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1. Lolita - Textos publicados na Folha

Leia o conto "Sons", inédito de Nabokov

(publicado em 25/02/1996)

VLADIMIR NABOKOV

Foi preciso fechar a janela: a chuva batia no peitoril e respingava no parquê e nas poltronas. Com um som fresco e resvaladiço, enormes espectros prateados corriam pelo jardim, através das ramagens, ao longo da areia alaranjada. A calha chacoalhava entupida.

Você estava tocando Bach. O piano erguera sua asa laqueada; debaixo dela, repousava uma lira e os martelinhos faziam ondas nas cordas. Uma ponta do brocado, amarrotado em dobras grosseiras, escorregara da cauda do piano, deixando cair um opus aberto no chão. Aqui e ali, em meio ao furor da fuga, seu anel tinia contra as teclas, enquanto a chuva de verão açoitava incessante e magnificamente as vidraças. E você, sem parar de tocar e inclinando só um pouco a cabeça, exclamava, no compasso, "a chuva, a chuv'eu... vou ab... afar es... sa chuva".

Mas não conseguia.

Abandonando os álbuns que jaziam sobre a mesa como caixões de veludo, eu olhava para você e escutava a fuga e a chuva. Uma sensação de frescor foi brotando em mim como a fragrância dos cravos vermelhos que se difundia aos poucos de todos os lados, das estantes, da asa do piano, dos diamantes oblongos do candelabro.

Um sentimento de extasiado equilíbrio me veio, enquanto percebia a relação musical entre os espectros de prata da chuva e seus ombros inclinados, que se arrepiavam quando você pressionava os dedos contra o esmalte ondulante. E quando eu me recolhi em mim, o mundo inteiro parecia assim --homogêneo, congruente, ligado pelas leis da harmonia. Eu mesmo, você, os cravos, naquele instante todos viramos acordes verticais num pentagrama. Tomei consciência de que tudo no mundo era uma interação de partículas idênticas, formando vários tipos de consonância: as árvores, a água, você... Tudo unificado, equivalente, divino. Você levantou. A chuva continuava ceifando a luz do sol. As poças d'água pareciam buracos na areia escura, aberturas por onde se via outros céus, deslizando sob o solo.

Brilhando, num banco, como porcelana dinamarquesa, estava sua raquete esquecida; as cordas, com a chuva, já estavam marrons e o bastidor se torcera no formato de um oito. Quando entramos na alameda, eu me senti um pouco tonto com a mescla das sombras e o aroma dos cogumelos em decomposição.

Lembro de você num espaço casual de luz. Os cotovelos angulosos e os olhos cinzentos, pálidos. Falando, você trinchava o ar com a linha esguia da mão e o brilho de uma pulseira no pulso fino. Seu cabelo se derretia, fundido no ar vibrante iluminado. Você fumava copiosa e nervosamente. Exalava por ambas as narinas, batendo obliquamente a cinza. A propriedade da família, um casarão cinza-pombo, ficava a cinco verstas da nossa. O interior era reverberante, suntuoso e fresco. Uma fotografia da casa aparecera numa revista chique da cidade. Quase todas as manhãs, eu pulava na cunha de couro da minha bicicleta e farfalhava pelo caminho, pelo bosque, depois pela estrada e a vila, e por um outro caminho até você. Você contava com o seu marido não voltar até setembro. E não temíamos nada, nós dois --nem as fofocas dos criados, nem as suspeitas da minha família. Cada um de nós, a seu modo, confiava no destino.

*

Seu amor era um pouco abafado, como a sua voz. Podia-se dizer que você amava um pouco de lado, e jamais falava no assunto. Era uma dessas mulheres de norma pouco loquazes, com cujo silêncio a gente logo se acostuma. Mas de vez em quando alguma coisa explodia em você. Então o Bechstein de cauda começava a trovejar, ou então, com o olhar voltado vagamente à frente, você me contava anedotas hilariantes, que escutara do seu marido e dos companheiros de regimento dele. Lembro de suas mãos --pálidas, com os dedos longos e veias azuladas.

