinha dito nada. Estava zangado.
-- Eu disse nada que possa falar.
-- Pensa que somos "lenguas largas"?
-- Não.
-- Sabe o que é "lengua larga"?
-- Sei. É língua comprida.
-- Sabe o que fazemos com eles?
-- Não seja duro comigo -- eu disse. -- Você me fez uma proposta. Eu não lhe ofereci nada.
-- Cale a boca, Pancho -- disse ao enfezado o que tinha iniciado a conversa.
-- Ele disse que vamos falar -- disse Pancho.
-- Olhe, eu disse a vocês que não levo nada que possa falar. Bebida ensacada não fala. Garrafões empalhados não falam. Tem outras coisas que não falam. Homens falam.
-- Chineses falam? -- perguntou Pancho em tom zangado.
-- Podem falar, mas eu não os entendo -- respondi.
-- Então não aceita mesmo?
-- É como eu disse ontem de noite. Não posso.
-- Mas você não fala? -- disse Pancho.
O ponto que ele não tinha entendido direito o irritara. E acho que entrou também o desapontamento. Não respondi a ele.
-- Você não é "lengua larga", é? -- perguntou ele ainda zangado.
-- Acho que não.
-- Como assim? Está nos ameaçando?
-- Olhe, não fique tão irritado de manhã cedo. Você deve ter degolado muita gente. Ainda nem tomei café.
-- Então você acha que degolei gente?
-- Não. E não me interessa. Não pode conversar sem ficar zangado?
-- Estou zangado agora. Com vontade de matar você.
-- Ora bolas! -- respondi. -- Você fala demais.
-- Vamos, Pancho -- disse o primeiro. Depois para mim: -- Sinto muito. Seria bom se você nos levasse.
-- Eu também sinto muito. Mas não posso.
Os três caminharam para a porta, eu os acompanhei com o olhar. Eram jovens bem apresentáveis, usavam boas roupas; nenhum usava chapéu, e pareciam ter muito dinheiro. Falavam muito em dinheiro, e falavam o inglês que cubanos ricos falam.
Dois pareciam irmãos, e o terceiro, Pancho, era um pouco mais alto, mas tinha o mesmo aspecto dos outros. Esbelto, boas roupas, cabelo lustroso. No aspecto não era rude como na fala. Devia estar muito nervoso.
Quando saíram e caminharam para a direita, vi um carro todo fechado atravessando a praça na direção deles. Uma vidraça quebrou-se e a bala fez estragos nas garrafas expostas no mostruário que ficava numa parede à direita. Ouvi os disparos e as garrafas estourando em toda a parede.
Pulei para trás do balcão no lado esquerdo e fiquei agachado olhando. O carro estava parado e havia dois sujeitos agachados ao lado dele. Um tinha uma metralhadora Thompson e o outro uma carabina automática de cano serrado. O da metralhadora era negro. O outro usava guarda-pó branco de motorista.
Um dos rapazes estava estirado na calçada, de barriga para baixo, ao pé da janela esfacelada. Os outros dois estavam atrás de uma das carroças de cerveja Tropical paradas na frente do bar Cunard, pegado ao café. Um dos cavalos da carroça estava caído com os arneses, escoiceando, e o outro de cabeça pendida.
Um dos rapazes disparou de um canto traseiro da carroça, a bala ricocheteou na calçada. O negro da metralhadora abaixou-se quase encostando o rosto no chão e deu uma rajada por baixo da carroça, que derrubou pelo menos uma pessoa, a qual caiu para o lado da calçada com a cabeça sobre o meio-fio. Ele ficou lá com as mãos na cabeça, e o motorista atirou nele com a espingarda, enquanto o negro recarregava a metralhadora; mas errou. Podiam-se ver marcas de balas em toda a calçada, como borrifos de prata.
O outro rapaz puxou pelas pernas o que estava caído e o trouxe para trás da carroça. O negro abaixou-se novamente no asfalto para atirar. Aí vi Pancho dar a volta pela traseira da carroça e pisar no cabresto do cavalo que ainda estava em pé. Afastou-se do cavalo, o rosto branco como papel, e visou o motorista com a Luger que segurava com as duas mãos para ter firmeza. Deu dois tiros que passaram por cima da cabeça do negro e mais um que também não acertou.
Acertou num pneu do carro, porque vi poeira se erguendo da rua soprada pelo ar, e a três metros de distância o negro acertou-o na barriga com a metralhadora, gastando talvez a última bala, pois largou a arma em seguida. Pancho caiu sentado e se inclinou para a frente. Tentava levantar-se, ainda com a Luger na mão, mas não podia erguer a cabeça, e o negro pegou a espingarda que o motorista tinha deixado encostada na roda do carro e estourou a cabeça de Pancho. Um negro e tanto.
Tomei um gole da primeira garrafa que encontrei aberta e até hoje não posso dizer do que era. Aquilo tudo me deixou transtornado. Escorreguei por trás do balcão, passei para a cozinha e sai do café. Deixei a praça para trás e nem olhei na direção da multidão que já se formava na frente do café. Passei o portão, entrei no cais e pulei para o barco.
O camarada que o tinha alugado estava a bordo esperando. Contei-lhe o acontecido.
-- E Eddy? -- perguntou Johnson, o camarada que tinha alugado o barco.
-- Não o vi mais depois que o tiroteio começou.
-- Acha que ele foi baleado?
