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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

A maldição do faraó

(publicado em 31/12/1995)

UMBERTO ECO
Especial para "Corriere della Sera"

O sol vermelho do deserto egípcio se punha como uma bola de fogo, lambendo com reflexos sanguíneos a silhueta já quase escura da pirâmide de Zoser, o Magnífico. Poucas dezenas de metros abaixo da areia ressecada, os operários estavam para demolir a última barreira de pedras talhadas que os separavam da câmara mortuária de Thamus, o Agráfico.

Diante da entrada das escavações, um egípcio de bigode negro e bem cuidado, os cabelos besuntados de brilhantina sobre uma cabeça que parecia um ovo, e um europeu miúdo e pálido, com um olhar perenemente assustado, desciam de um jipe.

"Dr. Pereira? Sou o major Safar, dos Serviços Egípcios. Este é o dr. Antonio Vitali, do Museu do Cairo. Estamos esperando que nos avisem, lá de baixo, que a parede está para cair. Deveremos estar todos presentes no momento de entrar no túmulo. Emocionado?"

"Sou um jornalista provinciano. Por que me escolheram?"

"Lorde Carnavon não queria outra vez um tumulto de enviados especiais no momento de seu triunfo. Quando foram descobertos os restos da Arca, no Ararat, o enviado do 'Clarion', para impedir aos concorrentes o acesso ao telefone, transmitiu todo o 'Paraíso Perdido', de cor. Desta vez, informamos só a 'Cairo World News'."

"Onde foram encontrar apenas um velho funcionário inócuo, que consome seu exílio sem ilusões..."

"Mas amanhã sua nota estará nos jornais do mundo inteiro."

"Sem a minha assinatura. Mas talvez seja melhor assim. Mas sei muito pouco do que nos espera. Dr. Vitali, o senhor que é arqueólogo..."

"Oh, também sou um fugitivo, como o senhor. Anos atrás, em Assum, tive um infarto, sobrevivi, e resolvi ficar aqui. Como sou formado em arqueologia, encontrei um cargo modesto no museu. Ninguém aqui é muito importante, exceto lorde Carnavon, e talvez o major Safar. Foi enviado para nos proteger, diz ele, mas de quem? Deverá impedir que a múmia do faraó acabe indo parar em Londres? Mas não sou eu quem deve garantir os direitos do Museu do Cairo, sr. Safar? Ou foi enviado pelos Outros, ou seja, pelos Três, que sabem muito mais que nós?"

"Perguntar é a minha profissão, senhor Vitali, e há muitas coisas que gostaria de perguntar exatamente ao senhor. Mas agora responda ao dr. Pereira."

"Simples. Sabemos tudo o que sabemos sobre as antigas dinastias, até 3000 a.C., por meio dos calendários. Mas e antes da invenção da escrita? Platão, no 'Fedro', nos fala do faraó Thamus, ao qual Thot, deus das artes, apresentou um dia uma sua novíssima invenção, a arte da escrita. Mas Thamus o rejeitou, com medo de que, apreendendo a escrita, os homens deixassem de cultivar o dom da memória. Portanto, se Thamus realmente existiu, por certo não deixou suas memórias por escrito. Mas Thot era o Hermes Trimegisto da tradição posterior, e, se Thamus se calou, talvez Thot tenha deixado rastros. Lorde Carnavon descobriu um fragmento inédito de Estobeu, que não está no 'Corpus Hermeticum', no qual se diz que Thamus foi inumado aqui em Sakkara. Naturalmente ninguém queria acreditar, mas no ano passado, quando começaram as escavações para construir um estacionamento subterrâneo para os turistas, percebemos que aqui embaixo provavelmente havia um túmulo. Lorde Carnavon estava certo..."

Nesse momento, alguém deu o sinal, e os três precipitaram-se para a entrada das escavações. Após um longo corredor, que desceram curvados, quase de quatro, chegaram a um espaço fortemente iluminado por geradores de energia, em que a queda do último baluarte havia levantado uma nuvem difusa de poeira. Além dos operários, estavam ali um velho cavalheiro, uma moça loura e delicada e dois homens que vestiam camisas cáqui, típicas de quem viaja pelo deserto.

Vitali chamou Pereira de lado: 'Doris é a filha de lorde Carnavon, o mais jovem é Belzoni, seu assistente. Quanto ao outro, não entendo por que está aqui. Seu nome é Graham Ramsey (ou Ramsey Graham, não está claro), e certamente não é um arqueólogo. Diz-se que teve de deixar a Europa e as duas Américas devido a um comércio suspeito de obras de arte. Não entendo por que tem tanta influência sobre lorde Carnavon, talvez tenha sido enviado por um dos Outros, mas certamente Safar está aqui também por causa dele. Quanto ao mais, um interessante triângulo... Doris está claramente louca por Belzoni, que, porém, está loucamente apaixonado por Graham; Graham, por sua vez, ama Doris, que o odeia, porque acha que ele lhe rouba o amor de Belzoni. Para terminar, naturalmente Graham não suporta Belzoni, que odeia Doris, que se interpõe entre ele e Graham. Há uma certa eletricidade no ar, e cedo ou tarde algo vai acontecer."