*

Naquele dia feliz, quando caiu uma tempestade e você tocou tão inesperadamente bem, deu-se a solução de alguma coisa de nebuloso, nascida imperceptivelmente entre nós depois de nossas primeiras semanas de amor. Eu tive a certeza de que você não tinha poder sobre mim, de que não era você sozinha a minha amante, mas a Terra inteira. Foi como se a minha alma tivesse estendido incontáveis antenas e eu vivesse dentro de tudo, percebendo simultaneamente as cataratas do Niágara ribombando do outro lado do oceano e as longas gotas douradas sussurrando e tamborilando na alameda. Voltei o olhar para a casca brilhante de uma bétula e de súbito senti que, em vez de braços, eu possuía galhos inclinados sob o peso das pequenas folhas molhadas e, em vez de pernas, milhares de raizesinhas se entrelaçando na Terra, para absorvê-la. Queria me transfundir, assim, por toda a natureza, descobrir como era ser um velho cogumelo boleto, de lamelas amarelas e esponjosas, ou uma libélula, ou a esfera solar. Estava tão feliz que subitamente desatei a rir e beijei você na clavícula e na nuca. Teria até recitado um poema, mas você detestava poesia.

Você me deu um meio sorriso e disse: "É bom depois da chuva". Pensou um minuto e acrescentou: "Você sabe, acabo de me lembrar --estou convidada hoje para um chá na casa do... como é o nome dele... Pal Palych. Ele é um grande chato. Mas sabe como é, tenho de ir".

Pal Palych era um velho conhecido meu. Ás vezes íamos pescar juntos e, de um instante para outro, numa vozinha quebrada de tenor, ele atacava "Os Sinos da Tarde". Gostava muito dele. Uma gota fervente tombou de uma folha direto nos meus lábios. Ofereci-me para acompanhá-la.

Você encolheu os ombros, tremendo um pouco. "Vamos nos chatear muito por lá. Que horror." Olhou para o pulso e suspirou. "Hora de ir. Preciso trocar os sapatos." Em seu quarto sombreado, a luz do sol, transpondo as venezianas, formava duas escadas douradas no chão. Você disse alguma coisa, com sua voz abafada. Do lado de fora, as árvores respiravam, pingando água num sussurro de satisfação. E eu, sorrindo ao escutar esse sussurro, sem avidez, levemente lhe abracei.

*

Foi assim. Numa das margens do rio ficava o parque de vocês, e os pastos; na outra, ficava a vila. Em alguns pontos, a estrada era só carris. O barro era de um violeta viçoso e os sulcos estavam cheios de água borbulhante, cor de café-com-leite. As sombras oblíquas de isbás de madeira preta se delineavam com especial clareza.

Caminhamos à sombra por um caminho bem conhecido, passando pelo verdureiro e por uma estalagem com sinal de esmeralda, e pelos pátios ensolarados, emanando o aroma de estrume e feno recém-cortado.

O prédio da escola era novo, todo de pedra, com bordos plantados ao redor. Na soleira podia-se ver, de passagem, a barriga branca da perna de uma camponesa, torcendo um pano num balde.

Você perguntou, "O Pal Palych está?". A mulher, com suas sardas e tranças, entrecerrou os olhos ao sol. "Está sim, está." A caçamba retinia, enquanto ela ia empurrando com o calcanhar. "Pode vir, dona. Eles estã o lá na marcenaria."

Fomos ringindo por um corredor escuro e depois uma grande sala de aula. Notei, ao passar, um mapa azul-celeste e pensei comigo, a Rússia inteira é assim --luz do sol e vazios... Um pedaço esmagado de giz cintilava num canto.

Mais adiante, na pequena oficina, havia um cheiro bom de cola de carpinteiro e serragem de pinho. Sem casaco, ofegante e suado, com a perna esquerda esticada, Pal Palych aplainava apetitosamente uma tábua branca e gemedora. Sua cabeça úmida, careca, balançava para frente e para trás num raio empoeirado de luz. No chão, embaixo do banco, as aparas iam-se encrespando, como cachos delicados de cabelo.

Eu disse, em voz alta, "Pal Palych, você tem visitas!"

Ele deu um pulo, ficou de pronto agitado, aplicou polidamente um beijo na mão que você ergueu com um gesto familiar e apático e por um instante derramou seus dedos úmidos na minha mão e a sacudiu. Seu rosto parecia feito de massa de modelar, com seu bigode flácido e vincos inesperados.

