2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha
O corpo místico da linguagem
(publicado em 01/07/2001)
ALCIR PÉCORA
especial para a Folha
É difícil não fazer da resenha deste livro de Umberto Eco, de 1993, lançado agora no Brasil, uma pitoresca enumeração de nomes de autores pouco conhecidos, com teorias e cálculos anedóticos, que, desde o "Gênesis", trataram a questão da "língua perfeita". Vou tentar, porém, resistir a isso, sobretudo porque me intriga o propósito político ou, mais ainda, ideológico deste livro --"A Busca da Língua Perfeita"-- nas circunstâncias atuais dos acordos de cúpula que vão rascunhando a União Européia.
Assim, para tratar desses aspectos relevantes, será preciso ter em mente que o volume faz parte da coleção "The Making of Europe" (A Construção da Europa), editada em cinco línguas européias, por cinco das maiores editoras daquele continente (C.H. Beck, de Munique; Blackwell, de Oxford; Crítica, de Barcelona; Laterza, de Roma; Seuil, de Paris), tendo como editor o historiador Jacques Le Goff.
Quatro grupos
O seu curto prefácio fornece algumas pistas para entender o projeto. Afirma, por exemplo, que "a Europa constrói-se" e que a coleção quer "lançar luz" sobre os "pontos de força" dessa construção sem, todavia, "dissimular as dificuldades herdadas do passado" ou "esconder" as contradições vividas pelo continente em sua "tensão para a unidade". Considera que o seu "compromisso com o empreendimento europeu deve se realizar no conhecimento do passado, na sua totalidade e na perspectiva do futuro", especificando ainda que os ensaios da coleção têm "desejo de clareza" e de ser acessíveis a um "vasto público".
Pois bem, ao compor a sua história da busca da língua perfeita na Europa, Eco relata projetos situados em quatro grandes grupos.
O primeiro refere os programas de autores que se empenharam na redescoberta de línguas históricas, consideradas perfeitas em algum momento, seja por seu estatuto sagrado, anterior ao "confusio linguarum" narrado no episódio babélico ("Gênesis", 11, 1-10), seja por sua especial relação com o conceito de razão, tal como formulado no "Crátilo" platônico, isto é, na qualidade de língua capaz de nomear coisas, não apenas por leis ou convenções humanas ("nomos"), mas segundo a natureza de cada uma delas ("physis"). Sagrados seriam o hebraico, o egípcio e o chinês; racionais, o grego, o latim e, a partir do século 16, várias línguas nacionais que emularam o lugar ilustre.
O segundo grupo estudado por Eco é o dos projetos "monogenéticos" que avançam do final do século 18 ao longo do seguinte, devotados à reconstrução de uma língua originária, a "língua-mãe", gestada em laboratório, como o indo-europeu. Aqui, Franz Bopp, Friedrich e Wilhelm von Schlegel procuraram "aprofundar" as relações entre o sânscrito, o grego, o latim, o persa e, naturalmente, o próprio alemão.
A conclusão a que chegaram foi a de que a língua originária ("Ursprache") não podia ser o sânscrito, uma vez que também este, assim como toda uma "família de línguas", seria derivado de uma "protolíngua" a ser "idealmente reconstruída". Tal língua originária pensava-se, então, como documento arqueológico a ser desenterrado e deduzido na forma do mais perfeito ancestral da família das línguas arianas.
O terceiro grupo é o das línguas artificiais, que Eco subdivide segundo três finalidades distintas, sendo a principal a de exprimir perfeitamente as idéias, sem equívocos ou ausência de conexão com aspectos da realidade, como pretenderam as chamadas "línguas filosóficas", criadas sobretudo na Inglaterra, nos séculos 17 e 18, todas avessas ao latim, identificado como língua católica. A questão, aqui, era a de estabelecer um conjunto fechado de conteúdos, de modo que a cada um deles correspondesse univocamente um termo, favorecendo-se, na nitidez sígnica, a destruição dos "idola", as falsas idéias derivadas das fantasias humanas ou da tradição dogmática do catolicismo.
