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Schnitzler dilata os olhos dos sonhos em novela

(29/11/2003)

da Folha de S.Paulo

Arthur Schnitzler é um desses escritores que têm o infortúnio de levar para todo o sempre um grande nome como "escolta". É quase impossível ler algo sobre esse grande autor austríaco que contorne o nome Sigmund Freud.

Assim como o pai da psicanálise, o dramaturgo e romancista nasceu na metade do século 19, no Império Austro-Húngaro. Assim como ele, viveu a elegante Viena do início do século 20.

A dupla começou igualmente na medicina, e depois seguiu o caminho dos livros. Mas o elo mais forte desses dois, que se conheceram e se admiraram, foi que, antes de morrer, ambos nos anos 30, tanto Freud quanto Schnitzler deixaram contribuições fundamentais para a compreensão dos mecanismos psíquicos do desejo.

O melhor documento que o escritor deixou disso talvez seja a novela "Breve Romance de Sonho", que a Biblioteca Folha leva amanhã às bancas.

Obra-prima da maturidade de Schnitzler (1862-1931), o pequeno romance foi publicado em 1926 --por coincidência, ano do último encontro do ficcionista com o autor de "A Interpretação dos Sonhos". E saiu com barulho.

Não propriamente um romance erótico, mas com alta carga de lascívia, o livrinho contava a estranha noite de um médico que se envolve com orgia secreta, crimes e prostituição com "menores". Quase oito décadas mais tarde o romance parece ter sido escrito na semana passada, se porventura alguém ainda escrevesse assim na semana que passou.

A atualidade de Schnitzler foi captada pelas antenas inglesas do dramaturgo David Hare (roteirista de "As Horas"), que se inspirou nele no sucesso "The Blue Room", e do cineasta Stanley Kubrick, que encerrou sua brilhante trajetória adaptando "Breve Romance de Sonho" no filme "De Olhos Bem Fechados" (1999).

A versão para as telonas do romance de Schnitzler segue o teorema quase imbatível do "o livro é sempre melhor do que o filme", mas o trabalho de Kubrick é admirável na transposição para a película da sensibilidade escura, lânguida, abismal dessa curta novela onírica.

Onírica, bom que se diga, não no sentido Salvador Dalí, surreal, aleatório. O sonho, para o escritor vienense, parece ser uma argamassa de crueldade, medo, desejos reprimidos (e liberados da jaula) e tempo descompassado (o protagonista, que no livro temos a sorte de não ser Tom Cruise, faz o diabo ao quadrado, e o relógio não passa das 4 da manhã).

Vale dizer que Schnitzler tinha conhecimento de causa, no reino de Eros e Tanatos (deuses do amor e da morte). Já adolescente, mergulhava até os ombros nas lamas de Viena.

O historiador emérito Peter Gay deu vasto destaque a esse ponto, as experiências eróticas de Schnitzler aos 16 anos, em seu estudo sem precedentes sobre a burguesia européia do século 19. Um dos cinco volumes da série "A Experiência Burguesa - Da Rainha Vitória a Freud" se chama "O Século de Schnitzler: Criação da Cultura de Classe Média, 1815-1914" (lançado pela Companhia das Letras). E a reflexão sobre o ambiente burguês é também parte central de "Breve Romance de Sonho". Seu ponto de partida é justamente a crise de um casal bem-sucedido de meia-idade. O marido Fridolin sai pela noite em aventuras de infidelidade. Enquanto isso, no aconchego burguês, sua mulher: "Albertine permanecia ainda e sempre de olhos fechados".

Schnitzler, com essa breve novela de sonhos, abre os olhos dela e os de todos nós.

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