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30. Quase Memória

Cony volta a se render a "Pilatos"

(publicado em 10/03/2001)

SYLVIA COLOMBO
da reportagem local

Saiu o livro preferido de Carlos Heitor Cony. 'Pilatos' é a minha visão do mundo, e acho que vou morrer com ela", diz o escritor, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha.

Inicialmente publicado em 1974 e reeditado agora pela Companhia das Letras, "Pilatos" --nono romance do autor-- conta as andanças de um mendigo sem pênis pelo submundo carioca. Mutilado depois de um atropelamento, o protagonista carrega consigo o membro decepado, guardado num vidro de compota, enquanto tenta sobreviver pelas ruas do Rio.

Cony ficou tão satisfeito com "Pilatos" que deixou de escrever romances por mais de 20 anos. O retorno aconteceu em 1995, com o premiado "Quase Memória".

O título, "Pilatos", tirado de uma letra de Paulo Vanzolini ("Samba Erudito"), refere-se mais ao momento que Cony vivia no começo dos anos 70 do que ao enredo da obra. O escritor conta que, ao ouvir os versos de Vanzolini ("E assim me rendi ante a força dos fatos: lavei minhas mãos como Pôncio Pilatos"), percebeu que era o momento de "dar uma banana à política e à literatura". "Para a política, porque esperavam de mim naquele contexto do regime militar um livro engajado, e, para a literatura, porque fiz a coisa mais antiliterária possível."

Leia abaixo os principais trechos da entrevista que o escritor concedeu à Folha.

Folha - Você diz que "Pilatos" é seu melhor livro. Por quê?

Carlos Heitor Cony - É o livro de que mais gosto. Considero-o melhor porque é o meu livro mais "meu". Todos os outros poderiam ter sido escritos por qualquer um. O "Quase Memória", por exemplo, qualquer um poderia fazê-lo, um pouco melhor, um pouco pior. Em sua estrutura, é um livro tradicional, no conteúdo, na linguagem, na técnica. Como "Guerra e Paz". Eu posso fazê-la, é claro que vai ser uma "Guerra e Paz" vagabunda, mas posso tentar. Do mesmo jeito, todos os meus livros poderiam ser feitos por outras pessoas, de forma pior ou melhor. Mas "Pilatos" não, é um livro muito próprio meu.

Folha - Parece haver um parentesco entre "O Ventre" (1958, seu primeiro livro) e "Pilatos", no que diz respeito à escatologia, à pornografia e a uma constante sensação de repulsa. Você concorda?

Cony- O Otto Maria Carpeaux dizia que havia germes de "Pilatos" em "O Ventre". Acontece que "O Ventre" foi o meu primeiro livro, eu não tinha ainda experiência nem técnica literária. Era um principiante, influenciado por Sartre e Machado de Assis. Talvez eu tivesse vontade de escrever algo como o "Pilatos" na época, mas eu não saberia fazê-lo, então fiz "O Ventre". "Pilatos" foi escrito na minha maturidade, eu tinha 42 anos, estava numa fase muito boa e escrevi o livro, que considero uma espécie de fala do trono. Dei uma banana para a literatura. E para a moral, para os bons costumes, para a condição humana. Lavei as mãos. Daí "Pilatos".

Folha - A inspiração veio de uma música do Paulo Vanzolini, mas o título do livro não tem relação com o enredo. Dizia mais respeito ao momento que você vivia?

Cony- Sim. Eu estava tirando o corpo fora. Vinha de uma participação política muito grande por meio do jornalismo, fui preso. Estava muito engajado e, de repente, resolvi lavar as mãos. Não só da vida política, mas também da vida social, da vida-vida. O que me irritou foi a recepção que o livro teve, muita gente considerou-o de sacanagem, erótico. Mas ele é anti-erótico, acho que uma pessoa que lê o livro passa um ano sem tesão.

Folha - Você aposta mais na repulsa do que na idéia de erotismo.

Cony- Exatamente, o livro passa uma repulsa ao sexo. Quando eu o escrevi, estava dirigindo uma revista masculina. Minha função era visitar o juiz de menores, militares, e explicar que aquilo não era pornografia, era erotismo. A gente falava da Renascença, do nu dos gregos. Então eu tomei um nojo terrível pelo erotismo e achei que o certo seria a pornografia pura e simples. Fiquei com um profundo horror a essa coisa burguesa de enaltecer o erotismo, achar que é uma coisa bacana, sofisticada e, ao mesmo tempo, desprezar a pornografia, quando a pornografia é mais humana.

Folha - Como um homem que perdeu tudo, privado até de seu órgão sexual, pode se apegar à vida?

Cony- Ele perdeu tudo e não quis se separar do vidro com o pênis dentro para ter uma referência do que poderia ter sido. Isso tem a ver com a situação do Brasil. O livro foi escrito em 72, logo depois dos acontecimentos políticos do final dos 60. Havia um clima de questionamento do que seria a condição humana. E eu achei que um homem sem o pênis seria talvez símbolo do homem da época.

Folha - Você diz que não gostou da forma como o público reagiu ao livro quando foi lançado. Por quê?

Cony- Eu não esperava recepção. Meu editor me avisou: isso não é livro que se faça. Ele só publicou porque eu tinha uma situação boa na editora. O que fizeram foi a homenagem do silêncio. Eu entendi isso, foi consciente.

Folha - Consciente?

Cony- Sim, as pessoas esperavam um livro político. E este, em certos aspectos, poderia ser visto como um livro covarde, eu não queria me comprometer. Mas não era isso, era a consciência da inutilidade da minha luta. Não da luta em si, mas da minha luta.

Folha - E você sente que o livro o libertou mesmo?

Cony - Sim, eu só voltei a escrever ficção porque estou vivendo mais que minha obra. Com Thomas Mann foi o mesmo. Ele dizia que o azar dele tinha sido não ter morrido depois de ter escrito "Doutor Fausto". Eu também, deveria ter morrido nesse meio tempo. Quando voltei, fiz questão de fazer referência a "Pilatos" e à boa fase que eu vivia na época.

Livro: Pilatos
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 24 (219 págs.)

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Lançado: 21/12


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