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14. A Revolução dos Bichos - Textos publicados na Folha

O admirável mundo velho das drogas

(publicado em 27/02/1994)

SÉRGIO AUGUSTO
Da Sucursal do Rio

Cafeína, nicotina, álcool, ópio, maconha, cocaína. Aparentemente, não tem saída: sem algum tipo de droga, o homem não vive. O que seria das impolutas criaturas que não conseguem dormir sem um sonífero nem encarar rebordosas sem um Lexotan? Quantas pessoas do maior respeito não reencontram a alegria de viver através do Prozac? "A necessidade de felicidade e bem-estar é um fato da vida como a fome, a sede e o sexo." As aspas são para Ronald K. Siegel, psicofarmacologista da Universidade da Califórnia, consultor do governo norte-americano e da Organização Mundial de Saúde, autor do livro "Intoxication: Life in Pursuit of Artificial Paradise", editado há quatro anos pela Dutton. Para ele, não adianta proibir nem reprimir o consumo de drogas. "O melhor que temos a fazer é descobrir algo que não intoxique nem vicie para substituir o álcool e outras drogas, lícitas e ilícitas".

O problema é que as tentativas feitas até hoje resultaram desastrosas. Houve época em que os viciados em ópio eram tratados com morfina, depois tiveram de tratar os viciados em morfina à base de heroína -um autêntico círculo vicioso. Um dia, quem sabe, chegaremos à Soma. Não, não me refiro àquilo que o dicionário define como "operação de adição". Soma era o nome da droga da felicidade inventada por Aldous Huxley no romance "Admirável Mundo Novo". Felicidade por assim dizer. Na distopia de Huxley, as pessoas tomavam a psicodélica Soma para ficarem plenamente ajustadas aos padrões biológicos e comportamentais impostos pela tirania em que viviam. Não obstante, a droga, como o Prozac, melhorava o astral das pessoas.

Modelo definitivo de totalitarismo farmacológico, o "brave new world" de Huxley, imaginado há pouco mais de 60 anos, está cada vez mais próximo de nós, enquanto a distopia de George Orwell, "1984", que tão expressivamente parecia ilustrar a opressão vigente em algumas sociedades contemporâneas, se perde de vista no horizonte das especulações futuristas. Com a derrocada do comunismo, o pesadelo orwelliano perdeu seu impacto original. Mas mesmo antes da derrocada já sabiamos que as sinistras previsões de Orwell haviam sido superadas por outras formas mais astuciosas e seguras de tirania, vaticinadas com maior rentura por Huxley.

No país imaginário de Huxley, as pessoas não precisam da coerção panóptica de um Big Brother para perder a capacidade ou o interesse de pensar. Orwell temia (assim como Ray Bradbury) pelo futuro dos livros, ameaçados de extinção por um tipo de obscurantismo plúmbeo e truculento, padrão Ceausescu. Huxley, por sua vez, receava que não houvesse motivos para a extinção de livros pela falta de pessoas interessadas em leitura. Na didatura de Orwell, as informações não circulavam livremente, ao passo que no maravilhoso mundo novo de Huxley era justamente a abundância de informações em circulação que abria caminho para a passividade e o egoísmo.

Em "1984", as pessoas são controladas por coisas que as desagradam. Já em "Brave New World", as pessoas são controladas por coisas que lhes dão prazer, como a Soma e aqueles filmes ("feelies") produzidos para lhes diminuir a pecepção e despertar uma falsa euforia. A televisão, em "1984", é um estorvo ubíquo, jamais uma válvula de escape, um fator de distração, ainda que insidiosamente deletério. Resumindo: mais perspicaz e visionário que Orwell, Huxley não valorizou apenas a importância de drogas do gênero Prozac como modeladores psíquicos, mas também a entropia das "mass media" e a pujança fantasista do cinema. Por isso sua distopia sobreviveu melhor aos imprevistos do tempo e da realidade. Olhe em torno e confira as maravilhas.

Um inventário, mesmo precário, da literatura especulativa dos últimos 20, 30 anos, comprovaria a prevalência de Huxley sobre Orwell no que diz respeito à hierarquia de temas e questões. Sobretudo a partir dos anos 60, quando virou moda achar que as drogas abriam as portas da percepção e os portões da felicidade, diversos autores de ficção científica conceberam distopias precipitadas pela disseminação de estranhos fungos, exóticas ervas e miraculosas bolinhas. Um deles foi Philip K. Dick, famoso pela história que deu origem a "Blade Runner", que, a exemplo de Huxley, nada tinha de careta. Em "A Scanner Darkly", por ele publicado em 1977, drogas provocavam uma piração geral dos sentidos, reprisando quase os mesmos efeitos anteriormente aventados pelos ingleses Charles Plant e M. John Harrison em, respectivamente, "The City Dwellers" e "The Centauri Device".

Claro que nem sempre as drogas foram pintadas como engenhos demoníacos. Há 30 anos, em "Sign of the Labrys", Margaret St. Clair inventou um cogumelo capaz de ampliar o poder de conscientização das pessoas, sem efeitos colaterais. O herói de "Downward to the Earth", escrito por Robert Silverberg, no final da década de 60, descobria uma nova e alegre maneira de se harmonizar com a vida através de uma droga, se não me engano extraterrena. Menos transcendente, mas também euforizante, era o alucinógeno consumido numa nice pelos personagens de "The Butterfly Kid", de Chester Anderson.

De modo geral, repito, a droga não costuma ser mais que uma droga na prosa futurista, gerando siderados siderais e conflitos de dimensões apocalípticas. Depois de invadida por um sucedâneo do LSD, a Europa se transformava num inferno psicodélico em "Barefoot in the Head", de Brian W. Aldiss. Menos ominoso não foi o destino da América previsto há 23 anos por Norman Spinrad, no conto "No Direction Home". Daqui a não sei mais quanto tempo, os americanos estariam tão viciados em bolinhas que o maior barato seria suprimi-las da dieta diária e enfrentar a realidade sem assistência química.

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