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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha
Eco se diverte com bizantinismos modernos
(publicado em 25/02/1994)
MARCELO COELHO
colunista da Folha
Umberto Eco talvez já tenha tido mais prestígio do que atualmente. Nos anos 70, livros como "A Obra Aberta" e "Apocalípticos e Integrados" (editora Perspectiva) não podiam faltar na biblioteca de quem se interessava por arte de vanguarda e pelos meios de comunicação de massa. Depois, veio o sucesso com o romance "O Nome da Rosa"; Eco tornou-se, ele próprio, um fenômeno de massas.
Será que Eco já passou de moda? Dois livro dele foram recentemente publicados no Brasil. "O Segundo Diário Mínimo" (editora Record) e "Interpretação e Superinterpretação" (editora Martins Fontes).
Em "O Segundo Diário Mínimo" encontramos alguns bons motivos de desencanto. Compõe-se de uma série de artigos humorísticos, escritos originalmente para uma revista italiana. O tom é todo de paródia, diversão, crítica do cotidiano.
Mas a leveza desses textos é em geral forçada e há menos graça do que contorcionismo intelectual em suas brincadeiras. Eco faz uma lista, por exemplo, de autores fictícios, combinando os nomes de escritores reais: um certo "Fiodor Tolstoyevsky" teria, assim, feito o romance "Guerra e Castigo".
O divertimento erudito vai longe. Em outro texto, Eco imagina o que aconteceria se Dante Alighieri disputando uma cátedra universitária de cosmologia, tendo por rivais Cecco d'Ascoli e Ristoro d'Arezzo (?). Arrisca também o "Projeto para Uma Faculdade de Irrelevância Comparada", com um currículo absurdo: "História da agricultura antártica", "Urbanismo cigano" seriam algumas das matérias estudadas.
O problema dessas brincadeiras é que o autor quase as leva a sério. A "irrelevância comparada" fascina-o mais do que parece e o sarcasmo não oculta o prazer de Eco com aquilo que, de forma por certo obscurantista, se convencionou chamar de "cultura inútil".
De certo modo, isso é compreensível. Existe de fato um jogo curioso entre a ultra-erudição, a pesquisa séria e exaustiva e o prazer quase infantil pela superfluidade. Há algo de colecionador de figurinhas num especialista em literatura medieval, assim como há algo de "scholar" na criança que sabe tudo sobre dinossauros.
Saber, saber mais, saber tudo: este impulso, dos mais simpáticos aliás, não é tão sério e moroso quanto parece. Umberto Eco mostra o quanto se diverte com os próprios conhecimentos. Mas não é sempre que consegue divertir o leitor.
Há, contudo, bons momentos no "Segundo Diário Mínimo". Críticas à imagem dos índios nos filmes de bangue-bangue, uma observação muito aguda sobre a obviedade dos programas de TV (o hábito dos apresentadores de dizer tudo o que acontece: alguém chora e o apresentador diz sempre que alguém está chorando), comentários engraçados sobre o uso do telefone celular.
Um texto, em especial, pode dar idéia da principal ambiguidade deste livro. Umberto Eco ironiza um catálogo de produtos eletrônicos que podem ser comprados pelo reembolso postal. São objetos totalmente malucos, como uma coleira antipulgas que funciona a ultra-som; um cobertor elétrico regulável, que aquece as partes do corpo em que você for mais friorento; um alarme para quem ronca demais.
É claro que o texto todo brinca com essas invenções. Mas ao mesmo tempo Umberto Eco se encanta com a inutilidade delas. Tem sede de bizantinismos.
Não é de hoje que um novo tipo de erudição se faz sentir. Antigamente, eruditos eram só os que sabiam os fatos do passado, as sutilezas da prosódia latina, a vida e as obras deste ou daquele filósofo.
Criou-se, entretanto, um novo tipo de erudito: os especialistas no seriado "Jornada das Estrelas", por exemplo, que até têm um clube; os que sabem a escalação do time do São Paulo de 1930 até hoje; os que têm na memória todos os bastidores do Oscar.
