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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

O bug da memória

(publicado em 08/08/1999)

Da Folha de S.Paulo

O escritor e teórico da literatura Umberto Eco discute os limites cada vez mais elásticos da capacidade de esquecer e comenta o erro grosseiro dos criadores da informática



Pergunta - O que lhe inspira o "apocalipse informático", aquele que ameaça todos os computadores do planeta no 1º de janeiro de 2000?

Umberto Eco - O problema verdadeiro não é como sair disso. Viu-se que é uma questão de dinheiro. O que me submerge numa confusão infinita é como uma coisa dessas pôde acontecer. Como um erro tão grosseiro pôde ser cometido por gênios do quilate dos inventores da informática contemporânea, homens que transformaram radicalmente nossa maneira de pensar, de trabalhar, de comunicar? Não eram homens de Neanderthal, com uma idéia imprecisa do passado e do futuro, mas homens de nosso tempo, que conheciam a história, que tinham aprendido que os séculos tinham o hábito de se sucederem um após o outro. Como não se deram conta, não digo há 2.000 anos, mas há menos de 30 anos (30 anos!), que seu software não funcionaria mais depois do ano 2000! Só há duas explicações possíveis.

A primeira é que sabiam perfeitamente o que faziam; só que a preocupação deles não era refletir sobre os problemas das pessoas às vésperas do ano 2000, mas vender um produto útil nos anos 1980; a memória dos computadores da época sendo mais limitada do que hoje, dois algarismos ocupando menos memória que quatro, eles então produziram o bug sem se preocupar com o futuro. (...)

Pergunta - Ninguém imaginava que essas máquinas dobrariam o cabo do terceiro milênio... Mas qual é a sua segunda explicação?

Eco - Os informatas estavam de tal modo habituados a uma economia baseada na curta duração dos produtos que não pensavam que o que era vendido no início da década de 1980 estaria ainda em funcionamento em dezembro de 1999. Estavam de tal modo convencidos de que a renovação das máquinas se faria de dois em dois anos que não tiveram a bondade de resolver esse problema de calendário!

Mas, se de fato raciocinaram assim, cometeram um erro fatal. Esqueceram que todo o hardware e todo o software podem ser renovados, mas que a memória permanece sempre a mesma, quer se trate da data de Hiroshima ou do dia em que depositei cem francos em minha conta no banco. Desde a década de 1980 e até hoje um banco trocou de aparelhos e programas informáticos diversas vezes, mas cada novo programa teve de armazenar a memória precedente. Assim, desprezaram o fato de que a memória precedente estava marcada pelo sistema de codificação que eles tinham estabelecido na origem.

Pergunta - O sr. fala portanto de uma incapacidade de pensar o longo prazo. Não se poderá dizer que esta incapacidade sempre se verificou no passado?

Eco - Certamente. A maior besteira da história não foi a de Napoleão quando vendeu a Louisiana para financiar a expedição à Rússia? Se ele não tivesse vendido a Louisiana, os Estados Unidos seriam um país francófono! A Louisiana era além disso a região mais culta --e depois, na época, não se limitava ao Estado da Louisiana atual, mas ocupava todo o curso do Mississippi. Mas, nessa história, pode-se apenas criticar a Napoleão por não ter previsto que os Estados Unidos iam se tornar o país mais poderoso do mundo. O problema do bug do milênio me parece de uma qualidade diferente. Torna-se o sintoma de uma relação difícil entre a memória, como tesouro do passado, e o futuro, como aquele pelo qual nos sentimos responsáveis. Se há um problema no limiar do ano 2000, ele diz respeito à perda da memória histórica.

Pergunta - Como o sr. pode falar de perda da memória no momento mesmo em que a Internet põe à nossa disposição uma espécie de memória total da humanidade, uma imensa biblioteca virtual.

