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25. No Caminho de Swann

Os novos caminhos de Proust

(publicado em 07/07/2002)

Reedições de "Em Busca do Tempo Perdido" e de estudos sobre o romance apontam para uma redescoberta do escritor francês no Brasil

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
especial para a Folha

Ninguém diria, mas o Brasil já foi fértil solo para estudos proustianos. Lia-se muito Marcel Proust (1871-1922), e seus livros, obrigatoriamente importados, encontravam acolhida. O campo era tão propício que no final dos anos 40 a editora Globo, de Porto Alegre, encomendou --grandiosa tarefa-- a tradução de "Em Busca do Tempo Perdido" a alguns dos maiores escritores brasileiros.

Para tanto, a casa se valeu da experiência fora do comum de estar publicando "A Comédia Humana", de Balzac, entre 1945 e 1955, em 17 volumes. O empreendimento Balzac foi orquestrado por Paulo Rónai, que coordenou a equipe de tradutores e selecionou pessoalmente as introduções dentre o que de melhor havia na crítica internacional. Já a "Recherche" sairia em sete volumes, divisão assentada na França.

Hoje olhamos para a lista dos tradutores... e pasmamos. Mário Quintana responsabilizou-se pelos quatro primeiros volumes: "No Caminho de Swann", "À Sombra das Raparigas em Flor", "O Caminho de Guermantes" e "Sodoma e Gomorra". O quinto volume, "A Prisioneira", caberia a Manuel Bandeira; o sexto, "A Fugitiva", a Carlos Drummond de Andrade; e o sétimo e último, "O Tempo Redescoberto", a Lúcia Miguel Pereira. As traduções começaram a vir à luz em 1948. Não se pode dizer, é claro, que Proust chegasse jamais a ser propriamente popular. Mas o fato é que sucessivas tiragens da Globo se esgotaram, estando a obra hoje na 21ª edição.

Meio século depois, em 1993, a Ediouro traria a público uma nova tradução, também em sete volumes, feita por Fernando Py. Depois de revista, uma segunda edição está sendo lançada agora, com o formato modificado para três volumes. O que nos coloca na posição privilegiada de possuirmos não só uma, mas duas diferentes traduções da "Recherche" em português do Brasil.

Aqui, no capítulo das traduções incontornáveis que toda literatura deveria possuir, dentre as formadoras do século 20 como a de Proust, já contamos com as duas mais difíceis de James Joyce: a de "Ulisses" (ed. Civilização Brasileira), feita por Antonio Houaiss nos anos 60 e, em andamento, a de "Finnicius Revém", transcriação de "Finnegans Wake" assinada por Donaldo Schüler (ed. Ateliê).

Dos anos 1930 aos 60, todos os nossos maiores críticos escreviam sobre Proust em artigos de jornal, que depois seriam recolhidos em livros. Entre eles, contam-se Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Tristão de Ataíde, Augusto Meyer, Brito Broca, Paulo Rónai, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins, Lúcia Miguel Pereira, Sérgio Milliet... A exceção é Mário de Andrade, o qual, apesar de leitor e admirador, não chegaria a deixar um artigo diretamente sobre o tema. Durante longo tempo, crítico brasileiro que se prezasse frequentava Proust: é só folhear as coletâneas de seus ensaios. E, mesmo antes do período indicado, o primeiro profissional de calibre a devotar-se a análises mais abalizadas foi Tristão de Ataíde, em artigos ainda nos anos 20 que depois seriam recolhidos nas cinco séries de seus "Estudos" (1927-1933).

Um grande proustiano, pouco reconhecido por não ser crítico literário de profissão, foi Ruy Coelho. Ele participou da célebre revista "Clima", feita por um grupo de jovens de 20 anos, na qual seriam definidas vocações de críticos como a de Antonio Candido para a literatura, Décio de Almeida Prado para o teatro, Paulo Emílio Salles Gomes para o cinema, Lourival Gomes Machado para as artes plásticas, Gilda de Mello e Souza para a estética.

Ruy Coelho foi co-fundador e membro atuante desde o primeiro até o último dos 16 números da revista, em que estrearia com "Marcel Proust e a Nossa Época". Saindo no primeiro número, em maio de 1941, seria, nas suas 45 páginas, bem mais que um artigo. Apareceria depois em forma de livro, com o título reduzido para "Proust" (ed. Flama, 1944).

E não era nada de mais ver um crítico militante como Álvaro Lins apresentar-se a concurso para provimento de uma cátedra de literatura no colégio Pedro 2º, no Rio de Janeiro, em 1950, com tese intitulada "Da Técnica do Romance em Marcel Proust". Tampouco era surpreendente que a tese se transformasse em livro, o que ocorreu em 1956, pela José Olympio, com o título ligeiramente alterado pela retirada da preposição ("A Técnica..."). Na década seguinte, em 1968, a Civilização Brasileira reeditaria o livro, sem mexer-lhe no título.

