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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

ECO

(publicado em 03/04/1994)

ROGER POL DROIT
Do "Le Monde"

Linguista, escritor e professor na Universidade de Bolonha (Itália), Umberto Eco lançou recentemente na França "De Superman au Surhomme" (Do Superhomem ao Além-do-Homem), reunião de estudos sobre o mito do herói salvador na literatura dos séculos 19 e 20. Além deste livro, está prevista a publicação de sua tese de doutorado de 1954, "Le Problème Esthétique chez Thomaz d'Aquin" (O Problema Estético em Tomás de Aquino), pela editora Presses Universitaires de France.

Na entrevista a seguir, são de outras questões atuais que ele trata. Umberto Eco, com efeito, é um dos 40 intelectuais que lançaram, contra a extrema direita e suas manobras, o apelo a uma Europa da "vigilância". Inquietando-se com a banalização de temas perigosos e as tentativas de sedução de alguns, os signatários deste apelo -que são agora várias centenas- se engajam no propósito de não participar de publicações, colóquios ou emissões cujos organizadores são ligados aos movimentos de extrema direita (para contatos com o comitê Apelo à Vigilância o endereço é: 54, boulevard Raspail, Paris, França).

Qual o sentido desta vigilância? Trata-se de uma nova caça às bruxas? Umberto Eco responde a essas questões, explicando porque ele assinou esse apelo e precisando sua concepção do intolerável e da intolerância.



Pergunta - Uma das críticas feitas ao "chamado à vigilância" que o sr. lançou, juntamente com outros intelectuais, consiste em dizer o seguinte: numa época em que não existe mais direita nem esquerda, em que as referências antigas não funcionam mais, em que novas divisões políticas e culturais são inventadas, essa tomada de posição contra a banalização das idéias da extrema direita tem algo de arcaico e desusado. Em outras palavras, o apelo estaria sendo lançado num momento errado. Ele procuraria restabelecer artificialmente fronteiras ideológicas que o decorrer da história já apagou. O que o sr. responderia a esse tipo de críticas?

Umberto Eco - Essas observações resultam, a meu ver, de uma perigosa confusão entre as mutações históricas que estamos vivendo no momento e uma espécie de "laisser-aller" intelectual e moral. Vou explicar.

É incontestável que as categorias européias de "direita" e de "esquerda", sob a forma que assumiam 20 anos atrás, hoje não permitem mais uma compreensão das realidades políticas. Nos anos 60, algumas viagens que fiz ao Brasil e depois à Argentina me fizeram tomar consciência de que essas diferenças habituais entre direita e esquerda já haviam deixado de ser pertinentes para a compreensão da maioria dos movimentos políticos na América Latina. Essa situação, que na época me pareceu inteiramente insólita e original, hoje vigora em toda a Europa.

Não paramos de ver partidos ditos de esquerda adotarem atitudes que antigamente eram tipicamente de direita, e vice-versa. Para dar apenas um exemplo recente: o PDS, o ex-Partido Comunista italiano, apoiou o governo em sua decisão de enviar paraquedistas à Somália. Se alguém me houvesse dito 20 anos atrás que ex-comunistas se solidarizariam com uma expedição militar numa antiga colônia, isso me teria soado como ficção-científica!

Acho que essa evolução é um fenômeno extraordinariamente interessante, que não pode passar indiferente a qualquer intelectual. Essas novas situações exigem novas análises de nossa parte. Nossa reflexão não deve ser esclerosada por distinções desatualizadas e dogmáticas. Desse ponto de vista, nossa época e suas reviravoltas constituem um verdadeiro desafio ao pensamento.

Mas nós nos enganamos, e caímos em grave confusão, se dessa grande mexida e reposicionamento tiramos a conclusão de que tudo mudou, que todas as idéias valem, que não se deve mais recusar nada, sob quaisquer circunstâncias. As regras do jogo político estão em processo de mudança. Isso não quer dizer que não existam regras, nem que devamos desistir de inventar novas regras. As cartas estão distribuídas de outra maneira. Isso não significa que todas elas tenham mudado de natureza.

