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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

Um depoimento autobiográfico

(publicado em 14/05/1995)

Da Folha de S.Paulo

Em 1989, quando esteve em Nova York para lançar "O Pêndulo de Foucault", Umberto Eco concedeu ao jornalista e ensaísta americano Marshall Blonsky um depoimento autobiográfico, que nunca veio a público. É deste depoimento que o "Mais!" publica a seguir os principais trechos.

UMBERTO ECO
E o papa perguntou: "O que é pingue-pongue?; "É tênis de mesa, explicaram; e descobri que Pio 12, pela primeira vez, ouvia falar naquilo

Nasci em Alexandria, no Piemonte, uma cidade com pouco menos de 100 mil habitantes. Há 30 anos atrás, era igual ao que é hoje. Alexandria cresceu pouco. Bonitas colinas a cercam, mas é um lugar um tanto chato.

Historicamente, foi uma cidade importante, pois, quando Frederico Barba Ruiva, o imperador alemão, invadiu a Itália, o papa --que era então Alexandre 3º--, junto com as outras comunas independentes, pagou um dinheirão para encorajar pessoas que viviam dispersas em pequenas vilas a construir uma cidade para resistir ao Barba Ruiva. Assim, surgiu Alexandria, do nome do papa Alexandre. Depois disso, vários eventos históricos ocorreram, mas nada de muito importante.

A maior atração da cidade é que, durante o inverno inteiro, ela fica completamente imersa em brumas. Mas uma bruma que, comparada a Londres, faz a capital da Inglaterra parecer Miami. Esta especialidade climática foi importante para mim. Viver na bruma significa elaborar uma atitude de introspecção e prudência. Gosto da bruma... Não é por acaso que um capítulo inteiro de "O Nome da Rosa acontece na bruma.

Outra característica de minha cidade era o ceticismo. Ela foi construída para resistir ao Barba Ruiva. Eles conseguiram, mas não elaboraram nenhum mito heróico com isso. Parece que, uma vez, Francisco de Assis passou por Alexandria e converteu um lobo. Agora, todas as histórias de São Francisco se concentram sobre o lobo que ele converteu em Gubbio. Converteu um também em Alexandria, mas ninguém se lembra.

Alexandria tinha uma rica comunidade judaica na Idade Média e na Renascença, mas que não organizou propriamente um gueto. Não digo que fosse por virtude. Não eram fanáticos a ponto de construir um gueto. Assim, minha cidade é uma cidade não heróica. Não há heróis. Minha cidade me ensinou que não há heróis.

Kant e o pai

Meu pai era contador em uma pequena empresa, onde compravam e vendiam ferro. Era o primeiro dos 13 filhos de um tipógrafo. Era um status social baixo. Meu avô --ele morreu quando eu tinha três ou quatro anos-- parece que era socialista e organizava greves. Havia em casa muitos livros, porque ele era tipógrafo e, em seu tempo livre, encadernava volumes.

Meu pai, por isso, quando garoto, leu muitos livros. Histórias populares. Esse foi um elemento importante na minha juventude, pois ele me contava muitas histórias e me transmitiu, assim, o gosto pela narrativa. Fora isso, minha infância foi a mais normal do mundo.

Mais tarde, quando eu já frequentava o colégio e estudava filosofia, meu pai me disse: "A filosofia é interessante, mas eu nunca estudei filosofia, obviamente. Meu pai só frequentou a escola primária e, daí, começou logo a trabalhar. Era provavelmente uma pessoa inteligente, um leitor, mas não um homem culto.

Uma vez, me lembro que ele disse: "Havia alguém aqui em Alexandria que deu uma palestra pública sobre Kant, e não sei por que eu fui e tive a impressão de que a teoria de Kant está certa... Acreditamos que esta coisa é um navio porque chamamos de navio, mas se chamássemos de outro jeito não seria um navio.

Obviamente, meu pai confundia o princípio transcendental kantiano com o fato de que damos nomes às coisas. Mas, considerando que consagrei a minha vida a estudar as relações das palavras com os pensamentos e a realidade, e a maneira como consideramos a realidade é influenciada por nossas palavras, provavelmente este breve comentário paterno me influenciou. De todo modo, assim fazendo, ele decidiu minha vida inteira.

Meu pai, eu dizia, era um contador. Sabia que eu era um professor, um intelectual, mas não entendeu direito o que eu fazia até sua morte. Contudo, morreu muito orgulhoso de mim. Isso me faz feliz. Só gostaria que tivesse visto um pouco o que aconteceu com "O Nome da Rosa.

A guerra e a fome

Vivi minha infância durante a guerra, em um momento em que não era fácil encontrar comida. Não éramos pobres, mas, mesmo assim, era impossível encontrar algo para comer. Me preocupa a nova geração, que não sabe o que é a guerra, o que é estar com fome durante a guerra. Recordo minha mãe chorando porque não encontrava farinha para cozinhar algo e, no dia seguinte, ao encontrar castanhas, fazia com elas a farinha e, assim, os bolos que comíamos.