-- Ah, não. Os únicos tiros que entraram no café foram os que quebraram o mostruário. E isso foi quando o carro vinha atrás deles. Quando atiraram no rapaz bem na frente da janela. Atiraram num ângulo assim...
-- Você fala com muita certeza.
-- Eu estava olhando.
Aí, levantando os olhos, vi Eddy vindo pelo cais, mais alto e desleixado do que nunca. Caminhava com as juntas em movimentos desencontrados.
-- Olhe ele aí.
Eddy parecia péssimo. Já não estava bem de manhã cedo, agora parecia bem pior.
-- Onde esteve? -- perguntei.
-- No chão.
-- Viu tudo? -- perguntou Johnson.
-- Não me fale nisso, sr. Johnson. Me sinto mal só de pensar.
-- É melhor tomar um drinque -- disse Johnson. E para mim: -- Vai sair?
-- Você é quem sabe.
-- Como será que vai ser o dia?
-- Como ontem. Talvez melhor.
-- Então saímos.
-- Logo que chegarem as iscas.
Fazia 13 semanas que estávamos saindo para pescar na corrente e eu ainda não tinha visto o dinheiro de Johnson, a não ser US$ 100 que ele me deu para pagar o cônsul e a licença, comprar comida e pôr gasolina no barco antes da travessia. Eu estava fornecendo todo o equipamento e ele alugara o barco a US$ 35 por dia.
-- Preciso pôr gasolina-- eu disse a Johnson.
-- Certo.
-- Preciso de dinheiro para isso.
-- Quanto?
-- Custa 28 centavos o galão. Preciso pôr 40 galões. Ao todo, US$ 11,20:
Ele tirou US$ 15 dólares.
-- Quer aplicar o resto em cerveja e gelo? -- perguntei.
-- Ótimo. Abate no que eu lhe devo.
Eu estava achando que três semanas era muito tempo para ficar a serviço dele, mas, se ele cumprisse o acertado, que diferença faria? Só que ele devia pagar semanalmente. Deixei correr um mês e acabei recebendo o dinheiro. No princípio achei bom deixar o barco nas mãos dele, só nos últimos dias é que fui ficando nervoso, mas evitei dizer qualquer coisa com medo de levar bala. Se ele era bom no negócio, quanto mais tempo durasse, melhor.
-- Pegue uma garrafa-- disse-me ele abrindo uma caixa de cerveja.
-- Não, obrigado.
Nesse momento o negro que nos fornecia isca apareceu no cais e eu disse a Eddy para preparar para zarpar.
O negro subiu a bordo com a isca, soltamos as amarras e fomos nos afastando do cais, o negro iscando duas cavalas, enfiando o anzol pela boca e empurrando a ponta pelas guelras, abrindo o lado e atravessando-o com o anzol, fechando a boca com o arame da guia e prendendo bem o anzol para ele não escorregar e a isca ir se arrastando sem girar.
Era um negro retinto, inteligente e triste, com um colar de contas azuis vodu no pescoço, por baixo da camisa, e na cabeça um velho chapéu de palha. O que ele mais gostava de fazer a bordo era dormir e ler jornais. Mas sabia iscar muito bem, e ligeiro.
-- Você é capaz de iscar assim, capitão?-- Johnson me perguntou.
-- Sim, senhor.
-- Por que precisa de um negro para fazer isso?
-- Quando aparecer peixe grande você vai saber.
-- Como assim?
-- O negro isca mais depressa do que eu.
-- Eddy não pode iscar?
-- Não, senhor.
-- Me parece uma despesa desnecessária. --Ele pagava US$ 1 por dia ao negro e o negro dançava rumba todas as noites. Já estava ficando sonolento.
-- Ele é necessário-- eu disse.
Já passávamos as sumacas com seus carros de peixe ancoradas em frente ao Cabarñas, e os esquifes também ancorados pescando peixe-carneiro perto do Morro. Aprumei o barco para onde o golfo formava uma linha escura. Eddy lançou as duas armadilhas grandes e o negro iscou três varas.
Estávamos perto da corrente, e quando já íamos quase entrando nela vimos a mancha avermelhada com os redemoinhos habituais. Soprava uma brisa leve e logo apareceu uma infinidade de peixes-voadores, daqueles grandões que parecem a fotografia de Lindbergh atravessando o Atlântico.
Esses peixes-voadores grandes são o melhor sinal. Até onde a vista alcançava era aquela alga amarelo-clara aqui e ali, que indica que a corrente principal é ali mesmo, e à nossa frente bandos de aves acompanhavam um cardume de atuns pequenos, pulando; tão pequenos que não deviam pesar nem um quilo.
-- Pode começar quando quiser-- eu disse a Johnson.
Ele pôs o cinturão e correias e pegou vara grande com o molinete Hardy de 500 metros de linha número 36. Olhei para trás e via isca girando bem e acompanhando a esteira. Vi também as duas armadilhas que afundaram e subiam. A velocidade era quase ideal; aprumei o barco para dentro da corrente.
-- Não tire o cabo da vara do soquete na cadeira --eu disse a Johnson. -- Assim a vara não fica tão pesada. Não solte o arrasto por enquanto, espere o peixe morder. Se um peixe morder com o arrasto solto ele puxa você para fora do barco.
E dizia essas mesmas coisas todos os dias a Johnson, mas não fazia mal. Só 2% dos pescadores sabem pescar. E os que sabem passam a maior parte do tempo apalermados e querem utilizar linha que não serve para peixe grande.

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