Interrompeu-se. Lorde Carnavon, com o rosto iluminado como o de um clarividente, estava para dar o primeiro passo, quando Doris jogou-se chorando em seus braços: "Papai, não teme a maldição do faraó? Lembra o que diziam aqueles carismáticos na Itália?".

"Bobagens, minha filha. Vamos." E passou à frente. Enquanto os outros passavam um a um, Safar observava com um sorriso ambíguo Belzoni, que, com o rosto coberto de suor, murmurava consigo mesmo: "A maldição do faraó! Não pensei que pudéssemos chegar a este ponto. Mas por que a moça disse isso? Para causar embaraço aos Outros? Mas em nome de quem ela fala?". Depois, deu um golpe seco no próprio pescoço, como para afugentar, ou matar, um inseto.

Agora os holofotes iluminavam claramente uma sala cujo teto ainda não se enxergava. "Nenhum hieróglifo nas paredes", disse triunfalmente lorde Carnavon, "o que é óbvio, se aqui quis ser inumado o inimigo da escrita". No centro, erguia-se, isolado, um sarcófago descerrado. Dentro dele, no círculo de luz desenhado pela lâmpada de Carnavon, Thamus, a grande Mãe de todas as Múmias, parecia quase rir com escárnio.

"Obrigado, meu Deus", murmurou, quase chorando, lorde Carnavon. "Thamus, o faraó desconhecido, aquele que viveu antes mesmo de Menes!"

Safar, que nesse ínterim tinha dirigido sua lâmpada em direção ao teto, lançou um grito. Da abóbada da câmara mortuária, pendia, a pino sobre o sarcófago, como um fio de prumo, uma figura humana. Não era uma múmia. Era uma espécie de ser vegetal, um emaranhado de fibras ressequidas.

"Por Ramsés!", exclamou, pasmado, lorde Carnavon, "mas os egípcios não praticavam o enforcamento. É um rito desconhecido...".

"Algo mais que isso", riu maldosamente Safar. "Não sou químico, mas me parece que aquele senhor está em excelentes condições após 5.000 anos..."

"Talvez a falta de ar tenha retardado a decomposição", sugeriu Belzoni, lívido.

"Não percamos tempo em discussões", disse bruscamente Graham. Ordenou que os operários trouxessem uma escada e fez descer a corda. Mas antes mesmo que o corpo atingisse o chão, aquela atroz silhueta pareceu pulverizar-se de vez, como se suas fibras se desintegrassem no ar, formando uma nuvem tóxica. No chão restou apenas um esqueleto, branco e limpo como se tivesse acabado de sair da vitrine de um museu de anatomia.

Lorde Carnavon precipitou-se em cima daqueles restos: "Tem uma gargantilha de ouro em volta do pescoço", disse. Pereira, que estava perto, curvou-se para examinar a jóia. "É uma medalha", disse, "na qual foram gravadas uma cruz e uma inscrição... Os cavaleiros de amor..." Levantou-se, pálido: "Os Templários de Tomar, mais uma vez!".

"O que significa isso?", perguntou Safar.

"Significa que esta medalha certamente não tem 5.000 anos. É um símbolo dos Cavaleiros de Cristo, constituídos em Portugal para garantir a sobrevivência da Ordem dos Templários, no século 14. Mas, quanto à fabricação, a medalha me parece bem mais recente...."

"Não diga bobagens, senhor", gritou histericamente lorde Carnavon. "Este túmulo não foi aberto por 5.000 anos, e tenho as provas disso!"

"Milorde", interveio o major Safar, "não se pode sustentar que antes mesmo da primeira dinastia se escrevesse em português...".

"É mais provável que Thamus conhecesse o português do que meu pai estar enganado!" --disse Doris, com ira.

"Senhores", repetiu Safar, "devemos nos render à evidência. Mas é uma evidência assaz obscura. Sempre se pensou que a pergunta clássica fosse: como pôde o assassino sair de um quarto fechado por dentro? Mas aqui não sabemos nem mesmo como a vítima conseguiu entrar".

"Acho que sei", riu maldosamente Graham, e sussurrou algo ao ouvido de lorde Carnavon, que estremeceu. Nesse instante Belzoni, que acompanhava o diálogo de longe, lançou um grito esganiçado, levou as mãos à garganta e desmoronou no chão. Doris curvou-se para levantar-lhe a cabeça já sem vida e murmurou, num sopro: "A maldição do faraó!".

Pálido, apoiando-se no sarcófago, Vitali murmurava: "Somente três Outros conhecem a resposta, e ainda não falaram... Ou talvez o senhor a conheça, dr. Pereira?".

Mas Pereira havia desaparecido.

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