Pergunta - Por exemplo?

Eco - Não vejo nenhuma verdadeira diferença entre os skinheads e os neonazistas de hoje e os nazistas da geração anterior. Estes são os mesmos que antes. Continua sendo a mesma forma de imbecilidade e de atração pelo mal, o mesmo ódio dos outros e o mesmo desejo de destruição. A única nuance é que os nazistas assassinaram milhões de pessoas, enquanto seus descendentes por enquanto deram cabo de apenas algumas dezenas.

É por isso que nosso dever de intelectuais é sublinhar que tudo mudou menos isso, e traçar o limite entre o que é tolerável e o que não o é. Comprometendo-se a recusar-se a participar de revistas, de emissões de rádio ou televisão, de colóquios organizados por pessoas vinculadas à extrema direita, aqueles que assinaram aquele apelo não rejeitam, portanto, tudo que mudou no mundo, nem tudo que é preciso repensar! Eles exprimem sua opção por não afiançar correntes que avaliam como sendo perigosas para a democracia.

Pergunta - Certas pessoas vêem nesse engajamento uma atitude intolerante, ou mesmo o surgimento de uma nova espécie de "macartismo".

Eco - Essa acusação de macartismo é totalmente disparatada. O que chamamos de macartismo -será que é preciso relembrar?- é uma política oficial de exclusão que levou algumas pessoas a perderem seus empregos e colocou outras na prisão, sob o único pretexto de que eram comunistas ou simpatizantes do comunismo. Como diabos pode se comparar aqueles métodos com a atitude tomada pelos signatários desse apelo? Essa atitude constitui uma opção: recusar nossa participação em qualquer empreendimento intelectual, editorial ou mediático ligado à extrema direita. Cada um tem o direito de dizer não àquilo que não gosta!

Pergunta - Isso quer dizer que o sr. rejeita, por questão de princípio, qualquer discussão ou qualquer confronto com essas pessoas que o sr. vê como sendo perigosas?

Eco - É claro que não! Não tenho motivo algum para recusar uma discussão verdadeira com essa ou aquela pessoa, sejam quais forem suas opiniões. Basta que a discussão ocorra em circunstâncias que assegurem a lealdade. Isso supõe condições claramente definidas de local e de encontro, senão nos veremos no que eu chamo de uma situação de captura, sejam quais forem nossos argumentos.

Eu assinei esse manifesto, que não contém aliás nenhum nome próprio nem referência a situações particulares, porque houve, também na Itália, intelectuais ditos de esquerda, sobretudo membros do Partido Comunista, que participaram de encontros organizados pela Nova Direita. Este grupo utiliza em seguida de nossa presença para dizer: "Vejam vocês, não há mais separação, eles estão conosco..."

Há pessoas que, por exemplo, que convidam você para o jantar para que isso sirva depois de cartão de visita, para negócios que não são os seus. Quando se sabe disto, pode-se recusar educadamente o convite. Isso é dogmatismo? É simplesmente o direito de escapar de lugares onde colocam uma etiqueta em você.

Pergunta - Então o sr. traça uma distinção entre o diálogo e o que o sr. chama de "captura". Será que poderia explicar melhor?

Eco - Se amanhã, na minha universidade, eu organizar um colóquio de história ou de filosofia, convidarei especialistas que tenham opiniões ou teorias muito diferentes das minhas. E cada um de nós terá o dever de confrontar nossos argumentos, tão livremente e tão energicamente quanto possível, mesmo que o diálogo não resulte em qualquer concordância.

O diálogo, mesmo que seja rude, supõe que ninguém possa recuperar a palavra ou a presença dos outros em seu favor.

A captura é exatamente o inverso. Quando o Partido Comunista convidava intelectuais de todas as tendências a assinar um abaixo-assinado, esses intelectuais não demoravam a ser apresentados como intelectuais comunistas.

Do mesmo modo, a maioria das entidades católicas hoje em dia esclarecem, quando solicitam: "O sr. está absolutamente livre, poderá dizer o que quiser." Mas se participamos de seus debates, sempre existe esse ambiente de captura: "Você está aqui, portanto você é um dos nossos." Isso não tem nada a ver com diálogo!

