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"Nosso Homem em Havana" cutuca paranóia da guerra

(18/10/2003)

CASSIANO ELEK MACHADO
da Folha de S.Paulo

Graham Greene costumava desenhar uma espécie de linha do Equador sobre os numerosos livros que escreveu. O autor inglês, nascido em 1904 e morto há 12 anos, dividia sua prosa entre os "romances" e os "entretenimentos" (ou "divertimentos").

Na primeira gaveta enfiava obras como "O Poder e a Glória", "Fim de Caso" e "The Heart of the Matter" ("o nó do problema", "o cerne da questão", qualquer coisa que não o "O Coração da Matéria" da tradução brasileira).

Nessas obras "sérias", Greene se aproximava de uma de suas máximas, a de que o religioso e o escritor nunca alcançam o que buscam. Convertido ao catolicismo desde seus 22 anos, depois de uma passagem pelo Partido Comunista, neles dava vazão a uma "profunda seriedade moral", como disse Otto Maria Carpeaux.

Na maior parte de seus 64 romances, porém, Greene botava fé era na diversão. "Nosso Homem em Havana", que a Biblioteca Folha leva amanhã às bancas, é dos que melhor reza essa cartilha.

Apaixonado pelos suspenses detetivescos, tanto quanto pelo humor "dry martini" (seco e inebriante), Greene funde os dois nesse romance ligeiro, uma sátira à literatura de espionagem.

O nosso herói se chama Wormold, Jim Wormold, um pacato inglês que trabalha como vendedor de aspiradores em Cuba.

Publicado em 1958, com a Guerra Fria ainda no fundo do refrigerador, "Nosso Homem em Havana" conta como o pacato inimigo da poeira do lar é convocado pelo serviço secreto britânico para virar agente de Sua Majestade --Greene, diga-se, chegou a ser espião da rainha por alguns anos.

O vendedor reluta em aceitar o inusitado convite (um "inusitado" bastante presente em Greene, e que faz lembrar seu companheiro de geração, país e catolicismo Evelyn Waugh). Jim Wormold não consegue dizer não. A vida estava bastante dura e, pior, ele tinha uma filha adolescente-consumista, Milly, 17 anos. E assim nascia o agente 59200/5.

Greene gostava de diversão, era inimigo mortal do tédio, mas nunca foi o que hoje se batizaria de "Mané". "Nosso Homem..." é "entertainment", mas futucava, a seu modo elegante, o universo paranóico de EUA x URSS.

Por mais que o romance tenha sido lançado meses antes do furacão Fidel-Che, se desenrola em uma Cuba mormacenta. E Wormold ali, precisando de mais e mais dinheiro.

O nosso homem começa então a inventar, mandar despachos sobre uma ilha cheia de subversivos. Seria imprescindível receber centenas de libras para arregimentar "ajudantes". 59200/5 chega até a descrever uma fictícia "fábrica" de armas secretas (cuja planta ele mesmo cria inspirado em desenhos de aspiradores de pó).

Fictícia fábrica de armas? Clóvis Rossi, colunista da Folha, chama a atenção, no posfácio desta edição, da Biblioteca Folha, para a atualidade da trama: "Troque-se Havana por Bagdá e Jim Wormold por Donald Rumsfeld, o secretário de Defesa e superfalcão do governo norte-americano, e 'Nosso Homem em Havana' pareceria ter sido escrito ontem, e não há quase 50 anos".

Pois lá se vão os tais "quase 50 anos", o "homem" de Havana mudou radicalmente e o romance segue com frescor de ontem, pronto para ser filmado hoje com um Ewan McGregor, ou alguém que o valha, como astro.

Não seria a primeira vez. Nem do romance, já levado às salas escuras em 1959, menos ainda de Graham Greene. Este inglês discreto, que já chegou, poucos sabem, a fazer ponta como ator em "A Noite Americana" (73), de Truffaut, foi um dos autores mais adaptados de todos os tempos aos telões. Só nos últimos anos, os cinemas mostraram seus "Fim de Caso" (1999) e "O Americano Tranquilo" (2002). Desta vez o filme está passando nas bancas.

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