"Desculpem-me --eu ainda não estou vestido, como vocês vêem", disse com um sorriso de culpa. Apanhou um par de punhos de camisa que estavam lado a lado, como dois cilindros, no peitoril da janela, e vestiu-os apressadamente.

"No que você está trabalhando?", você perguntou, com uma faísca da pulseira. Pal Palych se esforçava para botar o casaco, em movimentos impetuosos. "Nada, nada... só passando tempo", ele engrolou, rolando um pouco as consoantes nos lábios. "É uma espécie de prateleirinha. Ainda não terminei. Precisa lixar e passar verniz. Mas dêem uma olhada nisto --é o que eu chamo de A Mosca..." Esfregando as mãos num rodopio, ele lançou ao ar um helicóptero miniatura de madeira, que subiu zunindo, chocou-se no teto e caiu.

A sombra de um sorriso polido passou pelo rosto dele. "Como eu sou bobo", começou de novo Pal Palych. "Vamos subir, meus amigos... Esta porta faz barulho. Desculpem. Deixem que eu vá primeiro. O lugar deve estar uma bagunça..."

"Acho que ele esqueceu que tinha me convidado", você comentou, em inglês, à medida que íamos subindo a escada cheia de rangidos.

Eu observava suas costas, as marcas da blusa de seda. De algum lugar embaixo, provavelmente o pátio, ouviu-se uma voz ressoante de camponesa, "Gerossim! Ó Gerossim!".

E subitamente ficou claro para mim que, no curso dos séculos, o mundo estava florescendo, fenecendo, rodopiando e se transformando, para que agora, neste preciso instante, pudesse combinar e fundir, num acorde vertical, a voz que ressoava lá embaixo, o movimento das suas espáduas de seda e o aroma das tábuas de pinho.

*

O quarto de Pal Palych era ensolarado e um tanto atulhado de coisas. Um pano carmim, com uma bordadura amarela de leão no centro, ficava preso na parede em cima da cama. Noutra parede pendia um capítulo emoldurado de "Anna Karenina", diagramado de tal maneira que o jogo de tipos em negrito e claros, somado à disposição engenhosa das linhas compunha a imagem do rosto de Tolstói.

Esfregando as mãos, nosso anfitrião lhe indicou um assento. Ao fazê-lo, derrubou um álbum que estava na mesa, com a ponta do casaco. Recolheu o álbum. Apareceram chá, iogurte e uns biscoitos sem gosto. De uma gaveta no armário, Pal Palych tirou uma caixa floreada de balas Landrin. Quando se abaixava, uma dobra da pele cheia de espinhas se avolumava atrás do colarinho. A lanugem de uma teia de aranha no peitoril da janela aprisionava uma abelha amarela morta. "Onde fica Sarajevo?", você perguntou de repente, balançando uma folha de jornal que apanhara, com indiferença, de uma cadeira. Pal Palych, ocupado servindo chá, respondeu, "na Sérvia".

E tremendo a mão ele lhe passou, com cuidado, o copo fumegante, no seu suporte de prata. "Aí está. Posso lhe oferecer uns biscoitos?... E estão jogando bombas por quê?", ele me perguntou, erguendo os ombros.

Eu examinava, pela centésima vez, um enorme peso de papel, feito de vidro. Dentro dele, via-se uma cor de azul misturado com rosa e a catedral de santo Isaac, salpicada de grãos dourados de areia. Você riu e leu em voz alta, "Ontem, um comerciante da Segunda Câmara, de nome Yeroshin, foi preso no restaurante Quizizana. Aconteceu que Yeroshin, sob pretexto de..." Você riu de novo. "Não, o resto é indecente."

Pal Palych ficou sem jeito, o rosto corado de um vermelho quase marrom, e deixou cair a colher. Folhas de bordo refletiam a luz imediatamente abaixo da janela. Um vagão matracou se afastando. De algum lugar vinha o chamado queixoso e terno, ``Sor-veee... te".

