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27. O Jovem Törless

Genealogia do homem sem qualidades

(publicado em 20/05/2001)

No Império Austro-Húngaro decadente, ser um homem sem qualidades representava não uma forma de egoísmo ou um virar as costas para a realidade, mas uma saudável desconfiança quanto ao consabido, ao imposto pela esmagadora inércia do mundo

JUAN JOSÉ SAER

Um dia, em meados do século 9º, no nordeste da China, no mosteiro que dirigia, Lin-Tsi, o mestre da seita budista Tch'ang (em japonês zen, ambas pronúncias locais do sânscrito Dhyâna, "meditação"), subiu à cátedra e deu uma de suas mais célebres lições. "Sobre vosso conglomerado de carne vermelha, há um homem verdadeiro sem situação, que, sem cessar, entra e sai pelas portas do rosto. Vejamos o que pensa disso um dos que ainda não falaram!' Um dos monges saiu do grupo e lhe perguntou como era o homem verdadeiro sem situação. O mestre desceu de seu banco de meditação e, agarrando e imobilizando o monge, ordenou: 'Dize-o tu mesmo, anda!'. O monge hesitou. O mestre o soltou e disse: 'O homem verdadeiro sem situação é um montinho qualquer de excremento'. E voltou para sua cela."

No original, a expressão "um montinho qualquer de excremento" é muito mais crua e, para sua publicação na Folha, foi substituída pela presente, que aparece em outra versão da mesma cena. O eminente sinólogo francês Paul Demiéville, que traduziu as "Lições" de Lin-Tsi em 1977, comenta assim a brutal comparação, que se revela mais surpreendente quando sabemos que é também utilizada muitas vezes para designar Buda: "Toda definição do homem verdadeiro só pode ser imprópria, vil, suja, posto que, por definição, é o que escapa a toda definição".

Uma entidade indefinida

No que se refere ao homem verdadeiro sem situação, o professor Demiéville oferece o seguinte comentário: "A expressão homem verdadeiro vem diretamente dos filósofos taoístas da Antiguidade, embora também tenha sido usada para designar Buda e Arhat (o santo liberto) nas primeiras traduções chinesas dos textos búdicos. A palavra "situação" aplica-se, no vocabulário administrativo, à situação de um funcionário na hierarquia oficial. Como essa hierarquia incluía toda a elite social, que era o único grupo que contava na antiga China, um homem sem situação era um ente marginal, carente de status, uma entidade indefinida.

É mais ou menos no sentido de Lin-Tsi que o romancista austríaco Robert Musil, que tanto se interessou por Lao Tsé pouco antes de sua morte trágica, em 1942, concebia seu herói como um homem sem características particulares, "Der Mann ohne Eigenschaften" ("O Homem sem Qualidades" na tradução brasileira, ed. Nova Fronteira).

A exata referência acima contém apenas um erro: a morte de Robert Musil foi talvez prematura (tinha 61 anos), mas não trágica. Sua mulher, Martha Marcovaldi, conta-a assim numa carta: "Depois de uma manhã tranquila, passada entre sua mesa de trabalho e o jardim, ele subiu as escadas que levavam ao banheiro, dizendo: 'Vou tomar um banho antes de almoçar'. E, enquanto se despia, durante um exercício físico ou simplesmente por causa de um movimento brusco, foi fulminado por um ataque. Poucos minutos depois de ele subir, abri a porta do banheiro para chamá-lo e o encontrei sem vida. Era impossível aceitar que estivesse morto, a tal ponto ele parecia vivo com sua expressão de surpresa irônica no rosto".

Uma morte sob medida para o discreto mentor do homem sem qualidades! Morrer, poderíamos dizer, em plena saúde e experimentar não temor, mas uma surpresa irônica diante da irrupção imprevista da morte, seja talvez a confirmação irrefutável de suas teorias. Porque o homem sem qualidades é aquele que, desembaraçando-se de todas as convenções, as posturas sociais, os conteúdos intelectuais e morais, as máscaras de identidade, os sentimentos e emoções calcados nos difundidos pelo entorno, a sexualidade canalizada nos diques do socialmente aceito, voltando ao grau zero da disponibilidade, construirá sua vida se opondo a todo automatismo e a todo lugar-comum da inteligência, da vida afetiva e do comportamento.

No Império Austro-Húngaro decadente, acossado pelas pomposas pretensões da corte e pelas constantes reivindicações do arquipélago de pequenas e grandes nações e culturas que o compunham, ser um homem sem qualidades, reivindicar apenas a própria disponibilidade sem prévias adesões compulsórias a supostas causas, sagradas ou não, a determinadas normas de conduta, ditadas como eternas e pensadas para reger a sucessão de gerações fugitivas, supostamente idênticas umas às outras, representava não uma forma de egoísmo ou um modo de virar as costas para a realidade, mas uma saudável desconfiança quanto ao consabido, ao irrefletido, ao imposto pela esmagadora inércia do mundo.

Musil nasceu numa pequena cidade austríaca em 1880. Destinado para a carreira militar ou científica, aos poucos foi abandonando tudo, apesar das perspectivas promissoras em suas outras atividades, para se dedicar inteiramente às letras. E, embora tenha escrito vários magníficos contos, uma peça de teatro, alguns ensaios minuciosos e um apaixonante diário íntimo, poderíamos dizer que também abandonou a literatura para se entregar por completo à redação de "O Homem sem Qualidades", romance que tomou quase 30 anos de sua vida e que ficou inacabado. Os únicos dois volumes que ele publicou em vida, em 1930 e 1933, tiveram grande sucesso de crítica, mas não venderam, principalmente o segundo, cuja aparição coincidiu com a chegada de Hitler ao poder.

Musil, que estava em Berlim nesse momento, emigrou primeiro para Viena e depois para Zurique e Genebra, onde viveu na miséria até sua morte. Em 1938, os nazistas incluíram seus livros na lista de obras "indesejáveis e nocivas" e as proibiram na Alemanha. Mas, no ano 2000, uma enquete entre os principais críticos literários da Alemanha mostrou que a maioria deles considerava "O Homem sem Qualidades" o mais importante romance do século 20 escrito em alemão.

Fiapos de homens

Ulrich, o protagonista, não tem nada do aventureiro ou sensualista que quisesse desfrutar indefinidamente de novas experiências, à maneira dos decadentistas do final do século 19. É um espírito racional, sistemático, amável e jovial. Sua vida transcorre no marco de uma banal existência burguesa. Seu único ato verdadeiramente transgressivo é a relação amorosa que mantém com sua meia-irmã, que, ao longo do romance, vai se transformando no elemento simbólico de uma vida sistematicamente voltada a transcender as convenções exorbitantes que o mundo impõe aos indivíduos.

Portanto o homem verdadeiro sem situação do enérgico mestre Lin-Tsi reaparece inesperadamente em nosso tempo no grande romance de Robert Musil. Mas, em outro registro, ele também poderia ser representado por esses fiapos de homens que são os personagens de Samuel Beckett. Em todo caso, ele está presente nas reflexões atuais sobre a crise e o estatuto do sujeito, bem como na desconfiança de alguns sobre todas as ideologias que exaltam, sem maior precisão, os discutíveis méritos do conceito de identidade.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.

Tradução de Sergio Molina.

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