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18. Morte em Veneza - Textos publicados na Folha
Deus e o diabo na terra do sol
(publicado em 11/10/2002)
GEORGE STEINER
Existe na literatura moderna um gênero bizarro: romances, contos e até poemas nos quais Wittgenstein figura, ou ligeiramente disfarçado ou como ele próprio. Ao todo, porém, a presença de pensadores abstrusos na ficção ainda é incomum. No entanto não teríamos as obras-primas de Thomas Mann sem ela.
Em "A Montanha Mágica", Georg Lukács inspira os personagens Naphta e Settembrini, uma contradição que envolve não apenas sua própria sensibilidade complicada, mas também seu compromisso com uma interpretação dialética da vida. O diabo em "Doutor Fausto" foi reconhecido imediatamente como encarnação de Theodor Adorno. Tanto o romancista quanto o personagem tinham prazer nessa identificação.
Mann e Adorno se conheceram em 1942 ou 1943 na Califórnia, na casa de Max Horkheimer, membro sênior do que viria a ser a Escola de Frankfurt de teoria social e crítica filosófica. Os três eram refugiados mais ou menos privilegiados da Alemanha nazista que mantinham relações altamente ambivalentes com o país que os recebera. Não muito longe deles viviam Brecht e Schoenberg. No verão de 1943, Mann começou a trabalhar sobre "Doutor Fausto", o romance que formularia sua leitura da catástrofe alemã e também afirmaria um momento culminante em seu processo de modelar-se em Goethe, que durou sua vida toda.
Mann se sentira em casa com a música desde o início, conforme se evidencia em "Os Buddenbrooks". Mais especificamente, a obra e o legado de Wagner eram uma obsessão para ele. O eros de "Tristão", a apoteose do incesto em "O Anel dos Nibelungos", a exaltação da cultura teutônica nos "Mestres Cantores", tudo isso permeava seus escritos. Foi uma palestra que se tornou célebre, proferida em 1933 e em que expressava dúvidas quanto à influência de Richard Wagner sobre os assuntos alemães, que desencadeou a ira chauvinista e nacional-socialista e fez com que Mann não pudesse retornar de seu refúgio suíço para Munique.
A música na sociedade
Adorno nutrira o sonho de ser compositor; Alban Berg fora um de seus professores. Ele havia composto música de câmara no espírito da Segunda Escola de Viena. Publicara diversos artigos de crítica musical e estava definindo, de maneira ainda não realizada por ninguém até então, uma esfera na qual as pesquisas sobre o significado e a epistemologia da música eram apresentadas conjuntamente com análises do contexto social da composição e apresentação.
De maneira singular, Adorno buscava combinar uma musicologia em muitos casos altamente técnica com preocupações abrangentes com relação ao papel da música na história e na sociedade. O primeiro livro de Adorno foi uma monografia opaca sobre Kierkegaard, cujo diagnóstico estético-filosófico do "Don Giovanni" de Mozart mostrou ser decisivo para ele. Nos anos 1940, ele já estava redigindo um "magnum opus" _que nunca chegaria a ser concluído_ sobre Beethoven, além de material extenso sobre Wagner. A experiência da Califórnia já estava empurrando Adorno a considerações, de modo geral irritadas, sobre a função da música clássica e popular numa democracia de consumo de massas, incorrigivelmente populista.
A colaboração ativa começou durante o verão de 1943, quando Mann estava trabalhando sobre o quarto capítulo de "Doutor Fausto". Essa aliança foi documentada de perto no volumoso diário de Mann e em suas memórias sobre a gênese do romance ("Die Entstehung des Doktor Faustus"). Ela foi objeto de estudo secundário de musicólogos, filósofos da arte e críticos literários.
