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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

A fala visível do livro mudo

(publicado em 03/09/1995)

HAROLDO DE CAMPOS
Especial para a Folha

Em outubro de 1989, num envelope timbrado da Universidade de Bolonha, recebi da parte de Umberto Eco uma carta curiosa. O romancista e semioticista, de quem sou amigo desde os anos 60, referia-me uma pesquisa em andamento sobre os diversos modos de interpretação de um texto. Dizia-me que havia selecionado um escrito alquímico, atribuído (falsamente) a São Tomás de Aquino, do qual me enviava cópia no original latino e numa tradução francesa, indicando-me como fonte o livro de Marie-Louise von Franz, discípula de Jung, "Aurora Consurgens - Le Lever de l'Aurore" ("A Aurora Nascente"), La Fontaine de Pierre, 1982. As razões da escolha, segundo Eco explicava, haviam sido as seguintes: a) o autor e a época do texto eram incertos; b) o estilo, obscuro; c) como todos os textos alquímicos, podia ser lido ou em referência a uma prática pré-científica ou em sentido místico-alegórico.

Comunicou-me, ademais, que resolvera submeter o texto a um grupo de estudiosos, entre os quais me incluía (os outros, arrolados ao pé da página, eram: Maria Corti, Jonathan Culler, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Jacques Geninasca, Fernando Gil, Algirdas Julien Greimas, Thomas S. Kuhn, Thomas Pavel e Cesare Segre). Nenhum deles --acrescentava Eco-- era profissionalmente historiador da alquimia ou ligado a práticas alquímicas. Por outro lado, cada colaborador teria plena liberdade para ler e comentar o texto do modo que lhe aprouvesse, a saber: 1) remetendo-o ao seu contexto histórico; 2) relacionando-o com interpretações que já lhe tinham sido dadas; 3) como puro texto "poético" ou "filosófico", do qual se ignorasse autor e época; 4) como exemplo linguístico de "estilo alquímico"; etc.

Surpreso com o convite (e com a ilustre companhia em que Eco me incluía), depois de ler o texto que me havia remetido e refletir sobre ele; depois, também, de recorrer como subsídio ao livro "Alquimia - Introdução ao Simbolismo e à Psicologia", de M.L. von Franz (Cultrix, 1987; tradução do original inglês de 1980), decidi contribuir ao inquérito umbertiano, na minha precípua condição de poeta, com um "metapoema, um poema metalinguístico-hermenêutico, que encapsulasse minha reação interpretativa ao intrigante escrito alquímico que é "Aurora Consurgens". Encaminhei a Umberto Eco, no dia 6 de janeiro de 90, o poema --até agora inédito-- (leia na pág. ao lado), em versão para o italiano por mim mesmo elaborada, justificando (como ele também pedia em sua carta-convite) as razões de meu modo de proceder: "Da minha parte, sinto-me apenas capaz de responder à tua demanda, colaborando com um outro enigma (não uma decodificação, mas, ao invés, um suplemento enigmático à sua ambiguidade): um poema-glosa". Isto porque, num sentido mais específico, já havia a minuciosa exegese junguiana de M.L. von Franz; um esclarecimento maior dos problemas do texto dependeria do aprofundamento dessa análise num nível histórico e contextual, coisa que não estava evidentemente ao meu alcance.

O 'Mutus Liber'

De tudo isso me recordei, ao receber das mãos de Sérgio Risek a esplêndida edição brasileira do "Mutus Liber" ("O Livro Mudo da Alquimia"), enriquecida por notas, comentários e um elucidativo e penetrante ensaio introdutório de José Jorge de Carvalho, professor da Universidade de Brasília, especialista no assunto. De passagem, menciono que o jovem editor Sérgio Rizek, por intermédio da Attar Editorial, é responsável por outros valiosos lançamentos.

Entre eles, a versão integral em prosa de "A Linguagem dos Pássaros", composição alegórico-mística do poeta persa súfi Farid ud-Din Attar (ca. 1120-1193), versão feita por Rizek e Álvaro de Souza Machado a partir da tradução francesa de Garcin de Tassy (1863), comparada com outras fontes; dessa obra, conheço a elaborada tradução inglesa, com propósitos de re-criação, em "dísticos heróicos", rimados, por Afkham Darbandi e Dick Davis, "The Conference of Birds" (Penguin Classics, 1984). Outro item é a reunião, sob o título "A Sabedoria Divina" ("O Caminho da Iluminação"), de três tratados do místico silesiano Jacob Bõhme (1575-1624), visionário influente no romantismo alemão, em versão de Américo Sommerman, incluindo um estudo do sistema bõhmiano pelo grande poeta polonês Adam Mickiewicz.

