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Vargas Llosa, o multiplicador de opiniões

(publicado em 28/12/2002)

CASSIANO ELEK MACHADO
Da reportagem local

Existem escritores que se casam com a ficção e dividem cama, mesa e banho com a fantasia e a imaginação mais louca. E existem os que desposam a realidade, e juntam seus trapos literários a tudo o que é político, histórico e social.
Mario Vargas Llosa é um bígamo. Desde que surgiu no cenário literário, no final dos anos 50, o escritor fez um infinito zigue-zague entre criação e poder: do romance engajado a uma aventura quase literária --e fracassada-- de tentar assumir a presidência de seu país, o Peru, em 1990.
Nessa trajetória, esse ex-esquerdista, hoje liberal ferrenho, nunca deixou de opinar. Em ensaios de verve literária, Llosa comentou desde a Guerra da Criméia ao Carnaval brasileiro.
Uma amostra consistente dessa atuação está disponível agora no Brasil. O volume "A Linguagem da Paixão", recém-lançado por aqui pela editora Arx, reúne artigos escritos entre 1983 e 2000, para o diário espanhol "El País".
Aos 68 anos, o autor de "A Guerra do Fim do Mundo" e "Conversa na Catedral", entre tantos outros que o credenciam como um dos maiores narradores da história da América Latina, interrompeu a correção das provas de seu próximo romance, sobre a feminista Flora Tristán, para falar com a Folha sobre seus ensaios, por telefone, de Lima, no Peru. Leia trechos abaixo.
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Folha - Um dos temas sobre os quais o sr. trata no livro "A Linguagem da Paixão" é o futuro da literatura. O sr. afirma que a boa ficção ficará cada vez mais restrita a um enclave. O livro está condenado eternamente às elites?

Mario Vargas Llosa - Espero que não. Muitos defendem que com o desenvolvimento dos meios audiovisuais e novas tecnologias o livro vai perder audiência e ficar relegado às margens da vida cultural. Se isso acontecer, viveremos nosso maior empobrecimento. Telas, sejam de que tipo, não têm condições de substituir com êxito o livro como produtor de grande cultura. A literatura das telas será superficial, como novelas de TV.

Folha - Mas o sr. acha que existe risco de que o livro desapareça?

Llosa - Não creio. Não sou tão pessimista como George Steiner, por exemplo. Essa é uma escolha, isso não está escrito e se acreditamos que o livro deve sobreviver e coexistir com as telas, temos de organizar uma educação em que os livros sejam valorizados.

Folha - O sr. também afirma em seu livro que os best sellers estragam os leitores. Que pensa o sr. de um argumento comum segundo o qual alguém que não leia pode encontrar a porta de entrada ao mundo do livro em Paulo Coelho?

Llosa - Houve uma época na história em que a grande literatura era ao mesmo tempo a mais popular. É o século 19. Os grandes dessa época, Victor Hugo e Dickens, são imensamente populares. No século 20 aconteceu o divórcio. Ganha força uma literatura popular que passa a ser uma produção de segunda categoria. A literatura de criação, por outro lado, migra a um público pequeno, disposto a se esforçar. Não acho que os casos se misturem hoje.

Folha - Nunca?

Llosa - Existem casos excepcionais, de livros ou escritores que conseguem ser ao mesmo tempo populares e enormemente criativos. Em espanhol, há "Cem Anos de Solidão", de García Márquez. Mas um grande escritor como Guimarães Rosa ficará sempre em um público minoritário, pois exige um esforço intelectual como o que pede um Joyce, um Proust.

Folha - O sr. escreve em "Linguagem da Paixão" que quando esteve em Jerusalém, nos anos 70, teve a percepção de que ficção e história não são alérgicas uma à outra. Como o sr. vê uma produção literária forte hoje que faz uma mescla desses elementos, caso do alemão W.G. Sebald, do italiano Claudio Magris, do espanhol Javier Cercas?

Llosa - Esta é uma pergunta interessante. Uma das manifestações mais originais e atuais da literatura é essa que está muito mergulhada na história contemporânea, mas que não renuncia à imaginação. Os autores mencionados me parecem bem representativos de uma literatura que penso ser muito de nossa época. Esta tendência é excelente por que enriquece uma literatura light que esteve muito na moda nos anos 80 e 90.

Folha - O sr. critica o "light", mas em seu livro também bate pesado em uma literatura "heavy", a chamada pós-moderna. Por que o sr. acha que ler um autor como Derrida é "total perda de tempo"?

Llosa - Sou muito interessado por crítica, mas há um tipo de crítica que não me parece feita para promover a literatura, mas para provocar alergia a ela. Derrida me parece o melhor exemplo. Faz coisas obscurantistas, cheia de armadilhas, pretensiosas, mentirosas. Deveríamos romper com a veneração ao incompreensível, com a renúncia à estética.

Folha - Falando em estética, o sr. afirma no livro que "hoje tudo pode ser arte e nada o é"...

Llosa - É que no mundo das artes plásticas hoje desapareceram totalmente os cânones. Por sorte isso não aconteceu totalmente na literatura. Na arte não, não há nenhum tipo de consenso mínimo entre o que é belo, o que é feio, o que é novo, o que é velho. Hoje só se valoriza o escândalo. Para mim essa é a decadência completa das artes plásticas contemporâneas.

Folha - Quais seriam os cânones literários sobre os quais o sr. fala?

Llosa - Em literatura ainda é possível diferenciar por exemplo entre a poesia de um T.S. Eliot e certos jogos pós-modernistas.

Folha - E "Os Sertões", de Euclydes da Cunha? O livro no qual o sr. se inspirou para fazer "A Guerra do Fim do Mundo" e que acaba de completar cem anos é um cânone?

Llosa - Sigo a reputando como uma das obras-primas que já foram feitas no continente, um livro fundamental para entender o que é e o que não é a América Latina, um manual ainda não superado sobre nossos erros.

Folha - Os erros estão superados?

Llosa - Em boa parte eles estão vivos. A prova é que seguimos nos matando, que ainda temos sociedades fundadas no atraso. Talvez exista hoje mais pobreza aqui do que na época de "Os Sertões".

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