Agora temos as cartas relevantes. É difícil pensar em qualquer tesouro comparável de material "genético" ou mesmo de qualquer outra simbiose igualmente frutífera entre um escritor e seu "especialista da casa". Adorno contribui não apenas com os detalhes técnicos referentes a processos instrumentais e de composição, mas também com suas próprias percepções radicais acerca do que é compor música sob a pressão da história musical anterior e de uma crise social. Ele emprestou a Mann a versão manuscrita da primeira parte de seu livro "Filosofia da Nova Música", juntamente com suas anotações sobre Beethoven. Rascunhos foram trocados e longas conversas desabrocharam, sendo prolongadas e resumidas pelas cartas. Adorno improvisava e analisava ao piano. Mann, por sua vez, lia para ele sua obra "in progress". Levemente implícito em seu diálogo está o pesadelo da história que se desenrolava na Europa.
O oitavo capítulo de Mann foi lido a Adorno em 27 de setembro de 1943 e, mais tarde, revisto em resposta às observações feitas por Adorno. O capítulo consiste nas palestras de Wendell Kretzschmar sobre o Beethoven de 1820 e sua última sonata para piano, opus 111. Bruno Walter o considerou a mais profunda análise de Beethoven já empreendida. Nesse texto complexo, as participações do autor e do exegeta são inseparáveis. Ambos nutriam um fascínio de longa data pelo trabalho da última fase de um artista, quer seja em Goethe, em Beethoven ou em Mahler ("Morte em Veneza"). Mann chega perto de reproduzir diretamente trechos do ensaio "Spätstil Beethovens" (O Estilo Tardio de Beethoven), de Adorno, quando descreve a maturidade especial das criações da última fase de um artista como sendo feita de lacerações, de desarmonias internas.
Forma em maturação
Tal dissonância, especialmente em Beethoven, não deve ser atribuída a banalidades biográficas, psicologizantes. Ela nasce da lógica da forma em maturação que já havia sido discutida nos escritos de Willi Reich e do próprio Adorno sobre Berg (que servem de subsídio a Mann). Resumindo o insight que deve a Adorno, Thomas Mann conclui que "quando a morte e a grandeza coincidem, o que resulta é uma objetividade ('Objektivismus') com viés para o convencional. Nesse processo, o magistral e o subjetivo se trasladam para o campo do mítico". Mann disse que "sempre se sentira metade músico".
Em suas ficções em prosa, ele realizara a textura das formas musicais (a analogia tanto com Proust quanto com Joyce chama a atenção). Por sua parte, Adorno ansiara por investir seus poderes e seus tormentos emocionais em construtos estéticos. Como ele diz numa carta comovente de junho de 1945, conhecer Thomas Mann tinha sido um sonho de sua juventude; agora, tornara-se "um pedaço de utopia realizada".
Apesar do que deve ao episódio do Grande Inquisidor, em "Os Irmãos Karamázov", o capítulo 25 de "Doutor Fausto" permanece como ponto alto de imaginação intelectual e psicológica na literatura. Não é apenas a discussão sobre o pacto feito com o diabo que o torna inesquecível _é a forma como Mann transforma em narrativa o frio úmido e desagradável, a aura estranhamente nauseabunda que emana da criatura que visita Adrian Leverkühn, uma criatura ao mesmo tempo astuta e irremediavelmente mesquinha.
As reflexões feitas aqui devem muito a Adorno, mas a voz satânica, cáustica e insinuante me parece ser mais próxima da de Lukács. O que está em jogo é simplesmente a teoria da criação e a patologia estética do gênio artístico-filosófico e da enfermidade mental que tinha sido formulada pelo romantismo alemão e que assombrou Thomas Mann durante toda sua carreira.
Os criadores supremos, na arte e no pensamento, são condenados ao colapso cerebral, ao ataque da desrazão suicida, quer eles sejam Hölderlin ou Schumann, Nietzsche ou Hugo Wolf (mais que Nietzsche, é o modelo em que se inspira o final medonho de Leverkühn). A causa externa pode ser venérea, a "Esmeralda" infecciosa com a qual se tem um único e inadvertido contato.