Contato precoce - Em 1959 surgiria "Compreensão de Proust", de Alcântara Silveira, pela José Olympio, que receberia resenha de um proustiano de vida inteira, Antonio Candido, no "Suplemento Literário" de "O Estado de S. Paulo". O mesmo crítico faria nesse órgão outras resenhas relacionadas ao assunto, inclusive a de "Mon Amitié avec Marcel Proust - Souvenirs et Lettres Inédits" [Minha Amizade com Marcel Proust - Lembranças e Cartas Inéditas], reminiscências de Ferdinand Gregh, amigo pessoal do escritor, publicado em 1958; e a de uma biografia canônica, de autoria do inglês George Painter, de 1959. Leyla Perrone-Moisés, titular da seção de letras francesas no período de fastígio do suplemento, no decênio (1956-1967) em que Décio de Almeida Prado o dirigiu consoante o projeto de Antonio Candido, várias vezes teria oportunidade de referir-se ao autor.

Ainda em 1964 Hermenegildo de Sá Cavalcante, fundador da Sociedade Brasileira dos Amigos de Marcel Proust e mais tarde autor de "Marcel Proust -Roteiro Crítico e Sentimental" (1986, ed. Pallas), coordenaria a Semana Proustiana, realizada no Rio de Janeiro com a presença da sobrinha do escritor, Suzy Mante Proust, filha de seu único irmão, Robert.

Pouco lembramos que o Brasil conheceu precocemente a "Recherche". Devemos ao poeta alagoano Jorge de Lima as alvíssaras, conforme relata o supracitado proustiano. O ano era 1919 e o autor francês acabara de receber o prêmio Goncourt por "À l'Ombre des Jeunes Filles en Fleur", que já não era o primeiro da saga, mas despertara menos rejeições ou estranhezas de leitura que o anterior. Como é que Jorge de Lima, na remota Maceió, tomou conhecimento da obra? Aviadores franceses, ao atravessar o Atlântico, faziam habitualmente escala na base aérea da cidade, onde Jorge de Lima, que era médico, os examinava e tomava de empréstimo as últimas novidades das livrarias de Paris. A notícia é, todavia, contestada por outros que disputam as primícias da revelação, tanto em Belo Horizonte quanto no Rio.

Com o passar do tempo, aos poucos esse veio, fundamental para a melhor literatura, foi secando e os estudos foram minguando. É possível que o encerramento da língua francesa no secundário e a sua transformação em "língua instrumental" na universidade tenham muito a ver com esse processo.

Por outro lado, pode-se apontar outro fator no empobrecimento e quase extinção da crítica literária em periódicos, substituída que foi pelo "press realease" e pela resenha de livros novos. É uma pena, pois mais pessoas deixam de ter a oportunidade de informação e de acesso a um dos mais notáveis feitos da alta literatura que a humanidade já viu, privando-se assim de um prazer incomparável.

Entretanto nem tudo está perdido. Há uma tese de doutoramento defendida em Porto Alegre, em 1993, lamentavelmente até hoje inédita, da autoria de M. Marta L.P. Oliveira, sobre a recepção crítica brasileira do nosso autor. E neste ano dois fatos auspiciosos dão aos proustianos brasileiros bons motivos para celebrar. Coincidindo com a nova edição revista da tradução assinada por Fernando Py, sai também, e em boa hora, "A Educação Sentimental em Proust" (após "Proust, Poeta e Psicanalista", de 2000, pela Ateliê), de Philippe Willemart, professor titular de francês na USP. Especialmente quando nos damos conta de que há muito não surgia no país um livro sobre a "Recherche".

A pessoa de Proust sempre foi uma mina para os interessados na crônica oficiosa das letras e das artes. Afinal, ele era um Édipo de não botar defeito, apegado à mãe, asmático e homossexual, além de recluso na última fase da vida: tudo isso abrindo o flanco para prospecções nas zonas turvas da alma.

Tais traços biográficos ficam ainda mais evidentes no romance, quando se constata --mais leal à sua imaginação que aos fatos, aliás dever do artista-- quanto a mãe e a avó são presenças avassaladoras. Em compensação, o pai mal aparece, e ele mesmo faz de conta que é filho único, sequestrando num passe de mágica seu dedicadíssimo irmão Robert. Este, médico como o pai de ambos, cuidou de Marcel até a morte e depois ainda foi o primeiro a editar parte de sua correspondência. O escritor era um missivista compulsivo; bem mais tarde, quando a integral de suas cartas fosse publicada, preencheriam elas a enormidade de 21 volumes.

Hoje, na França, os estudos proustianos, sempre vivazes, receberam alento revivificador advindo dos trabalhos de Jean-Yves Tadié, que preparou na década de 90 uma monumental nova edição crítica pela Pléiade e uma biografia de quase mil páginas recheada de revelações, "Marcel Proust" (1996, ed. Gallimard). A produção da crítica genética tem contribuído de modo similar para redourar os brasões desses estudos, com destaque para o labor do Grupo Proust do "Institut des Textes et Manuscrits Modernes" (Item). Já entre nós, nem somos capazes de precisar há quanto tempo não se escrevia um livro inteiro sobre Proust. Estaríamos agora assistindo aos primeiros sinais de uma ressurreição? Façamos votos de que seja esse o caso.

Walnice Nogueira Galvão é professora titular de literatura na USP e autora de, entre outros, "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora" (ed. Ática).

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