Eco - Eis então a ocasião de abordar o que defini como a crise atual da memória. Voltemos um instante à noção de progresso. Durante séculos tivemos a impressão de que nossa cultura se definia por uma acumulação ininterrupta de conhecimentos. Aprendemos o sistema solar de Ptolomeu, em seguida o de Galileu, depois o de Kepler etc. Mas isso é falso! A história das civilizações é uma sucessão de abismos onde toneladas de conhecimentos desaparecem!

Já os gregos foram incapazes de recuperar os conhecimentos matemáticos dos egípcios, o que causou o florescimento dos ocultismos que se fundamentam na idéia da recuperação de antigos saberes perdidos. Em seguida a Idade Média perdeu toda a ciência grega, todo o Platão menos um diálogo, e a metade de Aristóteles... Poderíamos continuar enumerando por muito tempo. Perceberíamos que em cada época, no decurso das eras, deixamos que se perdesse uma parte dos conhecimentos.

Pergunta - Está sugerindo que nós nos contentamos com redescobrir o que tinha sido esquecido.

Eco - Não, muito pelo contrário! Se bem que às vezes se possa recuperar certos fragmentos do saber perdido, a gente é o mais das vezes impotente. O que eu digo é que a memória social e cultural tem por função filtrar, e não apenas conservar. Às vezes aprovamos essas filtragens (não ficamos desolados por termos perdido as matemáticas mesopotâmicas, se é que existiram, salvo quando somos historiadores das ciências) e às vezes as consideramos como censuras, quer sejam obra da Inquisição, dos stalinistas ou dos sectários do politicamente correto americano, que procuram eliminar dos manuais de história tudo o que pode aparecer como um atentado a essa ou aquela minoria racial por exemplo. Em todo caso, a função da memória, seja individual ou coletiva, não é somente reter, mas também filtrar.

Pergunta - A cultura é então feita de memória, mas também de esquecimento...

Eco - Trata-se de uma dialética muito delicada, de um equilíbrio difícil. Comecemos pela memória. Não há sobrevivência sem memória. Se lhe aplicassem um golpe forte na cabeça e as áreas do cérebro que presidem à sua memória fossem prejudicadas, você não teria mais identidade. As sociedades sempre contaram com a conservação da memória pelas mesmas razões. A começar pelo ancião da tribo que à noite, debaixo de uma árvore, contava os feitos dos seus antepassados. Transmitia essas lendas às jovens gerações, e era assim que o grupo mantinha sua identidade.

Cada civilização encontra sua identidade quando um grande poeta compõe seu mito fundador. E quando, numa sociedade, uma censura qualquer apaga uma parte da memória, a sociedade conhece uma crise de identidade. Do mesmo modo, repito, quando por um excesso dos adeptos do politicamente correto se elimina dos manuais de história a viagem de Cristóvão Colombo porque falar de "descobrimento da América" seria dirigir insultos aos autóctones, a memória se acha amputada, alienada. A memória deve ser respeitada, mesmo quando é cruel.

Pergunta - Mas o sr. disse que a memória era a arte de conjugar a recordação e o esquecimento...

Eco - Sim. Recordar é selecionar. Se me lembrasse de tudo o que se passou ontem, eu seria como Funes, de Borges...

Pergunta - ... que se lembrava de cada folha de cada uma das árvores que viu em sua vida, de cada letra de cada frase de todos os livros que leu...

Eco - ... estaria perdido. Funes, você se lembra, não pode nem agir nem sequer se mexer... O que caracteriza a transmissão da memória é a filtragem. E, com a filtragem, a generalização. Acabo de voltar de uma viagem a Istambul, guardo em minha memória várias lembranças. Mas, se tentasse contar tudo o que me aconteceu durante essa viagem, verificaria que já esqueci a metade. Deixei esvaecer-se, e felizmente, tudo o que não me parecia digno de atenção. E generalizei, fiz abstrações. Conservo na memória detalhes, muito precisos, mas também impressões vagas. (...)