Mas a raiz profunda é a da parte desempenhada pela blasfêmia, pela automaldição em todos os atos eminentes do pensamento e da formação; é o crime de Prometeu, do modo como hipnotizou o jovem Goethe e tentou Beethoven. O néctar da realização artística e metafísica é veneno. O Satanás declama seu discurso sardônico de modo que focaliza tanto a Alemanha quanto a música. A localização original do pacto fechado por Fausto na Alemanha, a preeminência da Alemanha nos campos da filosofia e da música declaram uma afinidade eletiva entre o gênio teutônico e o infernal. No Reich de Hitler, pano de fundo implícito do diálogo, essa afinidade alcançou seu clímax natural.
Alegoria da esperança
Adorno mostrou-se mais uma vez inestimável na "composição" da música de câmera de Leverkühn e, sobretudo, na de "Doctor Fausti Weheklage" (Sofrimentos do Doutor Fausto), o lamento atormentado que acompanha o mergulho de Lev na insanidade. Conforme mostram as notas de rodapé reproduzidas neste livro, a associação seminal de Orfeu com Fausto, a reunião com os alunos de Lev, como numa Última Ceia negativa, mas também detalhes de dissonância e orquestração, tudo isso veio de Adorno. É Adorno puro a máxima segundo a qual questionar a negatividade é também uma alegoria da esperança. De maneira quase estranha, Mann não apenas se mostrava receptivo às sugestões de Adorno, frequentemente complexas e fragmentárias, mas também sabia transmutá-las em temas totalmente característicos de suas próprias preocupações eternas.
Arnold Schoenberg, porém, fez objeções. Ele se sentiu roubado pela adoção e explicação, por Adrian Leverkühn, de um sistema dodecafônico modificado. Ele sabia que tinha sido Adorno quem dera a Mann o material filosófico e musicológico que possibilitara essa transferência. O reconhecimento de Mann, impresso no final do romance, é dado em tom de altivez fria.
Seriam necessários muitos anos e mais discussões acerbas, públicas e privadas, até que a briga fosse resolvida. Com razão, Adorno, que era admirador ardente de Schoenberg, sentiu-se o perdedor na história. A reconciliação entre Mann e Schoenberg, por superficial que tenha sido, foi recebida por ele com alívio.
O outro pivô musical dessa correspondência é Wagner. Durante todos os anos de "Fausto" e depois, Adorno estava trabalhando sobre seu "Versuch über Wagner" (Ensaio sobre Wagner). Mann o leu com atenção apaixonada. Em 1952, Adorno especulou sobre analogias entre "Fausto" e Felix Krull, por um lado, e, pelo outro, o "Anel", especialmente Hagen e Alberich. Mann achou convincente a análise feita por Adorno das etapas iniciais da decadência burguesa em Wagner e aprovou a constatação feita por Adorno de que era a força da neurose de Wagner que lhe permitira dar-se conta dessa decadência dentro dele mesmo e transcendê-la.
O 'comunismo abrandado' de Adorno
Na mesma carta de 30 de outubro de 1952, encontramos uma das muito poucas alusões feitas por Mann ao "comunismo abrandado" de Adorno, a aquilo em seus conceitos que lembra Lukács. Essa mesma carta, novamente em referência a Wagner, sugere que a alta literatura ocidental vinha sendo "um resumo apressado e uma recapitulação paródica do mito do Ocidente pouco antes do cair da noite".
Nas cartas que trocam, Mann e Adorno falam de elementos cruciais a suas realizações. Já tínhamos disponível anteriormente a famosa declaração feita por Thomas Mann em 30 de dezembro de 1945 sobre sua estética da montagem. Ele entremeia motivos históricos, biográficos e literários _a relação de Madame von Meck com Tchaikóvski, os triângulos amorosos em Shakespeare, elementos da vida pessoal de Nietzsche_ para gerar determinados efeitos em "Doutor Fausto". Uma nota de rodapé, "isto é derivado de Th. W. Adorno", teria parecido tolice. Quando se indaga, porém, elementos emprestados e variações sobre um tema anterior devem ser admitidos (o que, então, dizer de Schoenberg?).