Agora, evidentemente, vivo em uma sociedade da abundância. Como outros de minha geração, me incomoda quando, em um restaurante, trazem --mesmo na Europa acontece isso-- comida demais. Deixo sempre algo no prato. Por causa de minha mãe, que ia aos bosques à procura de castanhas.

Papa e pingue-pongue

Antes da guerra, comecei a frequentar a missa, depois continuei. E permaneci fiel, dogmática e apaixonadamente, às organizações da Igreja Católica. Ela era para mim uma verdadeira adesão, a castidade, a Santa Comunhão, a cada dia pensava, se possível, em estudar a Bíblia e os evangelhos, organizar as pessoas. Não sei esquiar porque, quando meus camaradas iam esquiar no sábado e no domingo, eu ficava organizando jovens. Durante a universidade, fui convidado a entrar no bureau nacional da organização.

Ao mesmo tempo, estudava filosofia medieval. A ruptura com a igreja, que para muitos amigos foi sobretudo uma ruptura política --muitos se tornaram e permanecem democratas-cristãos--, para mim coincidiu com uma crise religiosa. Difícil dizer como. É estranho que eu tenha entrado em uma crise religiosa logo quando estudava a Idade Média e os teólogos, como Tomás de Aquino.

Alguns episódios podem explicar muitas coisas. Uma vez, nós, que pertencíamos à direção romana da organização dos estudantes católicos, fomos convidados a encontrar o papa Pio 12.

Durante o encontro, o papa, que era um ser muito espiritual, branco, pálido, viu um jovem com uma medalha. "Oh, o que é esta medalha?, perguntou. E o jovem disse: "É o primeiro prêmio do campeonato nacional de pingue-pongue. E o papa perguntou: "O que é pingue-pongue? "É tênis de mesa, alguém explicou. "Deve cansar menos, disse o papa. Descobri nesta ocasião que Pio 12 ouvia pela primeira vez falar em tênis de mesa.

Agora, você deve saber como é organizada a igreja italiana. Cada paróquia tem um padre e um monte de jovens organizados ao redor da igreja. O instrumento básico da comunidade é o tênis de mesa, como na China. Era impossível, na época, imaginar uma pequena paróquia na Itália que não tivesse, no mínimo, uma mesa para tênis de mesa. Era o primeiro objeto que o padre colocaria para reunir assim os jovens.

Pio 12, nascido príncipe Pacelli, nunca em sua vida, nem mesmo em sua juventude, tinha estado em uma paróquia. Fora educado para ser papa, mas nunca viu o que era a vida real do povo católico. Não digo que este episódio decidiu minha apostasia, mas é uma epifania da decepção. Era como se descobrisse que o papa não sabia o que era uma cruz ou um rosário.

Assim, no começo dos anos 50, abandonei a organização. Muitos outros a abandonaram naquele momento. Entre eles, o filósofo Gianni Vattimo e o extremista de esquerda Toni Negri, que agora está em Paris porque na Itália foi condenado a 30 anos.

O filósofo e a TV

Logo após minha formatura, na situação italiana, era difícil encontrar um lugar na universidade. Me candidatei a um emprego na Rádio e Televisão Italiana. A TV italiana começara havia apenas dois ou três anos. Fiquei lá de 54 a 58. Depois, fui fazer meu serviço militar e, enfim, comecei minha atividade de universitário.

Não fiz carreira na televisão. Mas vi muitas coisas e conheci muitas pessoas. Num dado momento, consegui me tornar o assistente de um diretor de programas artísticos, que aliás me chamava seu alter-Eco. Era um homem extraordinário, Ferdinando Ballo, que durante o fascismo criara uma pequena editora e publicara Brecht, Joyce etc.

Consegui me tornar seu assistente e amigo. Passava noites em sua casa, com milhares e milhares de livros, as primeiras edições de Paul Éluard, de Tristan Tzara. Um de seus amigos tinha a casa cheia de Paul Klee que comprara por US$ 5 cada, pois Klee era um pintor desconhecido na época. Graças a Ballo, que morreu aos 58 anos, encontrei seus amigos, que se chamavam Igor Stravinsky, Brecht...

Na televisão, no andar bem acima de onde eu trabalhava, também havia alguns jovens músicos, da mesma idade que eu, ou um pouco mais velhos. Eram Luciano Berio, Pierre Boulez, Karl-Heinz Stockhausen, Paolo Modena... Nós nos encontrávamos todo dia no bar da televisão e nos tornamos amigos. O encontro com eles foi muito importante para mim. Minha cópia pessoal do "Curso de Linguística Geral", de Saussure, eu roubei no escritório de Berio.

