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21. As Cidades Invisíveis - Textos publicados na Folha

A fina poeira das palavras

(publicado em 20/11/1994)

Palomar, de Calvino, é destaque entre os vários lançamentos de livros italianos

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA
Especial para a Folha

Há uma certa lógica em que Palomar seja o último livro publicado, em vida, por Italo Calvino. Na verdade, o que estava escrevendo quando morreu, em 1985, as conferências para Harvard, "Seis Propostas para o Próximo Milênio" (Cia. das Letras), e os contos de "Sotto il Sole Giaguaro", ainda não traduzidos, tudo é atravessado pela indagação fundamental de como é possível, pela linguagem verbal, deixar passar as tensões permanentes entre o sensível e o inteligível.

Aliás, os contos da última obra se pretendem mesmo uma espécie de topografia dos cinco sentidos, dos quais apenas três foram escritos: o paladar, a audição e o olfato. Mais do que com os sentidos, entretanto, os textos ficcionais trabalham com as relações possíveis entre eles e conteúdos de compreensão racional em que o histórico, o antropológico, o psicológico ou mesmo o social ganham a densidade do sensível sem a perda da inteligibilidade.

Em artigo recente, publicado no "New York Review of Books", Michael Wood, resenhando três livros póstumos de Calvino -a tradução para o inglês de "La Strada di San Giovanni", a reedição das conferências de Harvard e o livro de contos "Prima che Tu Dica Pronto"-, chamava a atenção precisamente para a importância crescente, em Calvino, da memória e da leveza (uma das "propostas" de Harvard) como maneira de tratá-la, traduzindo aquilo que o escritor apontava como essencial no estilo quer de Lucrécio, quer de Ponge, isto é, "reconstruir a natureza física do mundo por meio da impalpável, fina poeira de pó das palavras".

Em parte, é a isto que se dedica o personagem Palomar: certo de que "a superfície das coisas é inexaurível", como conclui das suas observações dos pássaros, a tarefa maior parece consistir em fazer a ponte entre o que a superfície revela aos sentidos e todo o complexo aparelho de apreensão, compreensão e comunicação que é a linguagem.

Desde o início, Palomar, o "Senhor Palomar", como prefere Calvino numa explícita referência ao modelo valéryano de Monsieur Teste, conduz o leitor, pela observação das ondas do mar, a este jogo sutil e difícil entre a contemplação e a entrega aos sentidos e o trabalho de consciência que se traduz na formulação pela linguagem.

Neste sentido, o contrário da linguagem não é o silêncio, elemento até mesmo fundamental de apreensão, mas a incapacidade de manter viva e acesa a consciência da própria contemplação. "O senhor Palomar está de pé na areia e observa uma onda. Não que esteja absorto na contemplação das ondas. Não está absorto, porque sabe bem o que faz: quer observar uma onda e a observa. Não está contemplando, porque para a contemplação é preciso um temperamento conforme, um estado de ânimo conforme e um concurso de circunstâncias externas conforme: e embora em princípio o senhor Palomar nada tenha contra a contemplação, nenhuma daquelas três condições, todavia, se verifica para ele".

Deste modo, a construção do personagem dispensa quer elaborações de ordem psicológica, quer consequências metafísicas: a sua presença é antes um efeito de estilo -e neste caso, há muito da tradição flaubertiana do "Bouvard et Pécouchet"-, do que de mímese psicológica.

Até mesmo o esquema adotado para os exercícios da composição, tal como revelado na nota do autor, em que descrição, narrativa e meditação correspondem às três partes da obra, revela traços dessa busca essencial: de que maneira é possível o registro daquilo que fica entre uma relação com o mundo, a todo momento esperta para os estímulos sensíveis, mas ansiando traduzí-los em conteúdos da inteligência, e a existência banal de quem tira férias, faz compras, vai ao zoológico, viaja, vive em sociedade.

A diversidade da vida do senhor Palomar, traduzida na superfície de banalidade dos atos diários, é, todavia, articulada pela intensidade com que procura, por assim dizer, ecos entre as coisas. Sendo assim, uma loja de queijos pode ser um dicionário ou, todo o capítulo da viagem ao México ("Serpentes e Caveiras"), uma reflexão sobre as grandezas e misérias da tradução.

E agora, já também na trilha de Borges que completa a de Valéry, poderá dizer: "Cada processo de desagregação da ordem do mundo é irreversível, mas os efeitos são escondidos e retardados pelas miríades de grandes números que contêm possibilidades praticamente ilimitadas de novas simetrias, combinações, acoplamentos".

Uma postulação que não está longe dos efeitos daquela "consistência" que Valéry apontava como essencial nas teorias do Edgar Poe de Eureka, e que seria o título da sexta conferência de Harvard não escrita por Calvino. Um palimpsesto de leituras e reflexões que a "leveza" de Italo Calvino sugere e amplifica através do senhor Palomar.

JOÃO ALEXANDRE BARBOSA, professor de teoria literária e literatura comparada da USP, é autor de "As Ilusões da Modernidade" (Perspectiva)

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