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27. O Jovem Törless

O poderoso telescópio de um mestre do pessimismo

(publicado em 14/07/1996)

JOSÉ MARCOS MACEDO
especial para a Folha

Pelos idos de 1936, sobrecarregado pelo esforço de concluir o livro que cozinharia em fogo brando até o final de sua vida, Robert Musil viu a princípio com maus olhos a sugestão de alguns amigos, o historiador da arte Otto Pãcht à frente, para que coligisse em livro uma série de artigos aleatórios dispersa por vários jornais e revistas. Dono de uma infatigável capacidade de trabalho, o autor porém não era capaz de reverter a fortuna que se lhe tornava cada dia mais adversa, a ponto de mal-e-mal conseguir saldar seu aluguel. (Aliás, em 1934 já se constituíra uma agremiação cujo principal intuito era dotar o escritor vienense de meios para levar a cabo seu romance.)

Se de início fez-se de rogado, certo de esbarrar na incompreensão do público e talvez indesejoso de gastar cera com mau defunto, Musil viu-se na contingência de aceitar a proposta. Como "poderoso caballero es don Dinero", suas resistências foram logo dobradas com o aceno de algum pecúlio. No cômputo final, o autor viu burladas suas pretensões pecuniárias, mas não a excelência do resultado nem a confirmação de seu pessimismo, já transparente no título, "Obra Póstuma Publicada em Vida", que sai agora em ótima tradução de Nicolino Simone Neto.

Nesses textos, Musil faz da necessidade virtude, a exemplo de Borges que, quase à mesma época, também premido pela necessidade de sustento, nadava de braçada no espaço exíguo que lhe oferecia o periódico "El Hogar". O livro é dividido em quatro seções: a primeira, "Imagens", revela certa semelhança com a "Contemplação" de Kafka.

Com reduzida latitude de manobra, o autor não se empenha em forjar generalizações para ampliar seus movimentos numa forma delimitada. Antes, concentra-se num objeto, circunscreve assepticamente um detalhe, descobre coincidências súbitas e milimétricas, aponta correspondências inusitadas e, com uma linguagem de precisão cirúrgica, faz descortinar um lampejo simbólico que se destaca do objeto acalentado com tanto esmero. Como um diamante em estado bruto, o relato sofre uma lapidação que não peca pelo excesso, mas prima pela exatidão concisa.

Imperceptivelmente, o realismo contundente recai no feérico: o cavalo ri, no olho de um rato desponta a eternidade e na fronte das ovelhas ouvem-se bater os segundos da infinidade. O destaque cabe à peça "O Papel Mata-Moscas", obra-prima publicada em 1913 e da qual se notam claros ecos em "O Homem sem Qualidades".

Já a segunda seção, intitulada "Considerações Inamistosas", é digna dos melhores poemas em prosa de Baudelaire. Ervando suas flechas com meticuloso sarcasmo, o autor não se poupa ao prazer de profanar bens sagrados do ideário nacional alemão, como a floresta virgem, ou mesmo de desferir golpes certeiros no império, afirmando que a época produtora "do sapato pré-fabricado sob medida e da roupa 'prêt-à-porter' parece querer produzir também o escritor, composto de partes internas e externas, prontas para o uso".

O relato "Triedros" vale como programa teórico de todo o livro. Detalhes isolados, sob a lente de poderoso telescópio, perdem seu nexo comum e desvelam o real, numa manobra estilística cara a Biéli, em seu "Petersburgo", e que remonta ao Gógol de "O Nariz". O segredo está em observar "a vida humana em seus menores traços, quando ela se mostra distraída (...), até a hora em que ela se reanima e expressa-se candidamente naquilo que fazemos e nas coisas que nos cercam". Desvinculada do objeto, a parte, como símbolo, melhor revela o todo.

Se a terceira seção é composta de histórias divertidas nas quais se vê nitidamente o dedo de Strindberg, a quarta, de que faz parte exclusivamente a novela "O Melro", consta de três narrativas enfeixadas de modo sibilino. Com mão de mestre, Musil as une num jogo de contrastes e espelhos: na primeira, um dos protagonistas crê ouvir um rouxinol, embora descubra tratar-se de um melro; na segunda, acredita ouvir Deus, mas afinal constata que eram flechas aéreas, munição da Primeira Guerra Mundial, a lhe zunirem rente à cabeça; na terceira, o melro regressa na figura da mãe e lhe infunde bondade moral, numa circularidade que faz lembrar outro livro do autor, "Três Mulheres".

Há quem pense que tais artigos, a exemplo dos "Três Contos" de Flaubert, não passam de exercícios de estilo preliminares ao grande romance. Ledo engano: seu caráter seminal é mais do que mera coadjuvação, e sua prosa aliciante é inédita nas demais obras de Musil.

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