Essas entidades sempre se voltaram à captura, por uma questão de tradição. Existem lugares que se revelam imediatamente como lugares de captura. Acredito que constitui tarefa eminentemente filosófica saber defini-los e reconhecê-los, e mais genericamente discernir a exigência ou o espírito específico de um lugar.

Pergunta - A consequência do que o sr. acaba de dizer não seria que frases inteiramente idênticas assumem um sentido diferente de acordo com os lugares e os contextos em que são pronunciadas ou impressas?

Eco - Evidentemente. É a força do lugar. Um exemplo simplíssimo: se eu faço um elogio à instituição da monarquia em Estocolmo, meu discurso tem um valor inteiramente diferente do mesmo elogio, expresso nos mesmos termos, em Paris. Se aquela entrevista que eu havia dado na Suécia fosse traduzida ao francês, eu teria que mudar de opinião! Jamais se deve esquecer dessa força que possuem as circunstâncias e os contextos.

Imagine, só como piada, que você seja um ateu realmente sério e que, em toda a sua vida, um padre jesuíta tenha sido o seu melhor amigo. E, então, um dia antes de você morrer, precisa impedir absolutamente que este amigo venha visitá-lo. Senão, qualquer que seja sua vontade ou a dele, quaisquer que sejam as discussões entre vocês, a visita de um jesuíta antes de sua morte significaria sua declaração de conversão.

No momento em que temos que elaborar novos pontos de referência, é preciso estar especialmente atento a esse tipo de questões. Chamar de "vigilância" o que fazemos leva certas pessoas a pensarem num pequeno lado anos 30 e Frente Popular. Para mim, trata-se pura e simplesmente do trabalho do pensamento. A tarefa do discernimento e da crítica, que é a que cabe aos intelectuais, encontra novas extensões aqui. Nesse sentido, o pensamento é uma vigilância contínua, um esforço para discernir o que é perigoso, mesmo nas circunstâncias e nos discursos aparentemente inocentes.

Pergunta - Não se correria, então, o risco de adotar uma atitude de suspeita generalizada, de viver numa espécie de desconfiança perpétua, indagando-se a todo momento onde está o perigo, e terminando por inventar perigos ilusórios?

Eco - Não, simplesmente porque os limites do intolerável passam por limiares claramente perceptíveis e passíveis de serem marcados. Tomemos, por exemplo, a questão do revisionismo. Todo historiador sério é um revisionista, no sentido próprio da palavra: ele procura saber se aquilo que se diz acerca do passado é verdade, ou se precisa ser retificado. Será que Catilina foi realmente o infame do qual Cícero nos traçou o retrato, ou tratar-se-ia de uma fábula resultante da situação política? Será verdade que 600.000 italianos morreram durante a Primeira Guerra Mundial? O historiador tem o direito de procurar nos arquivos, de desconfiar da propaganda, de reconstituir os fatos e de discutir os números.

Não vejo nada de escandaloso na possibilidade de um trabalho sério e incontestável poder constatar que o genocídio dos judeus pelos nazistas não tenha resultado em seis milhões de mortos, mas em seis e meio ou em cinco e meio. O intolerável é quando aquilo que poderia haver sido uma pesquisa muda de característica e de valor, e passa a ser uma mensagem que sugere: "Se foram mortos um pouco menos judeus do que se acreditava, então não se tratou de um crime". Sócrates ou Cristo eram um só. Dois mil anos após suas mortes, a humanidade ainda está sob o efeito do choque e do remorso pelos crimes que os mataram.

Outro limiar foi transposto quando o revisionismo se transformou em negacionismo. Como todas as pessoas de minha geração, vi os judeus serem presos, humilhados, deportados. Depois da guerra, eu vi aqueles que choravam porque eram os únicos sobreviventes de famílias inteiramente destruídas. Se pretensos historiadores procurassem me fazer crer que as Cruzadas são um mito, por exemplo uma invenção da Cruz Vermelha... tudo isso está tão longe que eu talvez hesitasse.