*

Ele começou a falar da escola, das bebedeiras, das trutas que andavam aparecendo no rio. Olhando para ele agora, eu tinha a impressão de o estar vendo, na verdade, pela primeira vez, embora fôssemos velhos conhecidos. Uma imagem dele, do nosso primeiro encontro, deve ter permanecido gravada no meu cérebro, sem nunca mudar, como uma coisa aceita e tornada habitual. Quando eu pensava, ocasionalmente, em Pal Palych, por algum motivo me vinha a impressão de que ele tinha não só um bigode loiro escuro, mas uma barbinha no queixo para combinar. A barba imaginária é uma característica de muitos rostos russos. Agora, tendo voltado sobre ele um olhar especial, vamos dizer, com a visão interior, eu percebia que na realidade seu queixo era arredondado, glabro e com uma pequena cova. Tinha o nariz carnudo e notei, sobre a pálpebra esquerda, uma pipoca, um grande sinal de pele que eu teria adorado cortar --não fosse o fato de que cortá-lo significaria um assassinato. Aquela pequena borbulha continha este homem, total e exclusivamente. Quando me dei conta de tudo isto, e examinei-o da cabeça aos pés, fiz um movimento quase imperceptível, como se empurrando de leve a minha alma, para que começasse a descer ladeira abaixo e deslizei para dentro de Pal Palych, até ficar bem confortável, e senti de lá, por assim dizer, aquele tumor na pálpebra rugosa, as abas engomadas do seu colarinho e a mosca engatinhando no alto da careca. Examinei-o inteiro, com olhos límpidos e movediços. O leão amarelo sobre a cama parecia agora um velho amigo, como se tivesse estado na minha parede desde a infância. O cartão postal colorido, recoberto por um vidro convexo, tornou-se algo de extraordinário, gracioso, alegre. Não era você sentada à minha frente, na poltrona baixa de palhinha, à qual minhas costas tinham-se acostumado, mas a benfeitora da escola, uma senhora taciturna, que eu mal conhecia. E de pronto, com a mesma leveza de movimento, deslizei para dentro de você também, percebi uma liga de meia acima do joelho e, um pouco mais acima, o comichão da cambraia, e pensei, por você, que isto era chato, que estava calor, dava vontade de fumar. Neste mesmo instante você produziu uma cigarreira de ouro da bolsa e ajustou um cigarro na piteira. E eu estava dentro de tudo --você, o cigarro, a piteira, Pal Palych escarafunchando os fósforos, desajeitado, o peso de papel, a mosca morta na janela.

Muitos anos já se passaram e eu não sei por onde anda ele hoje, o gorducho, o tímido Pal Palych. Às vezes, porém, quando ele é a última coisa em que estou pensando, eu o vejo num sonho, transposto para as circunstâncias da minha vida atual. Ele entra nalguma sala com seu andar sorridente e afetado, chapéu panamá meio gasto na mão; faz um cumprimento, inclinando-se enquanto caminha; seca a careca e o pescoço vermelho com um enorme lenço. E quando eu sonho com ele, você invariavelmente atravessa o meu sonho, com um jeito preguiçoso e trajando uma blusa de seda de cintura baixa.

*

Eu não estava muito falante, naquele dia tão feliz. Engolia os flocos lisos de coalho e me esforçava para escutar todos os sons. Quando Pal Palych ficava quieto, podia ouvir seu estômago resmungando --um guincho delicado, seguido de um gorgolejozinho. Depois do que, ele limpava convincentemente a garganta e se punha a falar sobre qualquer outra coisa. Tropeçando, em busca da palavra certa, franzia o cenho e martelava com a ponta dos dedos na mesa. Impassiva e calada, você reclinava-se na poltrona baixa. Virando a cabeça de lado e erguendo o ângulo do cotovelo, olhava para mim, debaixo da cortina dos cílios, enquanto ajustava os prendedores atrás no cabelo. Você achava que eu me sentia encabulado na frente de Pal Palych, porque havíamos chegado juntos e ele talvez fizesse alguma idéia da nossa relação. E eu me divertia com o fato de você estar pensando isto; e me diverti com o modo vago e melancólico como Pal Palych corou, quando você deliberadamente fez alguma menção ao seu marido e ao trabalho dele.

