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A velhice como metáfora

(publicado em 20/10/2002)

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

Emilio Brentani tem 35 anos, é funcionário de escritório e um romancista razoavelmente conhecido na cidade onde mora. Ele acaba de conhecer Angiolina, uma louraça do subúrbio que vem quebrar a sua rotina, partilhada com a irmã Amalia. A moça tem poucos recursos e, ao que parece, trabalha em "casa de família". Os dois estão no início de um arriscado caso amoroso. Em torno dessa história mínima, banal, Italo Svevo (aliás, Ettore Schmitz) constrói "Senilidade" (1898), um dos primeiros romances modernos da literatura italiana.

Muita gente até hoje estranha o título do livro. Svevo tinha 37 anos quando o publicou, sem nenhum sucesso. O protagonista, como já foi dito, é um senhor de 35 anos. Portanto a idéia de velhice estampada no título não remete ao plano natural. Trata-se de outra coisa, mais subterrânea que a decadência do corpo.

A falta de vitalidade do protagonista e a sua inépcia são expostas logo de saída, e seu perfil já antecipa o daqueles futuros homens sem qualidades que estarão no centro da literatura do século 20.

O livro começa abruptamente, com um diálogo em que Emilio deixa claro a Angiolina sua intenção de viver um caso sem compromisso --entenda-se, sem casamento. Angiolina a princípio aceita o trato, submetendo-se à imposição do parceiro. A partir de então, começa a história do embate entre dois mundos diferentes: ele, um retraído empregado de escritório com veleidades literárias; ela, uma "jovem do povo", exuberante, expansiva e quase sem veleidades.

Espécie de Oblomov italiano, Brentani padece de uma tremenda dificuldade de agir, seja na vida prática, seja no campo dos afetos. É um abúlico. E é óbvio, desde o início, que a sua história de amor não dará certo. Mas a previsibilidade, aqui, é o que menos importa. O romance avança de forma linear, passando por todas as etapas do enamoramento, da dúvida, das pequenas ciladas e traições até se esgotar num fracasso mesquinho.

O lugar onde vivem as personagens é Trieste, cidade na fronteira entre o antigo Império Austro-Húngaro e a Itália, predominantemente bilíngue. A atmosfera é a da belle époque, mas sem brilho. Vale lembrar que estamos na "cidade do trabalho", como diz três vezes o narrador. "Senilidade" é também o grande romance dessa cidade ambígua, passado em suas ruas centrais, na periferia e nas proximidades do mar.

Mas o que era para ser um simples caso de amor se frustra no sentido de isolamento que vai tomando os personagens, indivíduos tão estranhos uns aos outros quanto a si mesmos. A crescente obsessão de Emilio por Angiolina é apenas sintoma de uma solidão coletiva. Na raiz do estranhamento estão os papéis sociais bem demarcados, expostos ao ridículo dos contratos e preceitos vigentes na sociedade da época. E, no centro de todos os contratos, o casamento.

Precisão discreta

Sem querer aderir a ele, Emilio tenta obter o máximo proveito (lucro) da situação. Em Angiolina ele quer uma mulher que corresponda ao seu ideal de sublime e, ao mesmo tempo, satisfaça suas pulsões eróticas e de poder. Mas o pólo de dominação rapidamente se inverte, e a relação se transforma naquilo que o organizador das obras completas de Svevo na Itália, Mario Lunetta, chamou de "duplo jogo de massacre". Para quem assistiu aos filmes de Buñuel, difícil não se lembrar de "Esse Obscuro Objeto do Desejo" quando se lê este romance.

Obcecado por um ideal de amor convencional e contraditório, Brentani chega a intuir em alguns momentos a possibilidade de uma vida mais livre e desimpedida. Mas não consegue, está emparedado na própria subjetividade de ferro, na moral burguesa que lhe dá forma, assim como o Bentinho de Machado --seu contemporâneo-- se vê imobilizado na trama das convenções sociais.

Svevo movimenta essas peças com uma precisão discreta, realçando o que há de ridículo em cada um, expondo os vexames cotidianos, escancarando bloqueios psicológicos e barreiras de classe, o que lhe permite uma aproximação neutra do "homem comum enfim". Nesse movimento, o escritor anula a distância entre autor e personagem, antecipando o moderno autobiografismo: Brentani é um duplo de Ettore Schmitz/Svevo.

O uso do monólogo interior, a linguagem plástica da narrativa, perfeitamente recriados por Ivo Barroso, vão moldando não só o desmoronamento da consciência de Emilio, mas também do conjunto de valores que o sustenta --ou que o torna insustentável. Sofrendo a ação desse processo, Brentani sonha uma segunda vida, como se a primeira tivesse sido gasta na frustração e na "velhice" ou triturada no que Eugenio Montale chamou de "épica da causalidade cinzenta da vida de todos os dias".

No fim das contas, Emilio vive sua tardia educação sentimental. A irmã com quem mora enlouquece como Ofélia e morre. Angiolina foge para Viena com um caixa de banco que dera um desfalque. E Brentani volta apaziguado à "normalidade" de uma vida sem desejos.

Em "Senilidade", a crítica ao conformismo e à inação da vida contemplativa termina, no limite, se voltando contra o próprio ofício da literatura. Anos mais tarde, num de seus ensaios, um Svevo consagrado e já velho se referirá a ela como se falasse de uma doença: "A esta altura já eliminei definitivamente de minha vida aquela coisa ridícula e prejudicial que se chama literatura".

Senilidade
268 págs., R$ 28,00
de Italo Svevo. Trad. de Ivo Barroso. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, RJ, tel. 0/xx/21/2537-8770).

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