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1. Lolita - Textos publicados na Folha

Escritor defendia idéias fortes em suas aulas

(publicado em 16/07/1994)

SÉRGIO AUGUSTO
da Sucursal do Rio

Para Nabokov, depois do Homo sapiens vinha o "Homo poeticus", oposição e alternativa não só a Marx e Freud, mas também à idéia do "Homo economicus" e do "Homo psychologicus". Os prazeres estéticos não deveriam ser, a seu juízo, um luxo usufruído na acanhada margem liberada pela saciedade de nossas necessidades materiais e de nossos impulsos psíquicos.

A todos dessa nova espécie ele dirige, quase ao final de "Pretérito Perfeito", uma paródia do "Manifesto Comunista", que termina com a seguinte exortação: "Trabalhadores de todo o mundo, debandai! Os velhos livros estão errados. O mundo foi criado num domingo".

Um reles Homo sapiens talvez não consiga captar todo o sentido dessas palavras. Nem tampouco entender as aristocráticas idiossincrasias literárias de Nabokov. Algumas, poucas, podem ser encontradas em suas memórias russas. Quem, contudo, quiser saber mais a esse respeito, terá de recorrer a outros livros.

Qualquer uma das biografias do escritor serve. Curiosamente, elas foram escritas por um australiano e um neozelandês: "Nabokov: His Life in Part", de Andrew Field, e "Vladimir Nabokov: The Russian Years", de Brian Boyd. Mas o material mais farto, sem dúvida, encontra-se na coletânea de entrevistas ("Strong Opinions"), coligidas pelo próprio autor, 21 anos atrás, e nas 385 páginas de "Vladimir Nabokov: Lectures On Literature", editado por Fredson Bowers e publicado pela Harcourt Brace Jovanovich, em 1980.

Bowers compilou as aulas sobre literatura que Nabokov passou a dar nos EUA, primeiro na universidade de Wellesley, depois em Cornell, do início dos anos 40 ao final dos 50, quando o estouro de "Lolita" o liberou para sempre dos afazeres acadêmicos. Aproveitou tudo: as explicações orais, as anotações fichadas, os diagramas por vezes traçados nos próprios textos comentados em classe. É um compêndio do pensamento estético-filosófico do escritor. E um esdrúxulo decálogo para os aspirantes a "Homo poeticus".

"Todos satisfeitos em seus assentos? Ok. Bico calado, ninguém pode fumar, tricotar, ler jornal, dormir, e, pelo amor de Deus, não se esqueçam de tomar notas." Assim começavam as aulas do mestre em Cornell. Entre os alunos, pelo menos um parece ter-se deleitado à beça: Thomas Pynchon, o James Joyce da ficção pop.

De Joyce, por sinal, Nabokov gostava. Mas apenas de "Ulisses", que considerava uma das obras-primas literárias deste século, ao lado da "Metamorfose" de Kafka e da primeira metade da busca ao tempo perdido empreendida por Proust. Apreciava também Robert Louis Stevenson, Borges, Salinger e Updike. Esnobava Lawrence, Faulkner, Camus, Céline, Pound e um punhado de monstros sagrados, por ele reduzidos a "autores de segunda classe". Não tinha melhor opinião sobre Balzac, Dickens e Jane Austen. Nem sobre Hemingway e Conrad, "escritores de livros juvenis".

As aulas do professor Nabokov eram um primor de petulância e detalhismo. Numa delas provou por a + b que Gregor Samsa, o infausto personagem de Kafka, não era uma barata, e sim um besouro. Boa parte de suas lições sobre "Madame Bovary" foi dedicada ao uso que Flaubert faz da conjunção e.

Aos que lhe perguntavam sobre a melhor maneira de se ler um livro, dava sempre a mesma resposta: "Nem com o coração, nem com o cérebro, mas com a espinha".

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