*

Na frente da escola, o ocre quente do sol se esparramara entre os bordos. Da soleira da porta, Pal Palych fez um cumprimento, agradecendo a nossa visita, depois inclinou a cabeça mais uma vez, da entrada, e um termômetro branco vidroso cintilou na parede externa. Depois que já tínhamos deixado a vila para trás e cruzado a ponte, e já estávamos subindo o caminho na direção da sua casa, peguei seu braço, atrás do cotovelo, e você me lançou aquele sorriso especial, de lado, que me dizia que você estava feliz. De repente me veio uma vontade de lhe falar sobre as ruguinhas de Pal Palych, sobre a catedral colorida de santo Isaac, mas, assim que comecei, senti que as palavras erradas estavam me saindo da boca e, quando você disse, com ternura, "seu depravado", eu mudei de assunto. Sabia o que você precisava: sentimentos simples, palavras simples. Seu silêncio não era um esforço e não provocava nenhuma agitação, como o silêncio das nuvens e das plantas. Todo silêncio é o reconhecimento de um mistério. Muita coisa em você parecia misteriosa.

*

Um trabalhador, num camisão sem botões, afiava ressoante e decididamente a sua foice. Borboletas voavam acima das flores grossas não ceifadas. Pelo caminho, na nossa direção, vinha uma menina com um lenço verde-claro nos ombros e margaridas no cabelo escuro. Eu já tinha visto essa menina umas três vezes e seu pescoço magro e bronzeado me ficara na memória. Ao passar por nós, ela lhe deu um toque de seus olhos, levemente, de viés.

Depois, pulando cautelosamente a vala, desapareceu entre os amieiros. Um tremor prateado atravessou a textura opaca dos arbustos. Você disse, "aposto que ela estava dando um belo passeio no meu parque. Como eu detesto esses turistas..." Uma cadela fox-terrier, velha e gorda, vinha trotando pelo caminho atrás da dona. Você adorava cães. O animalzinho veio se arrastando de barriga até nós, balançando-se, as orelhas para trás. Rolou de costas embaixo da sua mão, exibindo o ventre rosado coberto de marcas cinzentas, em forma de mapa. "Vem cá, meu bem", você dizia, com sua voz especial de acariciar e provocar os animais.

A fox-terrier, tendo rolado um pouco no chão, deu um pequeno uivo gracioso e foi-se embora, escapulindo pela vala.

Quando já estávamos quase no portão de entrada do parque, você decidiu que queria fumar, mas, depois de remexer na bolsa, cacarejou de mansinho, "Que boba que eu sou. Esqueci a piteira no quarto dele". Você pôs a mão no meu ombro. "Querido, vá até lá e pegue para mim. Senão, não posso fumar." Eu ria, beijando seus cílios irrequietos e sorriso apertado.

Você gritou, atrás de mim, "Vá rápido!". Eu saí em disparada, não porque houvesse grande pressa, mas porque tudo ao meu redor estava em disparada --o reflexo colorido dos arbustos, a sombra das nuvens na grama molhada, as flores roxas fugindo como possível dos raios da foice.

*

Uns dez minutos mais tarde, ofegando muito, eu subia os degraus da escola. Bati com o punho fechado na porta marrom. Uma mola de colchão guinchou do lado de dentro. Virei a maçaneta, mas a porta estava trancada. "Quem é?", perguntou a voz agitada de Pal Palych. "Vamos, vamos, me deixe entrar!", respondi aos berros. O colchão chiou de novo e ouviu-se a batida de pés descalços no chão. "Para que você está se trancando aí dentro, Pal Palych?" Notei logo que os olhos dele estavam vermelhos.

"Entre, entre... Que prazer. Você vê, eu estava dormindo. Pode entrar." "Nós esquecemos uma piteira aqui", eu disse, tentando não olhar para ele. Finalmente encontramos o tubo verde esmaltado, embaixo de uma poltrona. Guardei-o no bolso. Pal Palych tromboneava num lenço.