Outra finalidade das línguas artificiais examinadas por Eco era a de adquirirem máxima internacionalidade ou capacidade de expansão, como as "línguas a posteriori", que, por meio das chamadas "gramáticas lacônicas", buscavam simplificar e regularizar uma língua natural básica, tal como procurou fazer Jachim Faiguet com o francês. Outra finalidade de uma língua perfeita seria a máxima praticidade comunicativa, como supostamente teriam os dicionários multilíngues e as poligrafias universais, de que foi célebre exemplo a construída pelo jesuíta seiscentista Athanasius Kircher, a partir do esforço de decifrar a escrita hieroglífica. O quarto grupo de projetos examinado por Umberto Eco é o das "línguas mágicas", consideradas perfeitas pela expressividade mística e simbólica, tendo seu aprendizado valor semelhante ao de um mistério iniciático. O exemplo mais interessante é o da teoria dos sinais de Jakob Böhme, autor rosacruciano alemão, com influência na teosofia anglo-saxônica do século 18. Para Böhme e Paracelso cada elemento da natureza contém, na própria forma, uma referência às suas qualidades e poder ocultos, isto é, às chaves que abririam o código de uma "linguagem sensual, natural e essencial", que se perdeu na confusão babélica e que precisa ser readquirida mediante exercícios de decifração do iniciado. Um exemplo ainda anterior é o da língua com alfabeto visual-geométrico "primordial", concebido por John Dee no século 16.
O esquema que apresentei acima, entretanto, não dá ao leitor nem sequer uma idéia da quantidade de casos aludidos por Eco, os quais, no pequeno capítulo de conclusão, deságuam no debate da necessidade ou não de uma língua internacional a ser adotada pela União Européia hoje. Contudo a posição de Eco não é tão clara quanto prometia o prefácio de Le Goff, que, por sua vez, também se deixa ler, agora, com mais desconfiança.
A prolixidade com que Eco desfila os projetos ao longo de séculos reflui, ao final, para um quase laconismo. Retoma, então, Joseph-Marie Degérando, que, na virada para o século 19, criticou a idéia de uma única língua perfeita e reavaliou Babel positivamente, produzindo um elogio da diversidade das línguas, como "obstáculo aos projetos dos conquistadores", como impedimento do "contágio de corrupção entre os povos" e como preservação do "caráter nacional" de cada um deles.
Eco associa a esse programa a idéia de Walter Benjamin a propósito de uma "reine Sprache", isto é, de uma "convergência entre todas as línguas" numa "língua pura", sendo que cada uma delas, tomada como um todo, deveria ser entendida como "uma única realidade", não acessível por nenhuma delas singularmente, mas somente na "totalidade das suas intenções mutuamente complementares". A conclusão de Eco é, pois, a de que não há necessidade de nenhuma língua perfeita, a não ser aquela que se dá como congregação de todas as línguas-membros da Europa, sejam elas nacionais ou regionais, pois todas teriam parte, mantido seu "gênio" único, na realidade inteira da Europa.
Lido assim, há algo de politicamente correto na conclusão: respeito à diversidade, Babel é uma festa, e não uma maldição. Mas, relido, o que Eco faz é reinvestir de metafísica romântica a reunião ecumênica de todas as línguas em uma, perfeita, porquanto composta de diferentes complementares. Como se as várias línguas, não só distintas, mas díspares e contingentes, afinal, pudessem reencontrar, no novo projeto europeu, a destinação comum que as reúne, membros, e as totaliza, corpo místico em plenitude democrática. Como se, portanto, a fatura da nova ordem européia pudesse ser a da perfeita harmonia, para a qual estava vocacionada desde o princípio. Nesse ponto, não consigo deixar de ver o lado assustador dessa conclusão.
Pois com que pensamento cego deveríamos crer que, numa Europa cada vez mais dividida, enquanto se junta, as línguas todas, tanto as regionais quanto as nacionais, encaixar-se-iam mutuamente? Como sequer sonhar essa pureza de língua-rainha, quando, o mais das vezes, elas se negam e contradizem, ferozes, agônicas, e a união sublime dos tais gênios celebra menos a diferença que a unidade imposta à força? O projeto da perfeição da irmandade não será a adesão à simples mão visibilíssima do comércio? Aliás, para ficar nos trabalhos últimos de Eco, essa visada vertiginosa do passado europeu será exemplo do "conhecimento do passado, na sua totalidade", como prometia Le Goff no prefácio, ou de liquidação da história das idéias como trívia?
Alcir Pécora é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de "Máquina de Gêneros" (Edusp) e "Teatro do Sacramento" (Edusp/Editora da Unicamp).
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