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A paixão do impossível

(publicado em 13/04/2003)

ROSA MORA
do "El País"

Desde seu tempo de estudante, Mario Vargas Llosa se interessou pela figura da feminista francesa de pai peruano Flora Tristán. Há três anos, começou a escrever um romance sobre ela, no qual resolveu incorporar seu neto, o pintor Paul Gauguin. O resultado é "O Paraíso na Outra Esquina" [ed. Arx, trad. Vladir Dupont, 495 págs., preço não definido], uma ambiciosa história em que o escritor recria o século 19, tão cheio de utopias, por meio da vida apaixonada de Tristán e Gauguin.
O "jogo do paraíso" é uma antiga brincadeira conhecida por crianças de muitos países. Um menino ou uma menina corre até outro e lhe pergunta: "O paraíso fica aqui? -- Não, fica ali na esquina". E segue a correria. O paraíso está sempre além. Flora Tristán (1803-44) brincou disso quando criança. Também seu neto Paul Gauguin (1848-1903).
Flora Tristán, ou "Madame-la-Colère", foi uma mulher indômita, que conseguiu se livrar de um marido brutal, mesmo sob o risco de ser baleada por ele, como de fato aconteceu; que lutou pela independência feminina e, em meio a enormes dificuldades, espalhou pela França seu projeto de criação de uma União Operária.
Paul Gauguin descobriu tardiamente sua vocação artística e, quando esta se manifestou, achou que "a mal chamada civilização européia" havia destruído "a liberdade e a felicidade". Foi até os mares do Sul em busca da natureza e do primitivo. A avó sonhava com o Palácio dos Trabalhadores; o neto, com a Casa do Prazer. Por meio deles, Mario Vargas Llosa recria o século 19, um período que esbanjou utopias.
*
Flora Tristán nasceu em 1803. Paul Gauguin morreu em 1903. As duas vidas cobrem um século inteiro.

Não é apenas uma questão cronológica. Os dois mergulharam de cabeça na realidade do seu tempo, na política, idéias, artes. Absorveram sua época como esponjas e deixaram marcas. Para mim, foi muito gratificante entranhar-me nesse mundo tão rico e que teve grande continuidade no nosso século.

No 20 ou no 21?

Nos dois. Flora Tristán lutou por uma utopia que tinha muito de pragmático. Ela não conseguiu o Paraíso, mas, se compararmos as condições de vida da mulher no século 19 com as do nosso tempo, veremos que se deu um passo gigantesco. Também se conquistaram outras coisas em que ela acreditava, como a seguridade social e uma regulamentação mais justa do trabalho e da educação das crianças.

É incrível a convicção dela de que, sozinha, conseguiria montar a União Operária.

A grande novidade está no fato de ela fazer isso em um mundo de homens. Em seus últimos oito meses, ela chegou a criar comitês, pequenos grupos. O que teria acontecido não fosse sua morte prematura? Talvez tivesse conseguido fazer sua revolução.

Ela conheceu Karl Marx, como o sr. conta em seu livro?

Isso ninguém sabe. O certo é que os dois frequentaram a mesma editora. Ela, levando seu livro sobre a União Operária; Marx, com "Os Anais Franco-Alemães". Também se sabe que ela recebeu a visita de um companheiro alemão de Marx.

Em seu livro desfilam as utopias dos sansimonistas, dos fourieristas, dos icarianos, dos owenistas, dos cartistas. O que foi feito delas?

Foram varridas pela utopia marxista.

As utopias são coisas do passado?

Agora as utopias estão nas mãos dos fundamentalismos religiosos, mas já não se luta por uma sociedade sem classes, e sim por Alá, por Muhammad ou pelo Corão.

E as idéias surgidas no Fórum Social Mundial de Porto Alegre?

Em Porto Alegre surgiram sentimentos que mobilizam grandes parcelas da população em todo o mundo, mas sem articulação ideológica. Há uma atitude de recusa, mas ninguém disse ainda o que se quer pôr no lugar daquilo que se recusa.

Então, qual é o futuro nestes tempos confusos?

A democracia. Por mais lento que seja seu avanço, superando obstáculos, buscando um equilíbrio entre o coletivo e o individual. Temos que continuar avançando por um caminho que, mais do que utópico, seja pragmático.

Não há mais espaço para grandes sonhos?

Aonde nos levaram as grandes utopias sociais? Aos genocídios, aos campos de concentração, ao Holocausto, ao gulag, à Revolução Cultural, a ditaduras intoleráveis. É preciso continuar buscando o paraíso, a utopia, mas nas artes, nas ciências, nos projetos estéticos. Não no campo social.

Gauguin renega a civilização européia.

Ele achava que a civilização estava definhando por viver tão voltada para si mesma, que a arte tinha perdido sua vitalidade, monopolizada por uma panela de artistas, críticos e galeristas. Com Gauguin surgiu uma idéia extraordinariamente fértil que teria grandes consequências para o futuro da arte: o encontro da Europa com outras culturas. Depois de Gauguin, ocorreu o encontro com a arte africana, que foi fundamental para artistas como Picasso, para o expressionismo alemão ou para o muralismo mexicano de Rivera, que ficou fascinado com a primeira exposição de Gauguin realizada em Paris após sua morte.

O crítico José Miguel Oviedo afirma que na primeira etapa de sua produção literária predominava um estilo instintivo e dramático, enquanto em "O Paraíso na Outra Esquina" a ação é narrada por meio de reflexões e lembranças, o que reforça sua qualidade reflexiva.

Neste romance as idéias têm muita importância. Procurei retratar um mundo que é movido por uma soma de valores, de propostas artísticas, de ideologias... Eu não podia escamotear essas coisas. Talvez as idéias desempenhem aqui um papel mais importante que em outros romances meus, mas elas funcionam como um contexto, como um pano de fundo. A narração se dá a partir da própria intimidade dos personagens, que são de carne e osso.

O sr. vinha embalando a idéia de escrever sobre Flora Tristán há muito tempo, talvez por causa de sua ligação com o Peru.

Desde meu tempo de estudante. Eu sabia vagamente que Gauguin era neto dela, mas só quando comecei a escrever o livro é que resolvi incorporá-lo como personagem. Há muitas coincidências entre os dois: personalidade, vontade de ir contra a corrente, temeridade. Daí surgiu a idéia de contrapô-los.

Com qual dos dois o sr. ficaria?

Com os dois. A idéia social de Flora e a idéia individual de Gauguin são fundamentais e complementares. Eu trabalho sobre a busca do impossível. A paixão do impossível é uma frase que Lamartine escreveu em um ensaio sobre "Os Miseráveis", de Victor Hugo. Ele dizia que é muito perigoso inocular nos povos a paixão do impossível.

O sr. escreve que alguns romances tiveram certa importância no século 19, independentemente de sua qualidade. Por exemplo, "Rerahu", de Pierre Loti, ou "Viagem a Icária", de Étienne Cabet.

Eram muito ruins, mas "Rerahu", o primeiro romance de Loti, despertou essa paixão pela Polinésia, pelo paraíso natural, em artistas como Gauguin e Van Gogh. Já "Viagem a Icária", além de ruim, era didático e chato, mas nele aparece pela primeira vez o conceito de comunismo. Foi um livro que ganhou muitos seguidores.

O sr. acha que hoje um romance poderia ter essa capacidade de convencimento?

Não. Por isso eu me sinto um escritor oitocentista.

Tradução de Sergio Molina.

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