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30. Quase Memória

'O Ventre' narra trajetória de jovem rejeitado

(publicado em 11/04/1998)

Primeiro romance de Carlos Heitor Cony, escrito em 1958 para concurso da Academia Brasileira de Letras, é relançado

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

A editora Companhia das Letras relança o romance de estréia do escritor e colunista da Folha Carlos Heitor Cony, 62, 12 romances publicados.

"O Ventre", de 1958, foi escrito quando o autor de "Quase Memória" (prêmio Jabuti, 1996), "O Piano e a Orquestra" (Prêmio Nestlé, 1997) e "A Casa do Poeta Trágico" tinha 29 anos.

"Meus melhores amigos, como o já falecido Ênio da Silveira (editor de livros), sempre o consideraram meu melhor livro", comenta o escritor.

Originalmente escrito em 1955, "O Ventre" foi inscrito num concurso literário promovido pela ABL (Academia Brasileira de Letras) e pela antiga Secretaria da Cultura do Distrito Federal.

Ele narra a trajetória de José Severo, garoto que nasceu em uma família de classe média alta do Rio de Janeiro (RJ) e é categoricamente desprezado pelo pai --o filho é fruto de uma relação adúltera de sua mãe.

José é um adolescente sôfrego, feio como o cão (alto e narigudo), que tem uma relação de amor e ódio com o irmão mais novo, um brando superprotegido e asmático, de intelecto bem desenvolvido.

Foi matriculado num colégio interno, enquanto o irmão teve todas as atenções da casa para si.

Depois de ser pego fornicando com a vizinha da escola, mulher de um capitão do Exército, José, expulso, ficou proibido de se matricular em qualquer outra escola pública. Largou o Rio de Janeiro e foi dirigir ônibus em Maceió.

A ABL não deu o prêmio para Cony, mas recomendou-o à publicação.

"Houve três pareceres, entre eles o de Manuel Bandeira (poeta), afirmando que meu livro era muito forte. Publicaram isso no Diário Oficial", lembra Cony.

"O Ventre" causou furor, elegendo o autor, formado em filosofia, à estatura de romancista de prestígio de crítica e público. O livro já vendeu sete edições.

Leia, a seguir, terchos da entrevista que Carlos Heitor Cony deu por telefone em sua casa, no Rio de Janeiro.

Folha - O senhor escreveu o livro para o concurso literário?

Carlos Heitor Cony - Já o tinha escrito antes. Mas o concurso me fez finalizá-lo. Eu não tinha conhecimento da área literal. Eram esses concursos que exigiam pseudônimos.

Folha - E qual era o seu?

Cony- Luís Capeto, pseudônimo do rei Luís 16, quando foi enforcado.
Os franceses não enforcavam o rei, mas o pseudônimo, para mostrar que o rei era um cidadão igual a um bastardo.

Folha - Por que não lhe deram o prêmio, apesar de assumirem que era o melhor livro do concurso?

Cony- Disseram que era um livro muito forte e cruel. Não só por causa dos palavrões; já havia palavrão na literatura brasileira, como em Jorge Amado.
Disseram que esse livro era contra a condição humana. O personagem é um filho da puta, sua mãe também, mas são pessoas normais. O leitor fica com raiva, com repulsa.

Folha - No entanto, ele vendeu sete edições e está sendo relançado.

Cony- Um autor sempre suspeita da permanência de sua obra. Fico feliz por saber que "O Ventre" permanece. É um livro dos anos 50, antes da pílula. As pessoas usavam chapéu. Era no clima da morte de Getúlio (Vargas).

Folha - O cenário, o pessimismo, a burguesia cínica e o adultério são inspirados em Machado de Assis?

Cony- Sim. Com a presença do existencialismo de Jean-Paul Sartre, que me marcou muito.
Machado foi um pré-existencialista. A cólera pela condição humana, o personagem alienado.

Folha - Mas o formato do livro é machadiano.

Cony- É. Vivi ambientes parecidos com o de Machado, mas ninguém percebeu a influência de Sartre na minha obra. Existem cacos que são plágios de Sartre. Copiei insensivelmente, não literalmente.

Folha - O seu pai era semelhante ao pai de "O Ventre", um ausente, ou ao de "Quase Memória", um apaixonado pela vida?

Cony- São totalmente diferentes, mas meu pai está mais para o de "Quase Memória". "O Ventre" é mais romance, apesar de defeitos de carpintaria e o desejo de dizer tudo ao mesmo tempo. "Quase Memória" é uma crônica, não uma história. É uma quase história.

Folha - "O Ventre", por ser o primeiro, é seu livro mais cru e cruel?

Cony- Não. Eu acho que é "Pilatos", de 1972, meu melhor livro, na minha opinião.

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