Mas que queiram me fazer acreditar que aquilo que testemunhei quando tinha 13 anos, como milhões de outras pessoas, não aconteceu, que procurem convencer disso os jovens nascidos desde então, isso é intolerável!

Aqueles que propagam esse gênero de discurso intolerável, e aqueles que os apoiam, tenho o direito de não convidá-los à minha casa e de não ir à sua, se me convidarem.

Pergunta - E se lhe disserem que sua atitude é intolerante?

Eco - Responderei que para ser tolerante é preciso fixar os limites do intolerável.

Pergunta - Para fixar esses limites não é necessário ser dono da verdade?

Eco - Não, isso não tem nada a ver. Não quero empregar a palavra "verdadeiro". Existem apenas opiniões que são preferíveis a outras opiniões. Mas não se pode dizer: "Ah, como é apenas preferível, pouco me importa!" Em cima desse preferível se joga minha vida e a de outras pessoas. Pode-se morrer por uma opinião apenas preferível.

Pergunta - Que diferença existe entre lutar pela verdade e lutar por aquilo que se considera preferível, sem ter a certeza de se estar dentro da verdade?

Eco - Se acreditamos que lutamos pela verdade, sentiremos às vezes a tentação de matar nossos inimigos. Lutando pelo que é preferível é possível ser tolerante, e ao mesmo tempo rejeitar o intolerável.

Pergunta - Se existem apenas preferências e não verdades, sobre o que se poderia basear a afirmação de que existiria um intolerável que todo mundo reconheceria como tal, independentemente da diversidade de culturas, de educações e de crenças?

Eco - Sobre o respeito pelo corpo. É possível constituir uma ética sobre o respeito pelas atividades do corpo: comer, beber, urinar, defecar, dormir, fazer amor, falar, ouvir, etc. Impedir alguém de se deitar à noite ou obrigá-lo a viver com a cabeça abaixada é uma forma intolerável de tortura. Impedir as outras pessoas de se movimentarem ou de falarem é igualmente intolerável. O estupro não respeita o corpo do outro. Todas as formas de racismo e de exclusão constituem, em última análise, maneiras de se negar o corpo do outro.

Poderíamos fazer uma releitura de toda a história da ética sob o ângulo dos direitos dos corpos, e das relações de nosso corpo com o mundo.

Pergunta - Como o sr. explica que a necessidade de uma nova forma de vigilância contra os "lugares de captura" da extrema direita, necessidade que lhe parece evidente, não seja uma evidência unanimemente compartilhada pela esquerda, se é que esse termo ainda possui um sentido para o sr.?

Eco - Vejo três razões para isso, grosso modo. A primeira diz respeito, tanto na França como na Itália ou na Alemanha, aos pequenos grupos resultantes de um excesso de esquerdismo. A Terra é redonda: não se pode ir à esquerda demais. À força de perseguir a idéia mais extrema, a mais provocadora, a mais "inovadora", acabamos por dar a volta e nos vemos entre a extrema direita. Foi isso que aconteceu com alguns grupos.

A segunda razão são os dogmatismos passados da velha esquerda. Houve um tempo em que todos aqueles que pensavam diferentemente de nós eram fascistas. Em reação contra aqueles excessos passados, temos a tendência, hoje, a estender a mão a todo mundo e a não mais discernir onde estão os inimigos e os lugares de captura.

É verdade que é preciso uma capacidade de discernimento específico, e no fim das contas raro, para reconhecer a boa-fé e o caráter eventualmente generoso das motivações de nossos adversários, sem por isso justificar suas opções ideológicas.

Existe, por fim, uma situação histórica específica da França. A Itália acertou suas contas com o fascismo. Sabe-se quem apoiou Mussolini e quem o combateu. Já se falou muito, e o passado quase não tem ambiguidades. Lendo os jornais franceses eu vejo que na França, pelo contrário, ainda se discute para saber quem era a favor de Vichy e quem era contra. A França ainda está cheia de fantasmas esquecidos, que não se sabe de onde vêm. Isso complica as coisas, e talvez as explique.

Tradução de Clara Allain

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