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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

Mãe brasileira de Thomas vira personagem

(publicado em 20/02/1994)

BERNARDO DE CARVALHO
Da Reportagem Local

Uma das idéias por trás de "Ana em Veneza", o romance que João Silvério Trevisan, 49, está escrevendo há três anos (dois terços já estão prontos) e que tem como protagonistas Julia Silva-Bruhns Mann (1851-1923, mãe de Thomas Mann), sua criada brasileira Ana e o compositor Alberto Nepomuceno, é que a mãe está no centro da crise que desencadeou toda a obra do escritor. "Mann é um escritor que transformou a crise em temática da sua obra", diz Trevisan.

A tese da crise não é invenção do autor de "Ana em Veneza". A alemã Marianne Krull, autora de uma análise sócio-psicológica da família Mann - "Im Netz der Zauberer" ("No Ninho do Mago", ed. Arche) -, vê Julia na raiz dos suicídios de suas filhas Julia e Carla e da crise que levou não apenas Thomas, mas Heinrich Mann (autor de "O Anjo Azul") `a literatura. Mais: a origem dessa crise familiar estaria no fato de Julia ter nascido no Brasil, de mãe brasileira, partido para a Alemanha aos 7 anos e nunca mais voltado.

"Conversei longamente com Marianne Krull. Ela acha que todos eles estavam tentando superar o exílio de Julia, tal era a força da presença dela dentro da família. Os dois únicos que conseguiram foram o Heirinch e o Thomas, o que dá uma ótica muito especial para a leitura da obra deles, que é a ótica do exílio e que inclui também a questão da homossexualidade em Thomas Mann", diz Trevisan, que pesquisou a história em 15 cidades da Europa, com a ajuda de uma bolsa Vitae.

"A presença de Julia dentro da casa já era marcante pelo fato de ter defendido os filhos, quando decidiram ser escritores contra o desejo do pai. Foi ela que financiou o primeiro romance de Heinrich. Além disso, ia frequentemente às livrarias para dar bronca nos livreiros porque os livros dos filhos não estavam expostos. O Thomas descreve isso muito bem num ensaio sobre a crise e em 'Tonio Kroger', onde a mãe é uma mulher do Sul, exótica, que é considerada a causa da crise dentro de um lar burguês, e é dessa crise que nasce a arte. Anatol Rosenfeld também faz uma bela análise disso, dizendo que a mãe estaria no centro da vocação literária dos filhos", diz Trevisan.

Tanto o chamado "exílio" de Julia, obrigada a se tornar uma alemã sob uma rígida sociedade luterana, na Lubeck do século 19, sem jamais conseguir se integrar plenamente (foi sempre considerada uma exótica, já pelo riso, por suas maneiras, pelos flertes incontidos mesmo depois de casada), como sua intensa relação com o próprio pai, Johann Ludwig Hermann Bruhns ("pai" era uma das poucas palavras que ela guardou em português), teriam sido repassados aos filhos segundo a tese de Krull, que Trevisan endossa.

Na verdade, o exotismo da história da mãe acabou sendo reproduzido com certo orgulho pela família, como um aspecto mítico e pitoresco. Um dos filhos de Thomas Mann, o historiador Golo Mann, diz por exemplo que a mãe de Julia, sua bisavó portanto, era mulata. "Há uma série de hipóteses muito gratuitas. Se você olha as fotos de Julia, vê que era uma portuguesinha. Essa coisa foi se transformando em lenda. O próprio Viktor Mann (irmão de Thomas) reproduz em sua crônica familiar uma carga de exotismo discutível e que não se encontra nas memórias da mãe", diz Trevisan.

A carga desse exotismo, o fascínio pelo Sul, marcou a literatura dos dois filhos escritores em contraponto com sisudez do universo familiar paterno. "Entre Raças", de Heinrich Mann, é basicamente a história da mãe, sob o nome de Lola", diz Trevisan.

O pai de Julia, Johann, deixou Lubeck ainda jovem, com um primo, veio para São Paulo, casou-se com uma brasileira e acabou em Parati, onde era chamado de "seu Luiz". "Parece que ele e o primo eram ovelhas negras da família, e vieram tentar a sorte na América. A Julia herdou de certo modo a estranheza dele, uma coisa de cigano. Primeiro, ele abriu uma empresa de importação e exportação de café. Depois foi para a região de Angra dos Reis, acredito que por causa da cana e do café. Ele tinha terras entre Angra e Parati e foi justamnte numa mudança de uma casa para outra que Julia nasceu. O Henrich conta que a mãe nasceu no meio do mato, o Viktor também, ambos tomando por base as memórias dela, inéditas até a década de 50", diz Trevisan.

A mãe de Julia morreu em seu sexto parto. Um ano depois, Johann Ludwig Bruhns decidiu levar os cinco filhos de volta para Lubeck, onde vivia sua família. Há seis anos, Trevisan encontrou um livro - "Thomas Mann e o Brasil", de Vamireh Chacon - onde leu pela primeira vez que Johann tinha levado uma mucama negra, Ana, com os filhos para Lubeck. Foi o que lhe deu a idéia para um romance - depois de ter publicado livros como "Devassos no Paraíso" (Max Limonad, 1986) e "O Livro do Avesso" (Ars Poetica, 1992) - no qual Ana seria o personagem principal e emblemático da crise e do exílio.

