Folha Online
Biblioteca Folha
1. Lolita - Textos publicados na Folha

Linguagem faz êxtase de "Lolita"

(publicado em 1/07/1994)

HAROLD BLOOM
especial para a Folha

Barroco e sutil, "Lolita" é um livro para ser lido e relido, mas não é fácil saber até que ponto sua força está à altura das complexidade da forma. Pouco se ganha ao comparar Nabokov com Sterne ou Joyce. Borges, essencialmente um mestre da paródia, seria um paralelo mais adequado. E os artistas da paródia talvez estejam fadados a se melindrar com Freud: entre os autores modernos, Nabokov e Borges são, com certeza, os que agridem Freud da maneira mais constante e mais sem fundamento.

O ponto onde não se pode deixar de elogiar Nabokov é em suas realizações como estilista. Muitas passagens de }Lolita são verdadeiros poemas em prosa. Nada poderia ser mais cativante e mais memorável do que uma frase como essa: "...enquanto, numa sucessão de sacadas, uma sucessão de libertinas, taças brilhantes na mão, brindavam ao prazer de noites do passado e do futuro". A deliciosa dupla "sucessão" atinge uma espécie de segundo grau da inocência, desprendida e estilizada, encontrando uma delícia maior na linguagem do que em qualquer possibilidade de êxtase sensual.

O que Nabokov nos oferece, em }Lolita como em Ada, é um encantamento, ou uma folia quase absoluta na e pela linguagem, o que não implica, por si, em grandes riquezas da percepção. Seu desprezo por Freud pode ser reduzido a um medo do sentido, ou à necessidade de se defender contra a sobredeterminação, contra um significado que se estende por todas as coisas. Em Nabokov, a memória teme menos as intensidades do complexo de Édipo do que as mais-que-edipianas genealogias.

Nesse aspecto, não sustenta uma comparação com Proust, seu precursor mais intimidante. }Lolita nos traz Marcel como Humbert e Albertine como Lolita, o que equivale à substituição do "pathos" temporal sublime pelas astúcias de uma paródia que, infelizmente, também serve para nos lembrar do quanto se perde quando se passa a Proust a Nabokov.

As primeiras defesas de }Lolita, escritas por críticos como John Hollander e Lionel Trilling, baseavam-se na idéia de que o livro é uma autêntica história de amor. Relendo o romance hoje, quando ninguém mais sonharia em acusá-lo de pornografia, causa surpresa imaginar que leitores tão refinados pudessem ver nele um retrato do amor, uma vez que Humbert e Lolita não são nem ao menos representações de seres humanos.

Eles são, isto sim, caricaturas deliberadas, ou personagens de fábula. Dois pesadelos solipsistas, fazem seu caminho por uma América de estradas e motéis, mas estariam mais à vontade no País das Maravilhas.

Nabokov, como Borges, é o mais literário dos fantasistas e só toma da realidade o que já é nabokoviano. Jane Austen, vigorosamente protestante, tinha tanto interesse na realidade social quanto um Theodore Dreiser, mas a realidade social de Nabokov morreu com a revolução bolchevique.

Os admiradores que defendem a escrita de Nabokov como uma forma de mímese não lhe fazem justiça. Seu gênio real era para as distorções na auto-representação. É uma questão considerável saber se as intensidades do ciúme sexual proustiano podem se adaptar ao modo fantasmagórico de Gogol, mas Nabokov, intrepidamente, não esperou pela resposta.

"Então o que é este mundo estranho, imagens do qual só apreendemos nos intervalos entre sentenças aparentemente inofensivas? Num certo sentido, é o mundo real, mas nos parece inteiramente absurdo, habituados que estamos às cortinas que o escondem." A citação vem de um texto de Nabokov sobre Gogol (a sair também, em breve, no Brasil), mas poderia ser Nabokov sobre Nabokov. O que não poderia é ser Humbert sobre Humbert.

A misteriosa arte de Nabokov recusa qualquer forma de identificação com o protagonista, mas empresta a voz do autor para o caçador comicamente desesperado de ninfetas. "A ciência da ninfolepsia é uma ciência exata", diz Humbert, e nós refletimos que o cientista é Nabokov e não o pobre Humbert, uma reflexão que se conforma numa declaração ainda mais famosa: "Não estou preocupado, de maneira alguma, com o assim chamado ’sexo’. Qualquer um pode imaginar esses elementos de animalidade. É um outro esforço, mais elevado, o que me seduz: fixar, de uma vez para sempre, a periculosa mágica das ninfetas."

Humbert talvez saiba que a "periculosa mágica" do erotismo é um cruzamento da animalidade com a morte; Nabokov certamente o sabe, embora rejeite, de forma tão crua, o maior de todos os sábios modernos. Em nossa época, rejeitar Freud não é mais uma questão de opção e toda a Parte 2 de }Lolita é, para nós, uma repetição involuntária de }Para Além do Princípio do Prazer. O instinto de morte domina integralmente o infeliz Humbert, por intermédio de seu obscuro duplo, Clare Quilty.

Recusando-se a compactuar com Freud ­o maior e mais difundido modelo de imaginação moderna­, Habokov está, no entanto, fadado a repetir a mitologia freudiana dos instintos, Eros/Humbert e Tânatos/Quilty. Do começo ao fim, a Parte 2 de }Lolita se transforma, então, não em paródia, mas numa alegoria freudiana, consideravelmente menos vigorosa do que a jovial Parte 1.

O assassinato de Quilty é um dos episódios mais curiosos e menos convincentes do livro. Humbert e Quilty são, cada um, a "alucinação familiar e inócua" do outro e atrapalhada execução de Quilty por Humbert eleva o romance, momentaneamente, à ordem do pesadelo. Não é por acaso que Humbert retorna ao sacrificado Quilty (C.Q.) nas últimas Linhas:

"E não tenha pena de C.Q. Foi preciso escolher entre ele e H.H., e era importante que H.H. vivesse alguns meses mais, para que a fizesse viver na mente das gerações futuras. Estou pensando em auroques e anjos, no segredo dos pigmentos indeléveis, em sonetos proféticos e no refúgio da arte. E esta é a única imortalidade que você e eu jamais poderemos compartilhar, minha Lolita."

A passagem não soa como Humbert, claramente é Nabokov quem usurpa as tonalidades do fim, para explicar por quê não deu a Quilty a chance de assassinar Humbert, o que possivelmente seria um final melhor. Não há frieza, ou distância nessa última cadência, mas sim uma tentativa de recuperar alguma coisa da aura perdida da Parte 1, tão tristemente desaparecida entre os delírios de sofrimento de Humbert no resto do livro.

Harold Bloom é professor de literatura nas universidades de Yale e Nova York, autor de "A Angústia da Influência", "Cabala e Crítica", "Poesia e Repressão" e "O Livro de J." (Imago) e "Abaixo as Verdades Sagradas" (Cia. das Letras), e um dos mais importantes críticos literários dos EUA. O }Mais! publica mensalmente seus artigos

Tradução de Arthur Nestrovski

Livro da semana

Livro anterior

"Sargento Getúlio"
Lançado: 21/12


Copyright Folha Online. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página
em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folha Online.