"Ela é uma pessoa maravilhosa", disse ele, inoportunamente, sentando pesado na cama. Suspirou e olhou para o lado. "Há algo nas russas, um certo..." Ficou todo franzido e esfregou a testa. "Um certo" --deu aqui um pequeno grunhido-- "espírito de auto-sacrifício. Não existe nada de mais sublime no mundo. Esse espírito extraordinariamente sublime, extraordinariamente sutil de auto-sacrifício". Juntou as mãos atrás da cabeça e abriu um sorriso lírico. "Extraordinariamente..." Caiu em silêncio, depois perguntou, já noutro tom, que geralmente me fazia rir, "e o que mais você tem para me contar, meu amigo?". Senti vontade de lhe dar um abraço, dizer alguma coisa calorosa, alguma coisa que ele precisava. "Você devia ir dar uma volta, Pal Palych. Vai ficar o dia inteiro assim, num quarto abafado?"

Ele fez um gesto de desprezo. "Já vi tudo o que há para ver. Lá fora a gente sss...ó sofre com o calor..." Limpou os olhos inchados e o bigode com um gesto para baixo da mão. "Talvez hoje à noite eu vá pescar." A pipoca na pálpebra cheia de rugas tremeu.

Seria o caso de lhe perguntar, "Pal Palych, meu caro, por que você estava na cama, ainda agora, com o rosto enterrado no travesseiro? É só uma alergia, ou alguma grande dor? Você algum dia já amou uma mulher? E por que chorar num dia desses, com a luz do sol brilhando nas poças lá fora?...".

"Bom, tenho de me mexer, Pal Palych", eu disse, dando uma olhada nos óculos abandonados, no Tolstói recriado em tipografia e nas botas com alça de orelha embaixo da mesa. Duas moscas pousaram no assoalho vermelho. Uma subiu na outra. Zumbiram e se separaram. "Está tudo bem", disse Pal Palych, exalando devagar. Balançou a cabeça. "Faz parte, eu aguento --vá logo, não quero prendê-lo."

*

Eu estava correndo mais uma vez pelo caminho, perto da mata de amieiros. Sentia que me lavara na dor de um outro homem, que estava radiante com as lágrimas dele. Era uma sensação de felicidade, que desde aquela vez só conheci de novo em raras ocasiões: à vista de uma árvore abatida, de uma luva furada, do olho de um cavalo. Felicidade, porque tinha um fluxo de harmonia. Tão feliz quanto pode ser qualquer movimento ou resplendor. Por uma vez eu me vira partido num milhão de seres e objetos. Hoje eu sou um; amanhã estarei partido de novo. E assim tudo no mundo se decanta ou se modula. Naquele dia eu estava no alto de uma onda. Sabia que ao meu redor tudo eram notas de uma única harmonia, sabia --secretamente-- qual era a fonte e resolução inevitável dos sons reunidos por um instante, e o novo acorde a ser gerado por cada uma das notas dispersas. O ouvido musical de minha alma sabia tudo e compreendia tudo.

*

Você veio me encontrar na área pavimentada do jardim, junto aos degraus da varanda, e suas primeiras palavras foram "meu marido ligou da cidade, enquanto eu tinha saído. Ele está vindo no das dez. Alguma coisa deve ter acontecido. Talvez uma transferência".

Um rabo-de-palha, como uma aragem cinza e rosa, passou depressa pela areia. Uma pausa, dois ou três passos, outra pausa, mais passos. O rabo-de-palha, a piteira na minha mão, suas palavras, os pingos de luz no seu vestido... Não podia ter sido de outro modo. "Eu sei o que está pensando", você disse, franzindo as sobrancelhas. "Está pensando que alguém vai contar para ele e assim por diante. Mas não faz diferença... Você sabe o que eu..."

Olhei diretamente nos seus olhos. Olhei com toda a minha alma, sem desvios. Bati em você de frente. Seus olhos estavam límpidos, como se uma película fina de papel de seda tivesse sido retirada --daquele tipo que protege ilustrações em livros bonitos. E, pela primeira vez, sua voz também soava clara. "Sabe o que eu decidi? Escute. Não posso viver sem você. É exatamente o que eu vou dizer para ele. E ele vai me dar o divórcio na hora. Daí, vamos dizer, no outono, nós poderíamos..."

*

Eu lhe interrompi com meu silêncio. Uma pinta de luz escorreu do seu vestido para a areia, enquanto você se afastava um pouco.

O que eu podia lhe dizer? Podia invocar liberdade, cativeiro, dizer que eu não a amava o bastante? Não, isto tudo era errado.

