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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

O intolerável

(publicado em 19/04/1998)

UMBERTO ECO


Há perguntas irritantes, como quando alguém pergunta o que aconteceu assim que você acabou de morder a língua. "O que você acha?", perguntam nesses dias em que todos (exceto alguns poucos) pensam a mesma coisa do caso Priebke. E ficam quase decepcionados quando você responde que, obviamente, está indignado e confuso, porque no fundo todos perguntam na esperança de ouvir uma palavra, uma explicação que possa reduzir a indignação e a confusão.

O sentimento é quase de pudor ao falar, ao obter assim, a preços tão módicos, o consenso geral, virtuosos entre virtuosos, em um arco que vai da Rifondazione Comunista à Aliança Nacional. Como se o tribunal militar de Roma tivesse posto todos os italianos de acordo.

E todos do lado certo.

E se o caso Priebke fosse além do simples episódio, no final das contas bastante esquálido (um criminoso impenitente, um tribunal temeroso), e nos envolvesse mais profundamente, sugerindo que nós também não somos inocentes?

Continuamos a avaliar o que aconteceu em termos de leis vigentes. Com as leis vigentes talvez fosse possível condenar Priebke à prisão perpétua, mas em termos de jurisprudência não podemos sequer dizer que o tribunal de Roma tenha se comportado de maneira inconcebível. Havia um criminoso confesso de um delito terrível, tratava-se de ver se havia circunstâncias atenuantes, como qualquer tribunal deve fazer. Pois bem, eram tempos duros, Priebke não era um herói, mas um pobre covarde, e, mesmo que tivesse percebido a enormidade do delito, teria medo de arcar com as consequências de uma recusa; matou cinco a mais, mas quando se está embriagado de sangue, todos sabem, fica-se como um animal; é culpado, certo, mas em vez da prisão perpétua damos muitos e muitos anos; a justiça está salva, temos a prescrição e fechamos um capítulo doloroso. Não teríamos agido da mesma maneira com Raskholnikov, que assassinou uma velha e sem justificativas militares?

Somos nós que conferimos aos juízes o mandato para comportar-se segundo as leis vigentes e que agora levantamos contra eles uma exigência moral, uma paixão; mas eles respondem que são homens de todo, não "killers".

Igualmente, uma grande parte das objeções gira em torno da interpretação dos códigos já escritos. Priebke tinha que obedecer às ordens porque tal é a lei militar de um país em guerra; não, existiam também leis nazistas que lhe permitiam que se subtraísse a uma ordem injusta, e não podia ser julgado segundo as leis militares porque a SS era um corpo voluntário de polícia. Mas as convenções internacionais justificam o direito de represália; sim, pode-se responder, mas apenas em caso de guerra declarada, e a Alemanha, que se saiba, nunca declarou guerra ao reino da Itália e, portanto, os alemães, ocupantes ilícitos de um país com o qual não estavam oficialmente em guerra, não podiam lamentar-se se alguém vestido de lixeiro lhes explodia um comboio.

Ficaremos para sempre nesse círculo, até decidirmos que diante de acontecimentos excepcionais a humanidade não pode se permitir aplicar leis vigentes, mas deve assumir a responsabilidade de sancionar novas leis.

Ainda não tiramos todas as consequências daquele acometimento que fez época, que foi o julgamento de Nurembergue. Em termos de estrita legalidade ou de usos internacionais, foi um arbítrio. Tínhamos nos habituado ao fato de que a guerra era um jogo regulamentado e que, no final, o rei derrotado abraçava seu primo vencedor, e o que vocês fazem? Pegam os derrotados e enforcam-nos? Sim, senhor, responde quem decidiu Nurembergue: consideramos que nessa guerra aconteceram coisas além do tolerável e, por isso, mudamos as regras. Mas este intolerável o é em relação a seus valores de vencedores, temos valores diversos, vocês não vão respeitá-los? Não, como o ganhamos, e entre nossos valores está a celebração da força, aplicamos a força: enforcaremos vocês. Mas o que acontecerá nas guerras futuras? Quem as detonar saberá que, se perder, será enforcado; que pense antes de começar. Mas vocês também cometeram ações atrozes! Sim, mas são vocês, que perderam, que o dizem; nós vencemos e portanto enforcaremos vocês. Mas assumam, então, a responsabilidade! Assumiremos a responsabilidade.

Sou contrário à pena de morte, e mesmo que tivesse capturado Hitler eu o teria mandado para Alcatraz: por isso, daqui por diante, usarei "enforcamento" no sentido simbólico, como punição dura e solene. Mas à parte o enforcamento, o raciocínio de Nurembergue não apresenta lacunas. Diante de comportamentos intoleráveis deve-se ter a coragem de mudar as regras, inclusive leis. Pode um tribunal na Holanda julgar o comportamento de alguém na Sérvia ou na Bósnia? Segundo as velhas regras não, segundo as novas sim.