Na época, eles estudavam Trubetskoy, Saussure, a linguística estrutural, para entender coisas relativas a sons e vozes... Assim, foi Berio quem me introduziu na linguística estrutural. Eu lhe fiz ler Joyce. Foi através de Berio e dos músicos que encontrei pela primeira vez Roland Barthes, em Paris, e, logo depois, Roman Jakobson, em Nova York. Isso também explica como foi se construindo meu livro, "A Obra Aberta, como interação entre um jovem filósofo e jovens músicos.

Se "A Obra Aberta foi um dos primeiros livros de crítica a interrogar a posição e a atividade do leitor, foi porque, justamente, os músicos naquela época concebiam obras que deviam ser manipuladas de alguma forma pelo receptor para serem compreendidas.

Depois, veio o Grupo 63: uma espécie de reunião da jovem geração contra o idealismo de orientação alemã em estética. Tentávamos todos fazer algo novo e nos ajudar contra a geração precedente. Éramos chamados de "a vanguarda de wagon-lit", porque, à diferença da vanguarda tradicional, não éramos marginais. Todos escrevíamos nos jornais, trabalhávamos nas casas editoriais.

No calor de 68

O outro momento importante foi 68. Eu tinha 36 anos. Já era professor de universidade. Foi um choque ver esta jovem geração contrastando com parte de minhas idéias. A geração anterior à minha fora destruída pela experiência. Minha geração tentou o diálogo. De uma certa forma, acreditava neles, que estivessem trazendo algum novo ideal de pureza.

Minha geração recebeu deles uma espécie de apelo puritano. Ao mesmo tempo, sentia o dever de lhes dizer que certas coisas permaneciam importantes. Assim, mesmo nos momentos mais quentes de 68, com as universidades ocupadas, eu mantinha o diálogo e conseguia continuar ensinando.

Houve momentos complicados. Por exemplo, eu ensinava o que na época se chamava semiologia, teoria da comunicação, e os estudantes se revoltavam: "Tudo isso não passa de um complô capitalista, "Viva a revolução!. Daí eu propunha: "Justamente, quero fazer para vocês uma análise da comunicação no sistema capitalista. E eles aceitavam.

Eu continuava normal. Era uma maneira de pagar tributo a seus problemas. Acrescentava um pouco de Adorno, por exemplo, mas continuava e conseguia que estudantes revolucionários lessem Saussure. Não é que quisesse enganá-los. Sentia que eles estavam trazendo novas idéias, mas ao mesmo tempo sentia que havia coisas que deviam saber, senão estariam perdidos.

Foi um momento importante. Trouxeram novos ideais de pureza e acabaram traindo essas idéias. Depois do colapso de 68, alguns foram para o terrorismo e outros são os novos "tycoons. Para mim, foi a ocasião de refletir sobre a posição do intelectual. Durante toda minha vida, nunca aceitei ser conselheiro de uma agência comercial ou publicitária. E isso talvez se deva ao tipo de moralidade que recebi de 68.

Nunca aceitei a idéia do terrorismo. Durante os anos do terrorismo, escrevi alguns artigos para demonstrar que o terrorismo é política e ideologicamente inconsistente. Mais tarde, quando todos --ou quase-- os terroristas estavam presos, muitos deles, como a lei permite, seguiam cursos universitários na prisão. Me aconteceu frequentemente ir examiná-los, com uma comissão de professores.

Assim, anos depois, alguns líderes terroristas (e não dos menos importantes), que se apresentavam a meu exame na prisão, me disseram que tinham se reunido para discutir meus artigos e achavam que eu tinha razão. Me dava prazer a idéia de que terroristas na prisão lessem e discutissem meus artigos e concluíssem que eles estavam errados. Me dava prazer, porque sou um professor.

O gênio de Aladim

Benedetto Croce disse uma vez: "O dever da juventude é o de envelhecer. Sou um homem de vários anos, com dois rebentos já adultos, e ainda gosto de fazer amor. Mas se o gênio de Aladim chegasse e me dissesse: "Deves escolher, podes fazer amor para o resto de tua vida com as mulheres mais bonitas do mundo, mas não podes ter mais filhos, ou então: "Podes ter ainda um filho, mas estás condenado a fazer amor só mais uma vez em tua vida, provavelmente, mesmo com minha idade, mesmo já com dois filhos, escolheria a opção dos filhos. E, para o resto, masturbação.

Me lembro que, depois da formatura com meu amigo Furio Colombo, em Milão, com 22 anos, dizíamos: "Terminamos a universidade, começamos novos empregos, mas, o que queremos verdadeiramente fazer com nossas vidas? E me lembro que respondi: "Quero fazer um livro e uma criança, porque são os únicos modos de ultrapassar a morte, uma coisa de papel e uma de carne. Fazer amor, com todos seus prazeres, é estúpido, não leva a nada. Mas minha morte pode ter um sentido se alguém sobreviver a mim e continuar. E escrevo um livro não para ter sucesso agora, mas com a esperança de que, no próximo milênio, ele estará ainda em alguma bibliografia.

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