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13. Angústia - Textos publicados na Folha

A narrativa em negativo de São Bernardo

(publicado em 09/03/2003)

por BEATRIZ RESENDE

Triste de doer os ossos, "São Bernardo", de Graciliano Ramos, é romance absolutamente fundamental no quadro da moderna literatura brasileira. Paulo Honório --"cinquenta anos perdidos, cinquenta anos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros"-- e Madalena --"mulher prendada, bonita, boa em demasia"-- e a impossibilidade de "afiar a sintaxe" de um pela do outro. Um ninho de reacionários que consideram "a democracia um contra-senso", bichos e homens-bichos, gente pobre e oportunista compõem o relato que se desenrola de forma intencionalmente desconfortável diante de um leitor que, ao nele penetrar, deve deixar do lado de fora toda esperança.

Partindo da estratégia narrativa do romance dentro do romance, Graciliano exercita a realização da negatividade retirando do autor ficcional todos os predicados necessários à escritura romanesca: imaginação, sensibilidade, prazer, amor, habilidade no uso da língua, vocabulário erudito, gosto pela literatura. Sem metáforas, mas dispondo da diversidade da fala local e dos ditados de gente do campo, esse homem de dedos excessivamente grossos, cuja razão de viver foi apossar-se das terras de S. Bernardo, precisa escrever a sua história para sobreviver à tragédia por ele mesmo causada. E aí está o primeiro grande desafio que o romance propõe. O pacto que estabelece com o leitor implica a negação de qualquer simpatia por aquele que conduz a narrativa.

Construção pelo avesso - Paulo Honório é o homem a quem a vida agreste tornou agreste. Às vésperas da Segunda República, ele é senhor de terras reacionário, autoritário, interessado apenas em transformar em lucro a propriedade, os animais e as pessoas que o cercam. No exercício da construção pelo avesso, esse homem incapaz de paixão enlouquece de ciúme pouco após o casamento com Madalena, ela sim capaz de domar a escrita, de apreciar um livro, de buscar a justiça, de respeitar o outro. Porém também ela incapaz de amor, pelo marido ou pelo filho. Ou quem sabe não, já que é vista pelo narrador, o marido cego pela desconfiança, incapaz de vislumbrar ternuras.

O ciúme e a violência vão trazendo de volta o assassino de outrora. O arbítrio e a dominação encontram na paranóia pasto fácil onde o desejo de crime pode crescer. Mas na escritura do homem sem letras, "grosseiro, monstruosamente grosseiro", o esperado em um universo romanesco não pode ter lugar, e a cena de Otelo pertence aos clássicos. Na construção por inversos, Madalena vai conseguir a liberdade, vai escapar ao domínio insano, não pela vida, e sim pela morte.

O que a condena é a folha perdida de carta endereçada a homem e lida pelo marido em quem "ferviam (...) violências desmedidas", tornando-o incapaz de enxergar palavras. O suicídio da vítima garante-lhe o escape, a livra das noites de choro, é a única forma de liberdade possível, é liberdade que nenhum déspota lhe pode tirar. O envenenamento a liberta e decreta o sofrimento perene de seu algoz.

Todo suicídio é um enigma, e a maldição que lega aos sobreviventes é a necessidade de esclarecer suas razões. A carta deixada é o texto onde Madalena, a que sabe da escrita --"Literatura, política, artes, religião... Uma senhora inteligente, a d. Madalena. E instruída. É uma biblioteca"--, poderá mostrar ao leitor por que preferira abrir mão da vida; é a informação decisiva que cabe ao narrador do romance partilhar com o seu leitor.

Caminhos tortuosos - O ficcional criador do texto, no entanto, ainda uma vez repele aquele mesmo destinatário para quem escreve. Como os sentimentos e os propósitos da loura senhora esbarraram na brutalidade e egoísmo de Paulo Honório, a curiosidade do leitor se defrontará com a mesquinhez de quem conta a história. "Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Li-a saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita."

Essa subtração da narrativa será transformada por Leon Hirszman, no filme "São Bernardo", de 1971, em um dos grandes planos do cinema brasileiro. Paulo Honório dentro da casa, o espectador fora.

"Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste espalha folhas secas no chão."

Tomado por fome e sede de emoções, cenários, diálogos que lhe foram negados e diante da impossibilidade de qualquer simpatia pelo narrador, o leitor chega ao fim do romance.

Termina, então, a leitura desconhecendo as razões de Madalena e se perguntando que caminhos tortuosos foram aqueles que o conduziram, em doloroso e contraditório prazer, através de uma das mais extraordinárias narrativas de nosso universo literário.

Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano), entre outros.

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