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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

A estante "ecomênica" dos saberes modernos

(publicado em 14/05/1995)

CONTARDO CALLIGARIS
Especial para a Folha

Por que e como os romances de Umberto Eco se tornaram mundialmente best sellers? Alguns dizem que são inteligentes demais, cultos demais para isso. Perguntam: será que as pessoas que compram lêem mesmo? Lêem, sim.

Outros comentam, então, que, por sua experiência e ciência de semiólogo, Eco teria acumulado um fabuloso saber sobre a cultura de massa. Portanto, conseguiria hoje responder certo à espera do mercado cultural.

Além do fato que o sucesso inicial de "O Nome da Rosa" foi para o próprio Eco e para sua editora uma surpresa, a observação destes comentadores --um pouco invejosos-- se parece com uma daquelas teorias do complô que Eco denuncia no texto publicado hoje pela Folha (leia à pág. 5-8).Ou então com uma daquelas interpretações alusivas e forçosas que fazem o tecido de "O Pêndulo de Foucault".

De fato, o sucesso dos romances de Umberto Eco se deve à invenção --ou descoberta-- de uma relação entre a narrativa romanesca e os variados saberes que são a bagagem do homem ocidental.

Ler os romances de Umberto Eco dá o mesmo prazer que ler Michel Foucault. Só que para mais gente e talvez mais prazer.

Há centenas de anos, vivemos uma época invadida por uma indefinida pluralidade de saberes, que, todos, se multiplicam e difundem com uma velocidade sem precedentes: uma proliferante estante sincrética, onde cada saber, da astrologia à astronomia, pede reverência e reivindica autoridade.

Perdemos há tempos as amarras de uma fé comum ou de um cânone compartilhado de valores. Abandonamos a suprema referência a um único livro. De que podem ser feitas, então, nossas certezas, nesta atormentada época?

Podemos colocar fé em nossa razão, como se esta fosse uma faculdade abstrata, fora da estante. Fazemos, assim, de conta que não nos confundimos com mais um autor. Constituímos, assim, disciplinas, que são --continuando a metáfora-- espécies de biblioteconomias de nossa estante maluca, para podermos encontrar alguma ordem "racional" entre os livros que a jato contínuo se amontoam.

Semiótica, aliás, poderia ser um nome comum de quase todas estas disciplinas, pois todas querem interpretar e organizar de alguma forma a multiplicidade dos signos e das retóricas que incessantemente disputam nossa confiança.

Acontece que, inevitavelmente, dadas as premissas, cada disciplina inventada se desmancha em um arco de tendências, até desmentir nossa esperanças. Pois as próprias biblioteconomias se multiplicam: testemunha disso, aliás, é a conflituosa organização das livrarias. Um livro teórico de Umberto Eco nos EUA, por exemplo, poderá estar em "estruturalismo" (Barnes and Noble, em Nova York), "ciências cognitivas" (Harvard Bookstore, em Cambridge) ou, mesmo, em outros lugares, em "estudos culturais". Pior: ninguém pode nos dizer qual destas seções comandaria a organização inteira da livraria. Para que se entenda o que perdemos: em uma hipotética livraria pré-moderna, não só a filologia bíblica estaria na frente, seguida pelos comentários, mas talvez a ordem da livraria inteira seria organizada segundo uma ordem simbólica do mundo, deduzida da própria organização do texto revelado.

Descobre-se, assim, que todas as diversas biblioteconomias fazem parte da estante: nenhuma a ordena e comanda. Mas, se não podemos colocar ordem em nossa estante, se fazemos parte da estante, que somos nós? Dir-se-á, com razão: traças pastando ao acaso de um cego apetite e cuja autópsia revela uma massa branca de papel digerido.

Para ficar um pouco fora da estante, distintos dela, podemos cultivar, como uma arte, nossa ironia. Escrever, por exemplo, um diário mínimo, afirmando nossa distância de um cotidiano inevitavelmente compacto e opaco, desde que nenhum saber exclusivo pode organizá-lo (entende-se, com efeito, que o mundo, não organizado pela fé comum em um saber, acaba se configurando ao redor de crenças e imagens e, portanto, fica cada vez mais impenetrável).

Ora, por mais que a ironia possa aliviar nosso destino e ser a fonte de uma irresistível comicidade, ela é sempre o riso dos sem-terra. A ironia proclama nosso exílio, sem prometer volta ou chegada nenhuma para um saber, perdido ou encontrado, que diga a verdade. Por proclamar que não fazemos parte da estante, acabamos excluídos, em outras palavras, do próprio mundo do qual vivemos.

Mas é possível também descobrir que existe, apesar de tudo isso, uma dimensão onde o sujeito moderno pode, senão descansar, pelo menos encontrar um lugar. Não é terra firme: como acontece na "Ilha do Dia Anterior", o náufrago encontra uma outra nave.

É na narração, contando e se contando, que o sujeito moderno encontra remédio ao que lhe falta: uma determinação, um sentido que lhe sejam dados de antemão. A narração dos avatares de seu caminho, sua história --passada ou in fieri--, por movediça que seja, é seu ponto fixo.

Justamente nesta forma, que é provavelmente a presença no mundo própria ao sujeito moderno, Eco inventa algo novo: um romance de formação, policialmente animado pela procura de uma verdade (até aqui nada de novo), mas onde os caminhos narrativos pelos quais o sujeito se perde e se procura são também as trilhas do labirinto dos saberes. Nos romances de Eco, os caminhos das personagens são indistintamente escolhas e eventos, assim como aventurosas referências aos mil e um livros da estante maluca do homem moderno.

Dizem de Eco que ele é ecumênico. Dizem isso, desde que sua tolerância permitiu, nos anos 70, que a semiótica existisse reunindo enfoques tão diversos. Na verdade, ele poderia servir para inventar uma nova palavra: "ecomênico".

O neologismo designaria o sujeito que conseguiu ao mesmo tempo manter fé na razão, rir do mundo, e encontrar na narração não só seu próprio "ponto fixo" (nem tão fixo, naturalmente), mas também a dimensão epistemológica modernamente possível para os saberes que produzimos e que nos produzem.

É este o parentesco entre Michel Foucault e Umberto Eco: o primeiro escrevia a história dos saberes, o segundo escreve nossas histórias com os saberes. É esta também a razão do prazer do leitor, ou --ao menos, uma delas: em Foucault, descobrir que os saberes não se julgam no tribunal da razão, mas se narram nas continuidades e descontinuidades de nossa história. Nos romances de Eco, descobrir que nosso recurso, explícito ou implícito, à paleta versicolor da dita cultura se organiza de fato segundo a narração de nossas vidas.

Em vista disso, que aconteça a Eco --o autor, não o narrador-- de continuar acreditando que alguma terra firme exista, por exemplo, que o corpo prometa uma referência material para nossos valores, ou que narrar seja uma necessidade biológica (e não cultural, própria à deriva do sujeito moderno), é um detalhe. Talvez até um detalhe "ecomênico.

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