"O exílio está estampado na própria pela dela. Na época, na Europa, os negros eram tão disputados em circos quanto uma mulher de barba, um anão, um leão. Eram personagens exóticos. Quando Johann desembarcou em Lubeck, com as crianças queimadas de sol, com chapéus panamá, roupinhas de seda, muito leves, e aquela negra, a cidade foi inteira atrás", diz o escritor.

Johann passou apenas alguns meses na Alemanha e voltou para o Brasil, trazendo de volta a criada Ana (na ficção de Trevisan ela permanece na Europa, entra para um circo e acaba tuberculosa, em Veneza, onde reencontra a família Mann, conhece o jovem Alberto Nepomuceno e recebe um santo em plena praia do Lido, numa espécie de "Morte em Veneza" tropicalista). De volta ao Brasil, ele faz uma breve passagem pelo Rio de Janeiro, onde conhece dom Pedro 2º - com quem costuma ser confundido nas ruas, pelas semelhança física, e de quem obtém os direitos de exploração da navegação do rio Tietê -, e se instala em Piracicaba.

"Julia era completamente apaixonada pelo pai, uma relação edipiana que foi muito importante na passagem para o obra de Thomas Mann", diz Trevisan. Johann voltou apenas esporadicamente à Alemanha, mantendo um contato distante com os filhos. As duas filhas, Maria e Julia, ficaram num internato e nunca mais pisaram no Brasil. Os meninos voltaram mais tarde e estabeleceram família no Rio e no interior de São Paulo. Quando Julia se apaixonou pelo irmão do marido da irmã, uma relação tempestuosa, Johann foi irredutível e levou a filha para a Suíça, com o objetivo de que esquecesse o caso. Julia terminou cedendo à vontade do pai e se casando com Thomas Johann Henrich Mann, filho de uma importante família de Lubeck.

O casamento aos 17 anos e o primeiro filho, Heinrich, não aplacaram o "exotismo" de Julia Silva-Bruhn Mann. Ela só assumiu a maternidade plenamente com o nascimento de Thomas. "Marianne Krull diz que ela mudou de vida completamente. Deixou os namoricos. Os boatos eram insistentes em Lubeck, onde ela era muito mal vista. Já pelo riso e pelos olhos, brilhantes demais para uma protestante. O riso era muito brasileiro, cascateante, considerado de mau gosto, escandaloso, exagerado", diz o escritor.

A relação complicada com o pai (dificultada ainda mais quando este decidiu se casar com a mulher de seu irmão recentemente morto) foi transmitida por Julia a Heinrich e Thomas das mais diversas formas, que incluem uma curiosa canção de ninar brasileira, "Molequinho do Meu Pai", a história de uma menina enterrada viva pela madrasta mas que é descoberta pelo filho do escravo da casa, o que leva o pai a expulsar a madrasta e viver sozinho com a filha.

"Viktor Mann conta que a Julia cantava o refrão em português para os filhos e lhes explicava a história em alemão", diz Trevisan.

Um dos sinais mais evidentes da presença edipiana de Julia na obra de Thomas Mann está na obra de Thomas Mann em "Doutor Fausto". Além de inspirar o personagem da senadora Rodde, que disputa os namorados das filhas (Julia mudou-se para Munique após a morte do marido, onde teve uma vida social ativa, frequentando bailes e artistas), a figura da mãe aparece metaforicamente numa passagem do romance analisada por Anatol Rosenfeld a partir da imagem da borboleta "Hetaera-Esmeralda": Adrian Leverkuhn vê a imagem da borboleta num álbum do pai, pega sífilis de uma mulher chamada Esmeralda e depois, já sob os efeitos da demência sifilítica, tem uma visão em que está fazendo sexo com uma enorme borboleta.

"Hetaera é prostituta em grego. E essa borboleta é brasileira! Foi descoberta na Amazônia em meados do século passado por um inglês. É novamente a presença de Julia irrompendo na ficção dos filhos de uma maneira extremamente perturbadora e rica", diz Trevisan.

A FAMÍLIA DE THOMAS MANN
Conheça a árvore genealógica do escritor
Thomas Johann Heinrich Mann
(1840-1891, comercianete de cereais e senador da cidade de Lubeck)
Julia Silva-Bruhns
(1851-1923)
Luiz Heinrich (1871-1950, escritor)
Julia (1877-1927, morte por suicídio)
Carla (1881-1910, atriz , morte por suicídio)
Viktor (1890-1949, autor de uma crônica da família Mann: "Nós Éramos Cinco")
Thomas (1875-1955, escritor)
Katharina (Katia) Pringsheim (1883-1980)
Alfred Prinsheim (1850-1941)
Hedwig Dohm (1855-1942)
Erika (1905-1969, escritora, casou-se com Gustaf Grundgens, divorciou-se em 29, e casou-se com o poeta W. H. Auden, para obter nacionalidade inglesa)
Klaus (1906-1949, morte por suicídio)
Golo (1909, escritor e historiador)
Monika (1910, casou-se em 38 com o historiador de arte Jeno Lanyi, de origem húngara, que morre em naufrágio do navio britânico City of Bernares)
Elisabeth ( 1916, casou-se em 39 com o escritor italiano Giuseppe Antonio Borgesa - 1882-1952)
Michael (1919-1977, professor de literatura, casou-se com uma amiga de infância, Gret Moser)
Frido (1940, professor de literatura e escritor)
Anthony (1942)
Fonte: Magazine Litteraire

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