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20. Nosso Homem em Havana - Textos publicados na Folha

Greene provoca e explora a consciência

(publicado em 26/04/2003)

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
Especial para a Folha

Graham Greene (1904-91) foi um dos mais prolíficos e populares romancistas do século 20. Conseguiu o raro êxito conjunto de vender bem e obter respeito intelectual e ideológico de seus pares. Fazia proselitismo católico, mas era crítico da Igreja de Roma a ponto de ter sido formalmente admoestado pelo Santo Ofício, que condenou o livro "O Poder e a Glória" (40) por ser "paradoxal".

O paradoxismo que assustou os censores do Vaticano já estava em "O Condenado" (Brighton Rock), de 38, o primeiro trabalho de Greene a alcançar sucesso de público e a tratar de maneira explícita das convicções religiosas do autor, que se convertera ao catolicismo 12 anos antes. A segunda edição brasileira de "O Condenado" é lançada pela Globo, com excelente prefácio do crítico da Folha Marcelo Pen e a mesma tradução precisa de Leonel Vallandro da primeira edição (87).

Em "O Condenado", aparecem as duas características básicas que renderam ao escritor inglês o prestígio e a notoriedade de que desfrutou: capacidade de desenrolar uma história simples, instigante e atraente e, ao mesmo tempo, poder de explorar os interiores mais profundos da consciência, dos sentimentos e da moralidade humana. Greene, como provavelmente ninguém mais, pareceu capaz de fazer conviver Dashiell Hammett e Marcel Proust em seus escritos.

O enredo é despretensioso: Pinkie, um adolescente bandido com aspirações a se tornar um líder mafioso na cidade inglesa de Brighton, resolve casar com a garçonete Rose como forma de comprar o silêncio dela sobre um homicídio que ele cometera; outra pessoa que sabia do crime, Ida, tenta perseguir Pinkie e salvar Rose da influência do assassino.

O texto flui com naturalidade, elegância e inteligência. O leitor fica preso à narrativa do suspense, em ritmo perfeito e com descrições atraentes de locais e personagens. Mas, ao contrário dos romances policiais clássicos, o livro introduz questões metafísicas ao lado dos fatos da história de Pinkie, Rose e Ida: a luta entre o bem e o mal, a noção de pecado e castigo, o propósito da vida e da morte. Greene era uma espécie de existencialista católico. Tratava da importância da subjetividade, da liberdade (ou falta de) que cada indivíduo tem para escolher suas alternativas e lidar com as consequências, mas dentro do quadro rígido do dogmatismo católico.

Pinkie e Rose, por exemplo, são dois católicos muito distintos entre si: ele parece só acreditar no Diabo e no Inferno, enquanto ela também crê em Deus e no Paraíso. Já Ida é materialista, preocupada mais com os conceitos humanos de justiça, amor, prazer. Desse triângulo moral saem as idéias que dão ao leitor a chance de refletir sobre seus próprios dilemas e é isso que retira "O Condenado" tanto da categoria das histórias de detetive quanto da de ficção catequética.

O próprio Greene era duro na avaliação de "O Condenado". Ele o colocava na lista de seus livros "de entretenimento". Mas talvez estivesse sendo excessivamente rigoroso com o próprio trabalho. "O Condenado" é um exemplo excelente do seu raríssimo talento para conciliar estilo amigável para as pessoas comuns com conteúdo rico em conceitos complexos que ajudam as pessoas a refletir sobre o mundo e si mesmas.

Carlos Eduardo Lins da Silva é diretor-adjunto de Redação do jornal "Valor Econômico"

O Condenado
Bom
Autor: Graham Greene
Editora: Globo
Quanto: R$ 45 (338 págs)

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"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


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