Umberto Eco parece ser atraído pelos dois tipos de erudição. O prazer de conhecer um catálogo de mercadorias malucas equivale, talvez, ao de entrar nos meandros de uma disputa teológica medieval.
Seria crítico, se não fosse frívolo. Seria divertido, se tivesse menos seriedade. É simpático, mas soa um pouco desafinado. É jocoso, mas sem graça.
O outro livro de Umberto Eco lançado ultimamente, "Interpretação e Superinterpretação", dirige-se a um público mais restrito. Transcrevem-se conferências de Umberto Eco sobre crítica literária e interpretação de textos, seguidas de comentários e réplicas feitas por um filósofo importante (Richard Rorty), um crítico literário americano (Jonathan Culler) e de uma romancista e crítico, Christine Brooke-Rose.
Impressiona ver de que modo Umberto Eco, quando está falando sério sobre um assunto de sua especialidade, consegue ser bem mais divertido e fascinante do que quando quer fazer graça. Com enorme riqueza de exemplos, com uma erudição que parece, agora, estar jogando sempre a favor do bom senso e não contra, o autor defende seus pontos de vista acerca do que deva ser a crítica literária.
Uma vez vencidas as referências, pouco óbvias para o leitor brasileiro, acerca das últimas modas nos Estados Unidos -Derrida, Geoffrey Hartman, neopragmatismo- o livro é interessante e agradável de ler.
Eco sustenta uma tese aparentemente trivial, a de que muitos críticos literários "inventam" demais quando analisam um texto. Parece que, nos Estados Unidos, isso virou uma verdadeira praga, com a moda dos desconstrucionistas. O leitor se tornou, de fato, soberano e se algum leitor acha que descobriu num livro coisas que o autor não sonhou sequer sugerir, pior para o autor.
Em "Interpretação e Superinterpretação", um debate estimulante é travado em torno desse estado de coisas. O curioso é que Umberto Eco é, ele próprio, autor de romances. Seu "Nome da Rosa" está cheio de armadilhas, alusões cifradas, jogos de palavras. Natural que diversos críticos tenham visto, no romance, mais intenções e astúcias do que as que ele próprio foi capaz de inventar.
Como fugir, enfim, de leitores "astuciosos" demais, prontos a ver pêlo em casca de ovo, quando o próprio autor de um romance como "O Nome da Rosa" é o primeiro a disseminar pistas falsas, anacronismos, jogos eruditos no seu texto?
O esforço de Umberto Eco, desenvolvido com extrema honestidade e poder de persuasão, é distinguir entre uma interpretação crítica "legítima", "razoável", ainda que distante das intenções do autor, e a interpretação cabalística, excessiva, maluca que os críticos queiram promover.
O debate se complica quando o filósofo Rorty toma a palavra. Ele diz que nenhuma crítica poderá chegar a descobrir aquilo que o texto "realmente é". Pois não há nada que "realmente seja". Cada pessoa faz de um livro o que bem entende. Não há "interpretações corretas" de um texto, mas "usos" mais ou menos "interessantes" que se podem fazer dele. Não há "aparências" a vencer nem "realidades" a descobrir. Umberto Eco responde com maestria e bom humor a esse desconfortante radicalismo.
Faz bem ler este livro, com Umberto Eco na sua melhor forma. Difícil dizer se se o seu interesse não seria restrito demais, se a discussão toda não é bizantina para o leitor ocasional.
Mas invoco outro exemplo, o de um livro recém-editado pela Paz e Terra, reproduzindo as últimas controvérsias sobre o tema: "Quem foi realmente o autor das peças de Shakespeare?" Como se sabe, muita gente acha que não foi Shakespeare quem escreveu as peças. "Em Busca de Shakespeare" reúne artigos de Irvin Matus e Tom Bethell, discutindo a questão. Pode parecer bobagem tudo isso, como também as discussões sobre crítica literária no livro de Umberto Eco. Mas o engenho, a graça, o volume de inteligência envolvido em textos desse tipo não podem deixar de atrair o leitor.
Tudo se passa como num bom romance policial e, entre saber se o assassino foi o mordomo, se o autor da "Tempestade" foi o conde de Oxford, ou se Richard Rorty estava certo contra Umberto Eco, é escolha de cada um.
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