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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha

Transfiguração de uma vida

(publicado em 06/08/2000)

por Marcus Mazzari

Em junho de 1997, por ocasião de um congresso comemorativo dos 50 anos do "Doutor Fausto", constatou-se que a bibliografia secundária sobre esse romance da velhice de Thomas Mann avolumava-se para mais de 100 mil páginas. Se em relação à "Montanha Mágica", aos "Buddenbrooks" ou ainda às novelas "Morte em Veneza" e "Tonio Kroger" a situação não é muito diferente, percebe-se o quanto é difícil dizer algo novo sobre os grandes marcos da obra desse escritor de Lübeck, norte da Alemanha, mas com raízes biográficas que remontam também a Angra dos Reis, onde sua mãe Julia da Silva Bruhns nasceu e passou a primeira infância.

É evidente, porém, que esses livros, como toda grande obra artística, jamais poderão ser interpretados em definitivo, pois as imagens que os povoam os tornam inexauríveis. "Incomensurável" seria, assim, outro adjetivo de cunho goethiano que se pode aplicar às obras desse escritor, em primeiro lugar ao "Doutor Fausto", que é por excelência o "romance da Alemanha" e que em 1947 desencadeou virulenta recepção.

Mas, a despeito da grandiosidade de Thomas Mann (1875-1955), a sua influência sobre escritores alemães do pós-guerra é paradoxalmente reduzida, se lembrarmos nomes como o de Franz Kafka, com incontáveis seguidores mais ou menos epigonais (e não só na Alemanha), Robert Musil, com o romance "O Homem sem Qualidades", ou ainda Alfred Döblin, que tem em Günter Grass um discípulo confesso. Seria a extraordinária envergadura enciclopédica dos romances de Mann, a incomparável erudição, que gera por vezes a impressão de monumentalidade extemporânea, como se "2.500 anos de cultura", para glosar uma sarcástica observação de Brecht, mirassem o leitor "de cima para baixo"?

Outro elemento que obstou uma recepção mais generosa dessa obra é sem dúvida a "ironia épica", que lhe confere a dimensão inconfundível (e suspeita para não poucos críticos) de ambiguidade e ceticismo.

Thomas Mann estréia na literatura aos 19 anos, com uma novela de desilusão amorosa ("Queda") que lhe abriu de imediato as portas para os círculos artísticos de Munique. Dois anos depois surge a narrativa "O Pequeno Senhor Friedmann", que pode ser considerado o seu primeiro trabalho realmente significativo. Até o final da vida, o escritor manterá a fidelidade à prosa ficcional mais ligeira, produzindo dezenas de contos e novelas, inclusive obras-primas do nível de "Tonio Kroger" e "Morte em Veneza".

Escreveu também romances relativamente breves para os padrões a que nos acostumou, como "Carlota em Weimar" (1939), ficcionalização de um encontro tardio de Goethe com a sua paixão de juventude, ou "O Eleito" (1951), em que uma irônica instância narrativa (o próprio "espírito da narração") conta a história do papa Gregório, espécie de Édipo cristão que, da extrema pecaminosidade, ascende à condição de santo.

Ironia épica

Deixou-nos também a paródia elegante e divertida das "Confissões do Impostor Felix Krull", romance que, embora inconcluso, levou Anatol Rosenfeld a interpretá-lo, no ensaio "Apolo, Hermes, Dioniso", como espécie de obra-chave para a compreensão de toda a produção literária do autor.

O nome de Thomas Mann entrou, todavia, para a história da literatura associado sobretudo a romances de largo fôlego épico, narrados com distanciamento irônico e num tom para o qual ele mesmo cunhou a expressão "evocação sussurrante do imperfeito". Essa tendência impõe-se logo com o seu primeiro romance, "Os Buddenbrooks" (1901), obra tanto mais espantosa considerando-se que Mann a escreve entre os 22 e os 25 anos. Apoiando-se em larga escala na história da própria família, o jovem escritor narra ao longo de centenas de páginas, abrindo um arco que vai de 1835 a 1877 e abrange o destino de quatro gerações, a inexorável decadência de uma tradicional e venerável casa burguesa, em contraponto à ascensão da moderna burguesia capitalista, os Hagenström.

A decadência é assim o tema fundamental, presente nos excursos teóricos do romance (como os "protocolos de pensamento" redigidos pelo senador Thomas durante leituras de Schopenhauer), mas sempre regendo as várias etapas dessa crônica familiar que se consuma no destino do menino Hanno, cujo temperamento musical vai enfraquecendo a vontade de viver até que por fim se deixa levar pelo tifo.

Foi aliás com os "Buddenbrooks" que a Academia Sueca fundamentou em 1929 a outorga do Nobel a Thomas Mann, o que não deixou de ferir a sua vaidade, pois cinco anos antes havia publicado "A Montanha Mágica", concretizando um projeto que o acompanhara por mais de dez anos. No sanatório suíço de Davos, onde os ritmos da vida na "planície" e o próprio tempo entram em outra dimensão, o escritor constrói o espaço mágico em que o seu "singelo herói" Hans Castorp, "filho enfermiço da vida", irá mover-se ao longo de sete anos, de agosto de 1907 a agosto de 1914 (o número sete é recorrente nos sete capítulos do romance, como o será depois na tetralogia "José e Seus Irmãos").

Nesse mundo das alturas, no convívio com amplo espectro de pessoas ligadas apenas pela tuberculose, cumpre-se um processo formativo que encontra o seu momento fundamental no capítulo "Neve", em que uma experiência-limite em meio às forças elementares da natureza faz assomar à consciência do herói esse único pensamento que o escritor destacou em itálico: "Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre seus pensamentos".

