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24. Memórias de Adriano

A magia simpática de Yourcenar

(publicado em 12/06/1994)

A ensaísta Michèle Sarde fala sobre sua biografia da autora de "Memórias de Adriano"

BETTY MILAN
Especial para a Folha

Nascida na França, Michèle Sarde vive nos Estados Unidos, onde leciona literatura francesa contemporânea e sobretudo escreve ensaios e romances premiados no seu país natal.

Tornou-se particularmente conhecida por um livro que se intitula "Olhar Sobre as Francesas", no qual mostra o que caracteriza a francesa, "mulher a quem o homem concede todos os privilégios com tanto que não reivindique direitos" e o que origina a idéia pré-concebida de que a francesa é, por um lado, elegante e sedutora e, por outro, intrigante e perigosa.

Depois de "Olhar Sobre as Francesas" (1985), publicou o romance "História de Eurídice Durante a Subida" (1991), indicado para o prêmio Goncourt, e agora acaba de terminar "Retrato de Uma Voz", biografia da escritora Marguerite Yourcenar, que sairá em breve pela Editora Laffont. Sarde falou à Folha em seu apartamento em Paris, onde ela todo ano passa as férias de verão.

Folha - O que levou a escrever uma biografia de Yourcenar? Foi o fato de viver nos Estados Unidos há tantos anos, distante da Europa, como ela?

Michèle Sarde - Há muitas razões pelas quais a gente escreve um livro. Mas foi determinante o fato de ela ter passado 50 anos da vida no exílio e ter aí construído sua obra. Queria saber como alguém conseguia preservar sua língua a uma tal distância do país de origem. Uma outra razão é que eu havia escrito uma biografia de Colette e Yourcenar é, para mim, o outro extremo da feminilidade. Aquela entregava-se às sensações, esta era uma intelectual.
Houve quem dissesse que a escrita de Colette era feminina, enquanto Yourcenar escrevia como um homem. Mas, ao desenvolver o meu trabalho, me dei conta de que elas eram menos diferentes do que se poderia supor. Existe em Yourcenar uma grande sensibilidade à natureza, aos animais, aos seres e, como em Colette, um desinteresse pela glória.

Folha - Em que o seu livro é diferente das biografias de Yourcenar já existentes?

Sarde - Não quis escrever uma biografia no sentido tradicional do termo. No fundo, o que me interessava era fazer o que a própria Yourcenar fez quando escreveu as "Memórias de Adriano" ou "O Labirinto do Mundo", que são crônicas familiares. Criou as personagens através do que chamava "magia simpática".

Folha - O que é a "magia simpática"?

Sarde - Consiste primeiro em se colocar no contexto exato em que viveu a pessoa, cuja vida a gente quer evocar. No caso de "Adriano", por exemplo, isso implicou um trabalho de erudição. Ler os livros relativos à época e os que o próprio Adriano leu. No caso do pai de Yourcenar, implicou reconstituir fatos a partir de arquivos, lembrar das histórias que ele havia contado, ler as suas cartas... Depois da reconstituição, a gente deve se projetar na personagem por uma espécie de ato de simpatia, no sentido literal do termo, ou seja, sofrer ou gozar junto. Foi o que eu fiz, me levando menos de dados biográficos do que de textos literários, porque acho que um escritor se exprime muito fortemente nos seus textos e, se a gente os associa à época na qual ele viveu, consegue fazer um bom retrato.

Folha - Mas você também usou a correspondência dela.

Sarde - Sim, porque estou preparando a edição das cartas, mas o meu livro pára na juventude de Yourcenar, e a correspondência foi escrita no exílio, período em que ela envelheceu, e as cartas serviram para confirmar minhas idéias sobre o período da juventude.

Folha - Yourcenar não foi para os Estados Unidos em 1939 para ficar. Por que ficou, depois do fim da guerra?

Sarde - Por muitas razões. Existem certamente fatores acidentais e também uma escolha. Ela foi para os Estados Unidos por causa da guerra, porque ela não tinha um tostão e por causa do convite de Grace Frick, que depois se tornou sua companheira. Esses são os fatores casuais que a levaram a tomar o navio. Ela aliás hesitou. Pensou em ir à Grécia, como conselheira cultural, mas não conseguiu o cargo. Foi para os Estados Unidos, a guerra estourou e ela não pôde voltar para a Europa. Durante os anos 40, não escreveu nada. Foi um tempo de adaptação, que precedeu a escolha e, em 1951, quando as "Memórias de Adriano" obtiveram um grande sucesso, ela resolveu permanecer nos Estados Unidos. Nesse momento, poderia ter voltado para a Europa, mas não quis.

Folha - Por que é que ela não voltou?

