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17. O Processo - Textos publicados na Folha

Franz Kafka não vai à praia nem às piscinas dos hotéis

(publicado em 14/10/2000)

CARLOS FUENTES
especial para a Folha

"Você já leu Kafka?", perguntou Milan Kundera. "Claro", respondi. "Creio que seja o escritor indispensável do século 20." Kundera sorri de maneira brincalhona: "Você o leu em alemão?". "Não." "Então você não leu Kafka."

Mas a reflexão de Kundera admite, em castelhano, uma notável exceção: a tradução por Miguel Sáenz ("Franz Kafka - Obras Completas", Galaxia Gutenberg/ Circulo de Lectores, Barcelona) é esplêndida. A obra de Kafka também mereceu duas homenagens latino-americanas. Uma no romance do mexicano Sealtiel Alatriste, "El Dafio", e a outra no ensaio inédito "Crítica da Razão Irônica", do filósofo chileno Martín Hopenhaym. Alatriste dá uma virada insólita na lenda paterna de Kafka para transferir à mãe uma presença piedosa que consiste em calar enquanto o filho fala.

Ela abandona a carreira musical para dar espaço à carreira literária do filho. Sabe que, enquanto tocava viola, o filho estava escrevendo "A Metamorfose". No ato de escrever há um divórcio entre mãe e filho. Antes, em sua infância e adolescência, contavam sonhos um ao outro. Quando Franz começa a escrevê-los, a mãe percebe: "Não me pareço à mãe de sua infância". O filho se transforma em um estranho, e a mãe o reprova em silêncio. O filho é um ladrão da personalidade alheia. É um escritor. Mas, ao roubar a personalidade da mãe, não lhe deu o amor possessivo e destrutivo de torná-la mais sua do que nunca?

Alatriste é dono de uma prosa serena que fica a meio caminho da extrema despersonalização dos romances de Kafka e da intimidade de seus diários. Esse é o tema de Martin Hopenhaym, o brilhante filósofo chileno, um dos cabeças do pensamento hispano-americano. Os diários, indica Hopenhaym, dão aos romances a ressonância subjetiva de que eles carecem. São a ressonância interior de paixões externas. Trata-se de uma complementaridade angustiada, já que os protagonistas dos romances são heróis da razão. Sofrem por estar marginalizados da razão. Mas não entendem as razões que os marginalizam.

Daí deriva a extraordinária representação kafkiana da relação entre o indivíduo e o poder. O indivíduo em Kafka é um parasita, escreve Hopenhaym. Quer deixar de sê-lo, mas revela o mundo de parasitas que o sistema requer para exercer o poder. O herói kafkiano quer ser acolhido pelo poder. Mas, ao se submeter a ele, rasga sem querer sua máscara. Em Kafka, o Imperador não é desnudado por um crítico. O desnudamento do poder é revelado na impossibilidade que os súditos têm de decifrar os desígnios do poder.

O poder literário de Kafka deriva de um fato: suas ficções descrevem um poder que torna eficaz a sua ficção. Em "O Processo", como em "O Castelo", Kafka descreve um vazio de poder que se apresenta como algo plenamente resolvido. As autoridades do Castelo se mantêm sempre intactas porque são potenciais. A vítima do poder imagina um poder proporcional à força de sua ausência.

Ao morrer, em 1924, Kafka não poderia prever que, dez anos mais tarde, sua imaginação infernal se transformaria em realidade histórica do poder. Mas, ao chegar de noite, prendendo suas vítimas, a Gestapo ou o NKVD estavam prendendo Franz Kafka.

Mikhail Koltsóv, correspondente do jornal "Izvestia" durante a Guerra Civil da Espanha, disse kafkianamente que, se Stálin o declarasse traidor, por mais que soubesse que estava errado, acreditaria. Koltsóv foi preso e executado. Mas Kafka não é analista político. É escritor. O que implica que, ao contrário do que pode acontecer na história política, na história pessoal transcorre um drama de dúvidas, cegueira, ambivalência e heroísmo mudo que se complementam em um dormitório, um escritório, um leito, com o exercício do poder.

Gregor Samsa, em "A Metamorfose", se transforma em barata não só para fugir de seu pai como também do gerente, do comércio, dos burocratas, indicam-nos Feliz Guattari e Giles Deleuze em seu célebre estudo "Kafka: Por uma Literatura Menor", acrescenta Hopenhaym de maneira perspicaz. Mas Samsa não é totalmente barata. Continua pensando. A consciência usa o corpo que a encarcera como tela. Se nisso há ironia, é porque é próprio da ironia tirar-nos do contexto e abrir um abismo entre o mundo e o eu. A ironia, conclui Hopenhaym, é ela mesma uma metamorfose. Se Kafka deu um rosto a horrores do poder no século 20, é possível que também seja o profeta do poder no século 21. Hoje, o poder aprendeu maneiras de se tornar invisível, contando, mais que nunca, com que a vítima lhe dê força.

Às vezes, nas praias espanholas onde passo o verão, esquadrinho as leituras de verão dos banhistas. Sei de cor os autores: Tom Clancy, Michael Crichton... Contam vezes sem conta a mesma história. O leitor passivo sabe disso, e agradece. Mas muitas vezes me surpreendo encontrando nas praias e piscinas leitores com obras de Jorge Volpi, ou Manuel Vicent e Clara Sánchez. Este ano, sem dúvida, encontrarei leitores de "A Festa do Bode", de Mario Vargas Llosa. Mas continuarei procurando pelo leitor que leve à praia as obras completas de Kafka. É certo: o autor pode provocar um eclipse solar e um maremoto que faça dos hotéis castelos de areia... e dos banhistas baratas.

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