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21. As Cidades Invisíveis - Textos publicados na Folha

Italo Calvino coloca a democracia no sanatório

(publicado em 14/12/2002)

MAURÍCIO SANTANA DIAS
Da redação

Às cinco e meia da manhã de um dia chuvoso, Amerigo Ormea se dirige a uma seção eleitoral onde será escrutinador. Intelectual do Partido Comunista Italiano, fora designado para essa "tarefa modesta, mas necessária", a ser cumprida no Cottolengo, célebre instituição para deficientes físicos e mentais, sediada em Turim. O ano era 1953, e o dia transformaria a vida do protagonista desta novela de Italo Calvino.

Lançado em 1963, "O Dia de um Escrutinador" surgiu de uma experiência real. Nas eleições de 1953, Calvino, então membro do PCI, concorreu a deputado pelo partido, só para "engrossar a legenda", como se diz. Em sua peregrinação pelas zonas eleitorais de Turim, acabou passando uns dez minutos no Cottolengo.

O imenso sanatório se transformara, por um dia, num dos pontos mais movimentados de votação. E não eram apenas as pessoas "sãs" que iam lá exercer o seu direito de cidadão. Também os internos, ajudados por mesários e padres do hospital, eram chamados a cumprir sua missão cívica.

Calvino assistiu a tudo aquilo com assombro: uma legião de alienados e aleijões tinha seus votos arrancados a fórceps, e esses votos com toda a probabilidade seriam carreados para a Democracia Cristã, o partido conservador e hegemônico na época.

Indignado com a cena, Calvino chegou a pensar em escrever imediatamente um conto que fosse um violento panfleto contra os métodos dos democratas cristãos. Mas achou que os dez minutos passados no Cottolengo eram insuficientes para produzir a obra literária que ele tinha em mente.

Então, em 1961, com aquelas imagens ainda o incomodando, o escritor resolveu ser escrutinador voluntário no grande sanatório. Passou lá dois dias e, entre outras funções, participou da caridosa tarefa de recolher os votos daquelas "almas de Deus". A experiência foi tão forte que Calvino precisou de mais dois anos para escrever sua novela.

Desligado do PCI desde 1957, após a crise dos partidos comunistas decorrente da invasão da Hungria pela URSS em 1956, o escritor tratou de refletir nessa narrativa curta as perplexidades dos intelectuais que viveram o período que vai do imediato pós-guerra, em 1945, até o início dos anos 60, auge da Guerra Fria, com a crise dos mísseis cubanos etc.

O que resulta dessas experiências pessoais (estar no Cottolengo) e históricas (a crise ideológica da esquerda e o medo da destruição total) é um híbrido de romance reportagem e de ensaio, em que as reflexões do protagonista preponderam sobre as ações.

Embora do ponto de vista estritamente literário a novela não atinja as alturas da trilogia dos anos 50 ("O Visconde Partido ao Meio", "O Barão nas Árvores" e "O Cavaleiro Inexistente"), nem de um livro como "As Cidades Invisíveis" (1972), "O Dia de um Escrutinador" é, ainda hoje, um dos testemunhos mais perturbadores sobre o destino das democracias e da vida em sociedade.

É aí que se materializa, no cortejo teratológico do sanatório, a descrença e também a aposta de Calvino/Amerigo no próprio homem: "Só compreendia como estava distante, ele como todos, de viver como deve ser vivido o que procurava viver".

O Dia de um Escrutinador
Ótimo
Autor: Italo Calvino
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 21 (96 págs.)

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"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


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