Por sua parte, Adorno, pelo menos duas vezes, chega perto de formular seu credo. Em 1º de agosto de 1950: fundamentalmente, cada sentença é uma contradição e uma contradição da contradição, cujo êxito é um golpe de sorte, a realização do impossível _"a reconciliação magnânima da intenção subjetiva com o espírito objetivo, onde é o próprio fato de ser dilacerado que constitui o ser de ambos" (uma formulação radicalmente hegeliana). Em 1º de dezembro de 1952, com uma evocação de Hegel: é central em Adorno a abstenção estética de qualquer afirmação do positivo, embora uma "expressão ilimitada da esperança" seja muito mais próxima de sua natureza.
Estratégia da abstenção
Qualquer acesso apressado ou demasiado fácil ao afirmativo corre o risco da "inverdade", perigo esse de que as modernas ideologias totalitárias e os movimentos estéticos modernos constituem um lembrete sinistro. Durante uma fase bárbara da história, apenas uma estratégia da abstenção pode ser apropriada. Quando os movimentos estudantis de 1968 se voltaram contra ele, Adorno se viu mais ou menos indefeso.
Preocupações mundanas se fazem sentir. Quando a guerra chega ao fim, tanto Mann quanto seu "familiar" estão incertos quanto a se devem ou não retornar à Europa devastada. Mann se confessa fascinado com a capacidade de recuperação que possui o povo alemão, mas a idéia de voltar a viver na Alemanha Ocidental provoca sua repulsa.
Adorno depende da restauração, por Horkheimer, de um instituto de estudos sociais em Frankfurt, mas não quer abrir mão da cidadania americana. Enquanto isso, o macartismo e a Guerra Fria os levam a adotar uma atitude crítica em relação ao clima nos EUA. Enquanto Mann fica cada vez mais alarmado com o que vê como sendo políticas americanas belicosas e imperialistas, Adorno tem uma visão mais desapegada. Após alguns anos de hesitação e deslocamentos transatlânticos pendulares, Mann adota como seu local de descanso a ordeira e higiênica Suíça. Adorno finalmente se reinstala na Alemanha, onde sua influência se amplia. O final é comovente. Perto da morte, Mann confidencia que é chegada a hora de sua "Montanha Mágica". Ao receber a notícia da morte do mestre, Adorno diz a Katia Mann [(1883-1980) mulher do escritor]: "Eu o amava muito, muito". Não é um sentimento habitual em Adorno.
Esta edição, muito bem preparada e cuidadosamente anotada, nos provoca um toque de nostalgia. O idioma patrício de Mann, a presunção recíproca de um saber polímata que abrange desde a Antiguidade até Beckett, de Palestrina a Webern, não faz mais parte de nosso mundo. O "asceticismo" de Adorno assumiu um tom mais acinzentado.
George Steiner é um dos principais críticos literários vivos. Professor nas universidades de Cambridge e Genebra, é autor de, entre outros, "Nenhuma Paixão Desperdiçada" (ed. Record) e "Grammars of Creation" (Gramáticas da Criação, ed. Faber & Faber). O texto acima foi publicado no "Times Literary Supplement".
Tradução de Clara Allain.
Onde encomendar
"Briefwechsel - 1943-1955" (org. Christoph Gödde e Thomas Sprecker, ed. Suhrkamp, 176 págs., 20 euros), de Theodor Adorno e Thomas Mann, pode ser encomendado, em SP, na livraria Bücherstube (r. Bernardino de Campos, 215, Brooklin, CEP 04620-001, tel. 0/xx/11/5044-3735).
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