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"Trópico de Câncer" quebra aura romanesca do amor

(26/07/2003)

JOSÉ MARIA CANÇADO
especial para a Folha

Poucos escritores e poucas obras no século 20 dispuseram, como Henry Miller (1891-1980), antagonismos e inimigos tão inequívocos. Expressão dessa legião são os inúmeros processos e acusações de obscenidade movidos contra a sua obra por “cartéis de cidadãos” (assim se autodenominavam e se constituíam juridicamente algumas dessas ligas), com confisco de edições, condenação de editores e livreiros: este “Trópico de Câncer”, por exemplo, cuja primeira publicação é de 1934 (em Paris), só surgiu nos Estados Unidos em 1961, vendendo então mais de 1,1 milhão de exemplares em um ano.

Mas os inimigos e o antagonismo suscitados e afrontados pelos livros desse filho de imigrantes alemães, nascido no Brooklin em 1891, uma divertida expressão mongol nos olhos apertados, não se resumem a essas ligas de moralidade.

Seu antagonismo era com a administração do espírito e da vida, o “pesadelo refrigerado” (título do seu livro de ensaios sobre a América, de 1944, e que se tornaria uma expressão e uma tópica da sua recusa do mundo administrado), com a dessublimação repressiva do eros e do sexo (tema marcuseano de três décadas depois), com a retração da experiência.

Hoje, esses temas parecem ter perdido, por assim dizer, a centralidade histórica, política e cultural que tiveram. Certamente porque os aspectos regressivos da dominação e as formas de controle, planetarizadas e aparentemente sem fissura, ganharam outros patamares e outro grau de violência. Como se, recolhidos a pauta e o ânimo libertário da segunda metade do século passado, que Henry Miller prefigurou, não fosse tão mais discernível a força de criação artística e literária desse antagonismo ativo que ele chamou para si e viveu, à maneira de uma crucificação muito pessoal e encarnada (“The Rosy Crucifixion”, crucificação encarnada, é o título da sua trilogia americana, formada por “Sexus”, de 1949, “Plexus”, de 1953, e “Nexus”, de 1960), e ele tivesse se tornado um Walt Whitman não entre as folhas da relva, mas “entre cadáveres”, como observou George Orwell, que não gostava dele.

Mas não é o que se passa. Em especial nesse “Trópico de Câncer”, sua obra-prima (publicado pela primeira vez no Brasil em 1963), e que é o relato dos anos passados pelo escritor em Paris, na década de 30, trajetória contrapassante, pois Henry Miller vai para a França quando a “geração perdida” dos norte-americanos estava voltando para a América. É que a moral literária e vivencial de Henry Miller é feita de um assentimento e de uma exploração quase “despautadas” do “valor restaurativo da experiência, fonte primária da sabedoria e da criação”, como disse Anaïs Nin, que o escritor conheceu na França em 1931 e se tornaria sua amante. É o seu tema, que transborda dos embates históricos e culturais.

Para tanto, ele criou um padrão seu. “Minha idéia de colaborar comigo mesmo tem sido abandonar o padrão ouro da literatura”, escreveu em “Trópico de Câncer”. Isso resultou na criação de uma espécie de moral e de feição pré-artísticas fundamentalmente artísticas, exploratória e cabalmente artísticas. Algo análogo ao que foi chamado de “cor psíquica”, ou composição psíquica, em Picasso, forma de resolução essencial da experiência. Queria também saber o que aconteceria se abandonássemos “o padrão ouro do amor”. “Trópico de Câncer” é o romance desse abandono, da quebra da aura romanesca do amor. E não em favor de um brutalismo sexista, mas na busca do que ocorreria se tudo isso, que está envolvido “nesse negócio de foder” (referia-se assim ao assunto) fosse visto com um “olho cosmológico” (título de um livro de ensaios de 1945). A mesma Anaïs Nin testemunha, a esse respeito, que tal não implicava, no caso de Henry Miller, uma “tendência retrogressiva, mas um balanço para a frente de áreas inexploradas”.

É numa condição de quase mendicância, e nesse regime meio ctônico do sexo e do amor (“Se alguém soubesse o que significa ler o enigma daquela coisa que hoje é chamada ‘racha’ ou ‘buraco’, este mundo se partiria ao meio”), que o narrador vive nas ruas de uma Paris “cujo encanto nenhum homem pode compreender até ser obrigado a procurar refúgio nelas, até ter-se tornado uma palha jogada para cá e para lá pelo próprio zéfiro que sopra”. É aí, entre as inúmeras mulheres da sua vida (um mundo no qual ele nunca deixa de encontrar “o valor restaurativo” da experiência, mesmo quando ele se vê atingido pelas figuras quase rupestres de dor, nascidas da perda de Mona, sua mulher americana), entre uma trupe de conhecidos e de amigos que ele pinta como personas dramáticas, sempre no limiar de algo, que ele prova a sua alma. E o faz, na sua exacerbada dissidência histórica e espiritual, convocando “a natureza do bode ou do titã”.

O resultado é uma prosa na qual o brutalismo da afronta e das invectivas contra o mundo compõe-se com imagens de uma beleza inaudita, a verdade psíquica e figural da devastação mas também do êxtase e da ressurreição, na qual a gramática incoerente e meio dadá das digressões e da narração (“eu sou o único dadaísta dos Estados Unidos e não sabia disso”, comentou) compõe-se com o balanço daquelas “áreas inexploradas”, e a quebra do “padrão ouro” da literatura e dos sentimentos com a preparação e a antevisão do que seria uma experiência verdadeiramente cósmica de liberdade, e de criação artística.

José Maria Cançado é autor de “Memórias Videntes do Brasil - A Obra de Pedro Nava”, que deverá ser publicada pela editora da Universidade Federal de Minas Gerais, e de “Os Sapatos de Orfeu” (ed. Scritta), sobre Carlos Drummond de Andrade

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