Para a minha apreciação do "Mutus Liber", ajudaram-me algumas leituras precedentes no campo da mística e da alquimia, neste último caso sobretudo por instigação de minha amiga Ana Maria Alfonso Goldfarb, especialista em história das ciências, discípula do saudoso professor Simão Mathias (de quem também recordo um belo ensaio de 1977 sobre o alquimista árabe Jabir Ibn Hayyan, "um personagem misterioso", versado em filosofia grega, na mística sufi e autor de tratados sobre lógica e sobre arte poética).

Em 1987, Ana Goldfarb publicou "Da Alquimia à Química" (Nova Stella/Edusp). Para Goldfarb, "a Alquimia efetua uma ritualização mística em três tempos: o da negra morte da matéria; o de seu alvo renascer e o de sua rubra transmutação em ouro", como resume Marilena Chaui na resenha que lhe dedicou (nesta Folha, 23 de janeiro de 1988), na qual ressalta, ademais, que, "evitando interpretações de estilo junguiano (ou dos arquétipos do inconsciente coletivo), a autora decide-se vigorosamente pela história (das idéias, social, econômica e política)". Na conclusão de seu estudo, Ana Goldfarb mostra como a Alquimia, "baseada numa cadeia de mistérios", não resistiu "à passagem para um universo onde o mistério é inadmissível". Diante do novo modelo do cosmo, o dos "mecanicistas", oposto frontalmente à "antiga cosmologia mágico-vitalista", âmbito onde florescera, a Alquimia, "esvaziada de seu sentido original" teria desaparecido como tal, sobrevivendo residualmente, no universo "mecanicista", não como "forma de conhecimento da natureza", mas, tão-somente, como, entre outras projeções, "figura poética".

A poesia hieroglífica

É como "figura poética" que me interessa precipuamente a "Grande Obra" ("Opus Magnum") alquímica, paradigma, em certo sentido, daquele "Livro Universal", sonhado por poetas como Mallarmé ou Velimir Khlébnikov (recorde-se, deste último, o poema "Edinaia Kniga", "O Único Livro, de 1920, por mim traduzido em "Poesia Russa Moderna").

De fato, é como uma espécie de poema visual, hieroglífico, que o "Mutus Liber" me toca, na sua iconografia silenciosa, articulada em 15 pranchas, minuciosamente comentadas, aliás, e dilucidadas em seu simbolismo por José Jorge de Carvalho. Na sucessão dessas pranchas, vemos o neófito (o candidato a Adepto), solitário, desde o seu despertar, por um anjo-mensageiro, para o "jogo sério" ("lusus serius"), através das várias etapas do trabalho alquímico, passando pela "morte filosofal", até o triunfo final de Adepto maduro, "operador da obra", transfigurado, iluminado, olhos abertos, com sua barba magistral e sua coroa de louros.

O "Mutus Liber" ilustra, num dos seus níveis, o currículo iniciático de um "Adepto silencioso" --um "Liberto", outro significado possível de "Liber", como aponta com sutileza o comentador brasileiro--, alguém livre, desvencilhado de suas peias, mas que se conserva (e reserva) em mudez, "que não fala sobre os mistérios que ao cabo desvela. Ao folhear esse álbum alquímico, pensei no terceto final de um célebre soneto esotérico de Fernando Pessoa (o último do tríptico "No Túmulo de Christian Rosencreutz"):

"Calmo na falsa morte a nós exposto,
O Livro ocluso contra o peito posto,
Nosso Pai Roseacruz conhece e cala."

Dante e a fala visível

Mas, sobretudo, pensei nos versos de Dante ("Purgatório, 10, 95-96"):

"... esto visibile parlare,
novello a noi perchè qui non si trova"

("...este falar visível/ que é novo e entre nós outros não se encontra).

Esses versos se referem a figuras murais, entalhadas no mármore, cuja "fala visível" o peregrino Dante podia "ouvir" ("ouver, diria mais apropriadamente Décio Pignatari), como se cada uma delas não fosse "imagine che tace" (uma "imagem muda"), mas pessoa viva e dotada de voz.

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