Um momento se passou. Durante este momento, muita coisa aconteceu no mundo: nalgum lugar, um transatlântico gigantesco afundou, uma guerra foi declarada, um gênio nasceu. O momento passou.

"Aqui está a sua piteira", eu disse. "Estava embaixo da poltrona. E você sabe, quando eu entrei Pal Palych devia estar..."

Você disse "ótimo. Agora pode ir". Virou-se e subiu correndo os degraus. Pôs a mão na maçaneta da porta de vidro, mas não abriu de imediato. Para você deve ter sido uma tortura.

*

Fiquei no jardim mais um pouco, em meio à umidade adocicada. Depois, com as mãos no fundo dos bolsos, fui caminhando pela areia salpicada, em volta da casa. Minha bicicleta estava no alpendre da frente. Apoiado no chifre invertido do guidom, saí pelo caminho do parque. Aqui e ali havia sapos. Inadvertidamente passei por cima de um. Paf, embaixo do pneu. No fim da alameda tinha um banco. Encostei a bicicleta no tronco de uma árvore e sentei na convidadora tábua branca. Fiquei pensando em como, dentro de dois ou três dias, eu receberia uma carta sua, em como você me imploraria para voltar e eu não voltaria. Sua casa foi deslizando para longe, para uma distância melancólica, maravilhosa, com seu piano alado, os números cobertos de poeira da "Revista das Artes", as silhuetas em molduras redondas. Era uma delícia perder você. Com um gesto brusco, aos arrancos, você entrou pela porta de vidro. Mas outra pessoa partiu de um outro modo, abrindo seus olhos pálidos sob os meus beijos de alegria.

*

Fiquei sentado ali até o fim da tarde. Mosquitinhos davam rasantes para cima e para baixo, como se puxados por fios invisíveis. Subitamente, nalgum lugar ali perto, eu percebi uma mancha brilhante --era o seu vestido e você.

Mas as vibrações finais já não tinham morrido? Você agora de novo, assim, me deixava apreensivo, ali do lado, fora do meu campo de visão, caminhando na minha direção, se aproximando. Com um esforço, virei a cabeça. Não era você, mas aquela menina com o lenço verde --lembra, aquela que encontramos? E aquela fox-terrier dela, com a barriga engraçada?...

Ela passou através das ramagens e cruzou a pontezinha que dava num quiosque de janelas pintadas. A menina está entediada, está dando uma caminhada no seu parque; provavelmente, dentro de algum tempo, vamos acabar nos conhecendo.

Levantei sem pressa, e sem pressa fui pedalando para fora do parque imóvel, até a trilha principal, para dentro de um pôr-do-sol enorme; do outro lado de uma curva, ultrapassei uma charrete. Era o seu cocheiro, Semyon, dirigindo a passo até a estação. Quando me viu, tirou devagar o boné, alisou os fios gordurosos do cabelo atrás da cabeça e botou o boné de novo. Um pano de colo xadrez estava dobrado no banco. Um reflexo intrigante de luz brilhou no olho do castrado preto. E quando, sem pedalar, eu desci a ladeira na direção do rio, pude ver da ponte o chapéu panamá e os ombros roliços de Pal Palych, que estava sentado lá embaixo, numa plataforma da cabine dos banhistas, com uma vara de pesca na mão. Botei o pé no freio e parei, com a mão no parapeito.

"Ei, ei! Pal Palych! Estão mordendo, ou o quê?" Ele olhou para cima e me deu um abano simples e amistoso.

Um morcego voou por cima da superfície cor-de-rosa espelhada. O reflexo das ramagens parecia uma renda preta. Pal Palych, de longe, estava berrando alguma coisa, me chamando com a mão. Um segundo Pal Palych estremecia nas ondulações escuras. Rindo alto, eu dei um empurrão com a mão no parapeito.

Passei as isbás numa corrida só, sem ruído, pelo caminho de terra firme. Sons do rebanho flutuavam ao meu redor no ar sem lustro; alguns galos-silvestres saíram em revoada, fazendo um estardalhaço. Mais adiante, então, na estrada, na vastidão do crepúsculo, em meio à leve bruma dos campos, fez-se o silêncio.

Tradução de Arthur Nestrovski

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