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30. Quase Memória

'Sou um anarquista triste, humilde e inofensivo', diz Cony

(publicado em 31/05/2000)

CRISTINA GRILLO
da sucursal do Rio

O fardão já está pronto e o discurso também. O escritor Carlos Heitor Cony, 73, membro do Conselho Editorial da Folha, que toma posse hoje na cadeira número 3 da ABL (Academia Brasileira de Letras), sucedendo o escritor Herberto Sales, dedica-se agora a pequenos ajustes --no fardão e no discurso.

"Tenho de me acostumar com a roupa. Acho que fico parecendo um gafanhoto", disse Cony à Folha na segunda-feira, enquanto experimentava o traje que usará hoje à noite: um tipo de fraque verde-oliva, com bordados feitos com fios de ouro no peito, na gola e nos punhos, acompanhado por um chapéu preto com plumas brancas e por uma espada.

O discurso está sendo relido em voz alta, numa espécie de ensaio para a noite de hoje. Nos ensaios, Cony percebeu que precisa fazer algumas alterações. Está pensando em retirar do texto, por exemplo, a palavra "inexoravelmente". "Na hora do discurso, nervoso, vou engasgar com ela", justifica.

Cony conta que passou os dois últimos meses estudando para preparar seu discurso --de acordo com a tradição acadêmica, o novo imortal relembra, ao tomar posse, seus antecessores.

Mergulhou na obra de Herberto Sales e nos trabalhos de Felinto de Almeida, Roberto Simonsen e Aníbal Freire, outros ocupantes da cadeira. "Procurei fazer o meu dever de casa direitinho", diz.

Em outro trecho do discurso que fará hoje à noite, Carlos Heitor Cony se define como "um anarquista triste, humilde e inofensivo". "Não tenho disciplina suficiente para ser de esquerda, não tenho firmeza suficiente para ser de direita e não tenho a imobilidade oportunista do centro."

Por isso, vai citar no discurso Eça de Queiróz: "Diante de tanta miséria humana, tanto velho sem pão, tanta criança sem teto, só me resta aderir ao anarquismo entristecido, humilde, inofensivo".

"É isso que sou, um anarquista triste, humilde, porque não tenho intenção de fazer proselitismo, e inofensivo, porque sou muito preguiçoso para sair por aí jogando bombas, assassinando", explica. Desde sua eleição, no final de março, o escritor vem se acostumando às tradições da ABL. Isso significa que, às quintas-feiras à tarde, Cony tem ido ao chá no qual se reúnem os imortais.

"A liturgia não me desagrada, de jeito nenhum. Estudei em um seminário não por um sentido místico, mas porque a liturgia me atraía. E a da ABL não vou dizer que me fascina, mas também não me repele. O chá é muito gostoso, há a convivência cordial", afirma.

E continua: "O pessoal senta ali, chega o Evandro Lins e Silva, com seus 88 anos, e começa a contar do julgamento do José Rainha, comendo pasteizinhos. Depois chega o Rouanet e conta sua festa de despedida na embaixada em Praga, comendo bolinhos. É muito civilizado, há muita cordialidade, mas é evidente que há grupos que se separam politicamente".

Da liturgia acadêmica, Cony mudaria pouca coisa. O fardão, por exemplo, ele considera um pouco exagerado. Não gosta da espada, que considera um objeto sem sentido para o cargo.

"Para que ela serve? Para defender o idioma? Eu adoro o meu idioma, mas não estou disposto a morrer ou matar por causa dele, de jeito nenhum. Eu, que nunca tive uma arma. Receber uma espada de repente é um pouco pesado. Mas são pequenos detalhes."

O escritor discorda dos críticos que consideram a Academia uma espécie de cúmplice do poder, por ter eleito, em diferentes ocasiões, nomes como Getúlio Vargas (quando era presidente), o general Lira Tavares (membro da Junta Militar que governou o Brasil de agosto a outubro de 1969) e o ex-presidente José Sarney (1985-1990).

"Não é bem assim. Pela Academia passaram nomes como Antonio Houaiss, Darcy Ribeiro, Celso Furtado. A mesma Academia que elegeu Roberto Campos elegeu Celso Furtado. Em nenhum partido político os dois estariam juntos, e lá eles se cumprimentam, se abraçam, comem bolinhos, falam de suas famílias na maior cordialidade, e nenhum tenta convencer o outro de que está errado."

A agitação em torno da eleição deixou a vida de escritor de Carlos Heitor Cony "meio misturada". Uma biografia de José Lins do Rego, que estava em andamento, ficou um pouco de lado, mas Cony afirma que até o final do ano entregará os originais para a editora Objetiva. Um novo romance, pedido por seu editor na Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, deverá ser escrito "em setembro e outubro", apesar de Cony ainda não ter pensado em um tema.

"Não tenho assunto ainda, mas sentando sai um romance. Já fiz isso outras vezes. No caso do José Lins do Rego é diferente, é preciso pesquisa, tenho de ter rigor histórico. Romance é livre, posso contar qualquer história. Como eu não dou muita bola para o enredo, começo a escrever e vou embora. Trama é bom para cinema, televisão, teatro. No romance, o problema é o tempero."

Cony toma posse hoje, às 21h. Será saudado pelo acadêmico Arnaldo Niskier, ex-presidente da instituição. Receberá o colar de acadêmico da escritora Lygia Fagundes Telles, o diploma, de Evandro Lins e Silva e a espada, de Josué Montello.

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