Sarde - Certamente o desejo de não viver o que ela chamava de "vida imóvel", isto é, se incrustar em hábitos e preconceitos de uma sociedade. Se ela tivesse ficado na França, sobretudo em Paris, teria sido fácil acomodar-se. A gente poderia contra-argumentar que ela viveu nos Estados Unidos a mesma vida imóvel da qual queria fugir, mas ela não sabia disso quando tomou o navio. Pensava então que ir para a América era escolher a viagem. Acredito que tenha havido também um desgosto pela Europa devido ao genocídio da guerra. Yourcenar escreveu sobre "o crime do homem contra o homem".
Mas existem motivos ligados à própria obra, para não ter voltado, Yourcenar queria escapar do meio literário francês e de todas as suas convenções. Disse mais tarde que o esnobismo parisiense a teria aprisionado, obrigado a repetir clichês estilísticos, e a única maneira de conservar a independência era permanecer na América. Além disso, ela procurava reconstituir a história humana, a história enquanto memória humana. Ora, para se distanciar no tempo, nada melhor do que se distanciar no espaço e a América era um território ideal, por ser um continente onde a memória histórica se apagou. Não há muitos monumentos, não há catedrais. Num certo sentido, isso propiciou o reencontro com o passado anterior ao passado histórico.
É bem mais fácil visualizar a pré-história do homem na América do que na Europa, porque a história do homem oculta a sua pré-história. Nos Estados Unidos, ela se deparou com o passado extremo, o que chamou em um de seus livros "a noite dos tempos". O exílio seguramente favoreceu o seu projeto literário.

Folha - Numa carta a propósito de uma explosão no castelo da sua infância, Yourcenar diz "Roma não está mais em Roma, ela está onde eu estou". Trata-se de uma frase de escritor exilado ou de uma frase que qualquer escritor poderia ter dito?

Sarde - Todo escritor poderia dizer essa frase, porque todos de certa maneira estão exilados, mesmo na sua cidade. Verdade que para quem ficou 50 anos no exterior como ela, essa frase tem uma outra ressonância. Mas ela queria dizer que o tempo destrói os lugares onde a gente viveu e só a imaginação, o trabalho da criação artística e literária, permitem reencontrar o tempo passado e se ligar à eternidade. Em Yourcenar há uma preocupação muito grande com a eternidade e ela suportou o exílio para alcançá-la. O último livro dela se chama "O quê? A Eternidade".

Folha - O que era o exílio para Yourcenar?

Sarde - Ela dizia que era o renúncia a certos prazeres que a gente só consegue ter onde nasceu como, por exemplo, ir a um bar e conversar com os amigos até bem tarde da noite, na língua materna.

Folha - A identidade para Yourcenar só depende da língua?

Sarde - No fim da vida, quando ela se pergunta de que é feito o seu sentimento de identidade, ela se refere à infância, à raça e à língua. A infância, ela reconstituiu nas suas últimas crônicas familiais. É o único elemento autobiográfico que temos e eu acredito que ela tenha feito essa reconstituição precisamente por já estar então bem afastada da infância.
A raça diz respeito à linhagem, aos ancestrais, à continuidade que a ligava à pré-história e o que ela tentou fazer em "O Labirinto do Mundo" foi reconstituir toda a linhagem dos ancestrais, saber quem eram, como viveram. Por fim, existe a língua, o que restou para ela como elemento de ligação à sua cultura. O interessante é que ela foi a primeira mulher a entrar na Academia Francesa de Letras e, embora tenha vivido 50 anos no exílio, encarnou um certo ideal da língua francesa.

Folha - Trata-se de um conceito de perfeição da língua que tem a ver com a idéia acadêmica de como a língua deve ser escrita e não com a estilização da oralidade. Yourcenar é o anti-Céline?

Sarde - Sim, é exatamente isso. Yourcenar era bastante conservadora.

Folha - Três meses após a morte de Grace Frick, Yourcenar, então com 76 anos, viaja com um jovem fotógrafo homossexual, Jerry Wilson, que ela amou apaixonadamente. Era de se esperar que isso acontecesse?

Sarde - Durante muitos anos, por causa da doença de Grace Frick, Yourcenar ficou prisioneira em Petite Plaisance (Prazerzinho), como elas chamavam a casa em que viviam. São os anos de vida imóvel. Acho que a viagem com Jerry Wilson corresponde à volta do nomadismo na vida dela. Do ponto de vista biográfico, isso nos remete ao pai de Yourcenar, que estava sempre viajando, vivia em hotéis, e dizia "A gente não se importa, a gente não é daqui, a gente vai embora amanhã".

Folha - Yourcenar tinha um péssimo sotaque em inglês, evitava escrever nessa língua e nunca se integrou nos Estados Unidos. Por que acabou adotando a nacionalidade americana?

Sarde - A nacionalidade para ela não tinha a menor importância. Adotou a nacionalidade americana em 1947, perdendo a francesa. Em 1980 foi necessário um processo para que ela a recuperasse e pudesse entrar na Academia Francesa de Letras. Yourcenar deixou a Europa para escrever a sua obra e, por causa desta, a Europa foi até ela. A mídia atravessou o Atlântico e chegou em Petite Plaisance. No fim da vida, ela descobriu que pertencia às diferentes culturas que amou, mas sobretudo à cultura francesa.

BETTY MILAN é psicanalista, autora do romance "O papagaio e o doutor" e do ensaio "O que é o amor"

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