Com essa lição humanista, "A Montanha Mágica" alinha-se na longa tradição dos romances de formação, mas Thomas Mann também problematiza essa inserção fazendo a história desembocar nas imagens cruentas da Primeira Guerra, em cujas "tempestades de aço" Castorp desaparece rumo a uma morte que subverte a sua longa aprendizagem de vida. Contudo os vínculos com a tradição do romance de formação constituem apenas uma dimensão dessa obra inesgotável, em cujas profundidades os intérpretes descobrem até hoje novas facetas e relações: "Esse romance gigantesco, fruto de muitos anos de luta com a forma e a idéia, apresenta-se como uma das mais maravilhosas criações da literatura mundial do século 20, inesgotável em sua multiplicidade e impenetrável em sua profundidade": são palavras de Anatol Rosenfeld, admirador contumaz desse escritor, a que dedicou estudos enfeixados no volume "Thomas Mann" (Ed. Perspectiva).

Selvagem e demoníaco

A Thomas Mann coube ainda o privilégio de ter encontrado entre nós, ao lado do crítico mencionado, um tradutor tão sóbrio e escrupuloso como Herbert Caro. É este que assina também a tradução do "Doutor Fausto" (1947), esse romance monumental que o próprio autor chamou de "sua obra mais selvagem".

Por "selvagem" pode-se entender aqui "demoníaco", pois nesse livro, como se sabe, o diabo impõe sua presença concreta, num longo capítulo (25) que rompe com os limites de um realismo mais tradicional e mostra ainda a ousadia que presidiu à construção da perspectiva narrativa e da dimensão temporal. Conforme diz no livro "A Gênese do Doutor Fausto", Mann iniciou a redação do romance em 23 de maio de 1943, no mesmo dia em que faz o narrador Serenus Zeitblom abrir a reconstituição da vida do compositor (e amigo de infância) Adrian Leverkühn.

Serenus adianta-se, porém, dois anos à frente do seu criador, pois coloca o ponto final em seu relato em 8 de maio de 1945, data exata em que a Alemanha hitlerista assina a capitulação incondicional. Assim, enquanto o tempo da narração permite referências a desdobramentos da guerra, o tempo narrado move-se entre os anos de 1885 e 1940, nascimento e morte de Adrian. Contudo a estratificação temporal torna-se ainda mais complexa com a incorporação de outra dimensão narrativa, que remete ao livro anônimo "História do D. Johann Fausto", publicado em Frankfurt no ano de 1587.

Mediação moderna

O recurso à trajetória desse Fausto de extração medieval sofre, porém, a mediação de influências mais modernas, que o próprio autor explicita na "Gênese do Doutor Fausto". Tem-se aqui, entre incontáveis outras fontes, o dodecafonismo de Arnold Schönberg, que ingressou na ficção romanesca graças à colaboração decisiva de Adorno. Mas avulta sobretudo a figura de Friedrich Nietzsche, cuja trágica existência oferece balizas fundamentais para a "vita" de Adrian. Os 24 anos decorridos entre o contágio de Nietzsche pela sífilis até o seu colapso em 1889, aos 45 anos, período que coincide com o prazo concedido a Fausto no pacto demoníaco, são transpostos à biografia de Adrian, que contrai a mesma doença, também aos 21 anos, pelo contato com a prostituta transfigurada sob o nome "Hetaera Esmeralda".

Se por um lado a sífilis propicia-lhe a inspiração cerebral que leva à criação de obras geniais como o oratório "Apocalipsis cum Figuris" e a cantata sinfônica "A Lamentação do Doutor Fausto", por outro lado é a ampulheta que controla, em seu próprio corpo, o prazo estipulado no pacto, como se explicita no capítulo 25, isto é, a longa e densa conversa com o demo, que Adrian anota (aliás, num estilo arcaizante, que evoca o tempo de Fausto e Lutero) e faz chegar depois às mãos do amigo Serenus.

"A tua vida tem de ser fria, por isso não poderás amar nenhum ser humano": a transgressão dessa condição levará Adrian a vivenciar ainda a morte inominável do seu pequeno sobrinho Nepomuk. É o derradeiro golpe, pouco depois escoa o prazo estipulado e a paralisia cerebral o faz mergulhar nas trevas, aos 45 anos. Como Nietzsche, ele volta aos cuidados da mãe e morre dez anos depois, num 25 de agosto que assinala os 40 anos da morte do filósofo.

Livro da dor

Se a história de Adrian Leverkühn pode ser lida como alegoria do destino alemão no século 20, é sobretudo mediante a figura de Nietzsche que se constrói o paralelo explicitado apenas na última frase do romance: "Um homem solitário junta as mãos e diz: 'Deus tenha piedade de vossa pobre alma, meu amigo, minha pátria'". Em sua dimensão trágica, o "Doutor Fausto", também o "livro da dor" de Thomas Mann, testemunha o seu afastamento em relação ao filósofo que tanto o fascinara na juventude.

É a mesma atitude que se articula no longo ensaio de 1947 "A Filosofia de Nietzsche à Luz da Nossa Experiência", em que Mann caracteriza o filósofo como o "esteta mais irremediável" e ao mesmo tempo abjura todo esteticismo que faz o homem temer a "profissão de fé pelo bem" e envergonhar-se de "conceitos tão triviais como verdade, liberdade e justiça".

Marcus V. Mazzari é professor de teoria literária na USP, autor de "Romance de Formação em Perspectiva Histórica - 'O Tambor de Lata' de Günter Grass" (Ateliê Editorial).

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