No final de 1982 houve em Paris um convênio sobre o tema da intervenção com a participação de jurista, militares, voluntários pacifistas, filósofos, políticos. Com que direito e segundo quais critérios de prudência pode-se intervir nos problemas de um outro país quando se considera que está sucedendo algo de intolerável para a comunidade internacional? Com exceção do caso límpido de um país ainda governado por um governo legítimo que pede ajuda contra uma invasão, todos os outros casos prestam-se a distinções sutis. Quem me pede que intervenha? Uma parte dos cidadãos? O quanto é representativa do país, quanto uma intervenção não acoberta com os mais nobres propósitos --Sagunto (1) ensina-- uma ingerência, uma vontade imperialista? Devemos intervir quando o que acontece no tal país vai contra nossos princípios éticos? Mas nossos princípios serão os deles? Devemos intervir porque em um país se pratica, há milhares de anos, o canibalismo ritual, que para nós é um horror, mas para eles é uma prática religiosa? Não foi assim que o homem branco tomou para si o virtuoso fardo e submeteu povos de civilizações antigas, embora diversas da nossa?

A única resposta que me pareceu aceitável é que uma intervenção é como uma revolução: não há uma lei precedente que nos diga se devemos fazê-la. Pelo contrário, devemos fazê-la contra as leis e os hábitos. A diferença é que a decisão de uma intervenção internacional não provém de um corte súbito ou de um movimento popular incontrolável, mas de uma discussão entre governos e povos diversos. Decide-se que, por mais que se deva respeitar as opiniões, os usos, as práticas, as crenças alheias, algo nos parece intolerável. Aceitar o intolerável coloca em questão nossa própria identidade. É preciso assumir a responsabilidade de decidir o que é intolerável e agir depois, prontos a pagar o preço do erro.

Quando aparece um intolerável inaudito, o limiar da intolerabilidade não é mais aquele que foi fixado pelas velhas leis. É preciso legislar de novo. Certo, é preciso que estejamos seguros de que o consenso sobre o novo limiar de intolerabilidade seja o mais vasto possível, supere os confins nacionais, esteja garantido de alguma maneira pela "comunidade" --conceito inapreensível, mas que está na base até mesmo do fato de acreditarmos que a terra gira. Mas depois é preciso escolher.

Isto aconteceu com o nazismo, e o Holocausto colocou um novo limiar de intolerabilidade. Genocídios houve muitos no correr dos séculos, e de alguma forma toleramos todos. Éramos fracos, éramos bárbaros, não sabíamos o que acontecia a dez milhas de nosso povoado. Mas este foi sancionado (e realizado) em termos "científicos", com demanda explícita de consenso, até mesmo filosófico, e foi propagandeado como modelo planetário. Não atingiu apenas a nossa consciência moral: colocou em jogo nossa filosofia e nossa ciência, nossa cultura, nossas crenças no bem e no mal. Tinha a intenção de cancelá-las. Era impossível não responder a tal apelo. E só se podia responder que não apenas naquele momento, mas 50 anos depois e nos séculos vindouros, não seria tolerável.

É diante desse intolerável que se revela a abjeção do sórdido raciocínio dos negacionistas, que se metem a calcular se os mortos realmente foram milhões, como se entre cinco, quatro, dois ou um se pudesse chegar a uma negociação. E se a morte não foi causada pelo gás, mas apenas por terem sido colocados lá sem muita atenção? E se tivessem morrido de alergia às tatuagens? Mas reconhecer o intolerável quer dizer que em Nurembergue todos deveriam ser condenados à forca, mesmo que o morto fosse apenas um, e por simples omissão de socorro. O novo intolerável não é só o genocídio, mas sua teorização. E esta envolve e responsabiliza também os peões dos massacres. Diante do intolerável caem as distinções de intenções, boa-fé, erro: há somente a responsabilidade objetiva. Mas (dizem eles) eu só empurrava as pessoas para as câmaras de gás porque recebia ordens, na realidade pensei que era apenas para desinfetá-las. Não importa, sinto muito, aqui estamos diante da epifania do intolerável, não valem as velhas leis com suas circunstâncias atenuantes: você também será condenado ao garrote.

Para assumir esta regra de conduta (que vale também para o intolerável futuro, que nos obriga a decidir dia-a-dia onde está o intolerável), uma sociedade deve estar pronta para muitas decisões, algumas duras, e deve agir solidariamente ao assumir qualquer responsabilidade. O que nos perturba como elemento obscuro no caso Priebke é que nos damos conta de que ainda estamos muito distantes dessa decisão. Os jovens, assim como os velhos, e não apenas os italianos. Todos lavaram as mãos: existem leis, deixemos esse desgraçado aos tribunais.

Naturalmente podemos dizer hoje que, depois da sentença de Roma, esta capacidade solidária de definir o intolerável está ainda mais distante. Mas já antes ela estava distante demais. E é isso que nos rói por dentro. Descobrirmo-nos (sem confessá-lo, porém) co-responsáveis.

Então não nos perguntemos por quem os sinos dobram.

Notas:
1. Cidade espanhola, no golfo de Valência. Aliada romana, foi destruída em 218 a.C. por Aníbal e reconstruída pelos romanos em 210 a.C (nota da tradutora).

Umberto Eco é escritor e ensaísta italiano, autor de "Obra Aberta", "O Nome da Rosa" e "O Pêndulo de Foucault", entre outros.

Tradução de Eliana Aguiar.

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