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30. Quase Memória

Cony faz caso de amor sem palavras

(publicado em 24/04/1999)

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha

Um escritor deve estar afinado com o seu editor, esta ponte entre a solidão, o ato insano de escrever e o mercado? O escritor carioca Carlos Heitor Cony, 73, está bem afinado.

Recebeu em abril a encomenda (ou sugestão) de escrever um livro a ser lançado nas duas maiores feiras de livro brasileiras, a do Rio de Janeiro e a de São Paulo, que acontecem agora, e, em 11 dias, no período morno do Natal e réveillon, escreveu o romance (ou novela) "Romance sem Palavras".

O autor, membro do Conselho Editorial da Folha, já vai avisando, diante do paradoxo que o título gera, que o romance em questão não é o gênero literário, mas um relacionamento amoroso. É um caso de amor sem palavras. Afirma, ainda, que o que escreveu nem é um romance, mas uma novela.

Novela ou romance? Foram os teóricos ingleses que procuraram as características que distanciam um gênero do outro. Novela, definiram, com o carimbo de aprovação do escritor E.M. Foster e seu grupo, é um romance mais curto, com uma trama mais concentrada e personagens escassos.

Diferente, vírgula

Novela seria a ilha perdida entre o romance e o conto. A crítica literária brasileira nunca deu bola pra essa definição. Fez bem a crítica brasileira, em não perder tempo com a meticulosidade do pensamento crítico inglês. Mas isso já é uma outra conversa.

Depois dos premiados "Quase Memória" (1995), "O Piano e a Orquestra" (1996), "A Casa do Poeta Trágico" (1997) e de ver relançados seus primeiros romances, como "O Ventre" (1958) e "Matéria de Memória" (1962), Cony entrega ao leitor um livro bem diferente dos anteriores. Diferente, vírgula.

O triângulo amoroso Irene, Jorge Marcos e Beto gira, como um pião, dentro da trama, limando, com suas arestas, os caminhos imprevisíveis. A novidade é o tema.

Biografia possível

Cony fala de militância política, luta armada, prisão, tortura, clandestinidade, ações políticas, eventos pouco eventuais no começo da década de 70. O ponto de partida é o susto que Beto, um ex-professor de história, leva ao ver jogado, em sua cela, a B17, um preso torturado. Beto limpa o rosto coberto de sangue de seu desconhecido companheiro de cela.

Essa imagem se repete em todo o romance. Revela-se que Beto, na verdade, é um dos muitos militantes casuais da luta armada. E que o preso torturado é Jorge Marcos, um padre engajado. Uma mulher, Irene, aflora entre eles.

Anos depois, eles se reencontram em Angra. São burgueses conformados, diante do mar, que falam de pesca, barcos, literatura. "Todo romance é uma biografia possível do autor", afirma Beto.

Verruga da memória

A imagem de um preso torturado sendo jogado em sua cela aconteceu, de fato, com o autor, em uma de suas seis prisões, durante o regime militar. Tal imagem reacendeu no dia em que o editor encomendou um novo romance.

As lembranças do cheiro de um capuz, da sensação de estar sendo levado, sem poder ver o caminho, da cela, das missões clandestinas, aparecem na ficção, mas são verrugas da memória do autor.

É o que Carlos Heitor Cony, que atualmente escreve "Missa pro Papa Marcello", um "romance complicado", segundo suas palavras, conta, em entrevista por telefone, do Rio de Janeiro.

Folha - Todo romance é uma biografia possível do autor?

Carlos Heitor Cony - Essa é uma frase meio banal, que usei no livro. É verdade. Um escritor sempre escreve o que pensou ter vivido.

Folha - O tema luta armada é inédito em seus livros?

Cony- "A Travessia", de 1966, portanto antes do AI-5, procurou analisar a opção da luta armada como opção de uma geração. Mas, em 1966, quase nada havia ainda acontecido. Fiz um livro crítico, sobre essa vontade de ser heróico.

Folha - Qual foi a sua opção, na época?

Cony- Nos anos 60, ou partia-se para o paz-e-amor ou para a guerra. Eu não era uma coisa nem outra, mas as pessoas que eu conhecia, minhas namoradas, tinham essa opção. Eu ficava sobrando no mundo. Não tinha apelo para ser hippie ou guerrilheiro. Nem idade. Eu não tinha apelo para a fuga da realidade.

Folha - Quantas vezes você foi preso?

Cony- Entre 1965 e 1972, fui preso seis vezes. Algumas prisões foram rápidas, duravam dez dias, e outras mais longas, que duravam 60 dias. Vi tortura, mas nunca fui torturado. A primeira cena do livro "Romance Sem Palavras" realmente aconteceu. Um sujeito muito torturado foi jogado na minha cela. Vomitei quando o vi. Nasceu, desse fato, minha incompreensão da época.

Folha - Quem era esse sujeito?

Cony- Era um bancário. Eu não o conhecia e cheguei a reencontrá-lo depois. Limpei o sangue, procurei ajudá-lo. Eu era apenas um jornalista que combatia o regime escrevendo para jornais. Fui a várias reuniões com pessoas envolvidas com a guerrilha, dei palestras em faculdades, cheguei a entregar documentos secretos, material de propaganda, em encontros marcados com pessoas clandestinas. Fui a Cuba, em 1968, mas nunca mergulhei nessa opção.

Folha - Por que 30 anos depois resolveu escrever sobre o período?

Cony- A época está sendo revista. E ainda há a mesma confusão e espanto. No fundo, eu queria escrever sobre o apelo dessa turma que, hoje em dia, tratou de ganhar a vida. Essa causa não deixou nada.

Folha - Por que você foi preso tantas vezes?

Cony- Eu era do grupo da editora Civilização Brasileira, em que se aglutinou a primeira resistência contra o regime militar. Fui um combatente casual. Sempre tive desprezo pelo fato político. Era um alienado. Meus livros eram alienados e continuam sendo.
Mas não sou um verme. Uma vez fui preso porque vaiamos, com Glauber Rocha e Antonio Callado, o ex-presidente Castello Branco, no hotel Glória (no Rio de Janeiro). Fiquei perto dele. Olhei no seu olho e xinguei-o de "filho da puta".

Folha - Qual a herança da época?

Cony- Foi uma fase heróica. As pessoas arriscaram suas vidas. Tenho amigos que até hoje não se recuperaram da tortura que sofreram. Mas o pessoal se acomodou. Guerrilheiros viraram comerciantes. Não temos, hoje, um motivo de partir para uma aventura. O tempo passou, e essa turma se transformou em burgueses conformados. E a vida ficou sem sentido para todo mundo. Aceitamos a vida sem sentido.

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