Pergunta - E é nisso que residia a doença de Funes: ele não podia eliminar nada.

Eco - Paremos aqui, porque a Internet, ou a World Wide Web, já é (ou será em breve) um imenso Funes. Até o presente a sociedade filtrava para nós, por intermédio dos manuais e das enciclopédias. Com a Web, todo o saber, toda a informação possível, mesmo a menos pertinente, está lá, a nossa disposição. Então pergunta-se: quem filtra? (...) Ampliamos nossa capacidade de estocagem da memória, mas não encontramos ainda o novo parâmetro de filtragem.

Pergunta - O sr. é partidário de uma reabilitação do esquecimento?

Eco - Numa certa medida, sim, mas você tocou num ponto delicado. Escrevi há algum tempo um pequeno ensaio meio brincalhão, meio sério (evoco também esse problema em "O Pêndulo de Foucault") sobre a possibilidade de pôr em prática uma "ars oblivionalis", uma arte do esquecimento. Percebeu-se muito cedo que era impossível inventar uma técnica para esquecer, porque é impossível esquecer voluntariamente. Há mesmo nas artes mnemotécnicas do Renascimento, na "Plutosophia" de Gesualdo, um capítulo sobre os meios de esquecer que é inteiramente risível.

Em geral o esquecimento é acidental e involuntário. Pode ser favorecido pelo excesso de informação. Se, no decorrer de uma recepção, você é apresentado a 50 pessoas, não tardará a esquecer seus nomes. Isso significa que o esquecimento está muito ligado ao acaso, que não pode ser programado. Se quero me lembrar do seu nome, começo por repeti-lo para mim mesmo várias vezes, e isso funcionará talvez. Mas, se quero esquecê-lo e repito intensamente que quero, estou seguro de que vou me lembrar dele. Moral da história: diante da Web você não dispõe nem de regra para selecionar a informação, nem de regra para esquecer o que não merece ser conservado. Só dispõe de certos critérios de seleção na medida em que está intelectualmente preparado para enfrentar a prova de surfar na Web. (...)

Pergunta - Sua posição não incita a tratar com indulgência uma certa censura ideológica, seja ela religiosa ou política?

Eco - Pessoalmente não aprovo esse tipo de censura. Mas permita-me explicar que, na ausência de um partido ou de uma igreja muito fortes, as pessoas recorrem às seitas para encontrar uma autoridade que se encarrega de filtrar as informações para elas. A liberdade de escolha entre uma multiplicidade de informações é positiva para os ricos (digo ricos do ponto de vista intelectual, aqueles que são capazes de discriminação crítica), mas não para os pobres. Parte-se para uma nova divisão de classes, não mais fundada no dinheiro, mas na capacidade de exercer seu espírito crítico e selecionar a informação.

Pergunta - Que soluções o sr. preconiza diante dessa globalização da memória?

Eco - Uma certa aprendizagem da seleção poderia constituir um primeiro elemento de resposta. Uma disciplina completamente nova, por inventar. Prevejo, entretanto, uma situação desconfortável para a qual devemos nos preparar. Diante de uma informação total, à la Funes, cada um faz sua escolha. Antes se sabia que existiam escolhas privilegiadas, digamos a escolha marxista, a escolha reacionária etc. Podia-se prever de que maneira a informação seria selecionada conforme o texto de referência fosse a Bíblia, a "Encyclopédie", de Diderot, "O Capital", o "Cours de Linguistique Générale"...

No presente cada um faz sua escolha de maneira totalmente inédita e imprevisível. Cinco bilhões de pessoas no planeta, cinco bilhões de filtragens ideológicas. O resultado corre o risco de ser uma sociedade composta de identidades individuais justapostas (o que me parece um perigo). Não sei se uma sociedade como essa teria chances de funcionar. Parece-me que um pouco de gregarismo é necessário...

Tradução de José Laurenio de Melo.

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