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2. O Nome da Rosa - Textos publicados na Folha

Simplificação gera guerras santas

(publicado em 07/10/2001)

UMBERTO ECO

Que alguém tenha, nos últimos dias, pronunciado palavras inoportunas sobre a superioridade da cultura ocidental é um fato secundário. É secundário que alguém diga algo que considere correto, mas no momento errado, e é secundário que alguém acredite em algo injusto ou mesmo errado, porque o mundo está cheio de gente que acredita em coisas injustas e erradas, até mesmo um senhor que se chama Bin Laden, que talvez seja mais rico que o nosso primeiro-ministro, Silvio Berlusconi, e tenha estudado em universidades melhores. O que não é secundário --e que deve preocupar um pouco a todos-- é que expressões, ou mesmo artigos inteiros e apaixonados que de algum modo as legitimaram, tornem-se objeto de discussão geral, ocupem a mente dos jovens e talvez os induzam a conclusões passionais ditadas pela emoção do momento. Preocupo-me com os jovens porque a cabeça dos velhos não se muda mais.

As guerras de religiões que ensanguentaram o mundo por séculos nasceram de adesões passionais a contraposições simplistas, como nós e os outros, bons e maus, brancos e negros.

Se a cultura ocidental demonstrou-se fecunda (não só do Iluminismo até hoje, mas antes disso, quando o franciscano Roger Bacon nos convidava a aprender línguas porque temos algo a aprender, mesmo dos infiéis), é também porque esforçou-se para "dissolver", à luz de investigação e espírito crítico, simplificações danosas.

Naturalmente, não fez isso sempre, porque também fazem parte da história da cultura ocidental Hitler, que queimava os livros, condenava a arte "degenerada", matava os pertencentes às raças "inferiores", ou o fascismo, que me ensinava na escola a recitar "Deus amaldiçoe os ingleses", porque eram "o povo das cinco refeições" e, portanto, gulosos, inferiores ao italiano parco e espartano. Mas são os melhores aspectos de nossa cultura que devemos discutir com os jovens, de qualquer cor, se não quisermos que desabem novas torres nos dias que eles viverão depois de nós.

Um elemento de confusão é que, frequentemente, não se consegue compreender a diferença entre a identificação com as próprias raízes, o entendimento de quem tem outras raízes e o julgamento de o que é bem ou mal. Quanto às raízes, se me perguntassem se preferiria passar os anos de aposentadoria numa cidadezinha em Monferrato, na majestosa região do parque nacional de Abruzzo, ou nas doces colinas da região de Siena, escolheria Monferrato. Mas isso não permite que julgue outras regiões italianas como inferiores ao Piemonte.

Dessa forma, se, com suas palavras, o primeiro-ministro queria dizer que prefere viver em Arcore do que em Cabul e tratar-se num hospital milanês do que num hospital em Bagdá, eu estaria pronto para aderir à sua opinião (com a exceção de Arcore). E isso mesmo que dissessem que em Bagdá fundaram o hospital mais equipado do mundo: em Milão me sentiria mais em casa, e isso também influiria na minha capacidade de recuperação. As raízes podem ser até mais amplas do que as regionais ou nacionais. Preferiria viver em Limoges, por assim dizer, do que em Moscou. Mas como, Moscou não é uma cidade belíssima? Certamente, mas em Limoges eu entenderia a língua.

Em suma, cada um se identifica com a cultura em que cresceu, e os casos de transplante radical, que também existem, são uma minoria. Lawrence da Arábia até se vestia como os árabes, mas, no final, voltou para sua própria casa.



Passemos agora ao confronto de civilizações, porque é essa a questão. O Ocidente, seja apenas e frequentemente por razões de expansão econômica, foi curioso em relação a outras civilizações. Muitas vezes as liquidou com desprezo: os gregos chamavam de bárbaros, ou seja, de balbuciantes aqueles que não falavam sua língua, e, por isso, era como se aqueles não falassem em absoluto. Mas gregos mais maduros, como os estóicos (talvez porque alguns fossem de origem fenícia), bem cedo advertiram que os bárbaros usavam palavras diferentes das gregas, mas se referiam aos mesmos pensamentos. Marco Polo procurou descrever com grande respeito os usos e costumes chineses; os grandes mestres da tecnologia cristã medieval procuravam fazer com que fossem traduzidos os textos de filósofos, médicos e astrólogos árabes; os homens do Renascimento até exageraram na sua tentativa de recuperar a sabedoria oriental perdida, dos caldeus aos egípcios; Montesquieu procurou entender como um persa poderia ver os franceses; e os antropólogos modernos conduziram seus primeiros estudos sobre as relações dos salesianos, que, de fato, aproximavam-se dos Bororos para convertê-los, mas também para entender qual era o seu modo de pensar e de viver --talvez por lembrar que missionários de séculos antes não tinham conseguido entender as civilizações ameríndias e haviam, assim, encorajado seu extermínio.

Fiz menção aos antropólogos. Não falo nada de novo se lembro que, da metade do século 19 em diante, a antropologia cultural desenvolveu-se como tentativa de sanar o remorso do Ocidente em relação aos Outros, e especialmente àqueles Outros que eram considerados selvagens, sociedades sem história, povos primitivos. O Ocidente não fora sensível com os selvagens: havia-os "descoberto", tentado evangelizá-los, explorá-los e reduzir muitos à escravidão, aliás, com a ajuda dos árabes, porque os navios dos escravos eram descarregados em Nova Orleans por traficantes muçulmanos. A antropologia cultural (que pôde prosperar graças à expansão colonial) procurava reparar os pecados do colonialismo, mostrando que aquelas culturas "outras" eram justamente culturas, com suas crenças, seus ritos, seus hábitos, bastante razoáveis no contexto em que haviam se desenvolvido e absolutamente orgânicas, ou seja, se sustentavam sobre uma lógica interna. A tarefa do antropólogo cultural era a de demonstrar que existiam lógicas diferentes da ocidental, que deviam ser levadas a sério, não desprezadas e reprimidas.

Isso não queria dizer que os antropólogos, uma vez explicada a lógica dos Outros, decidissem viver como eles; pelo contrário, terminado seu trabalho de muitos anos além-mar, voltavam para passar uma serena velhice em Devonshire ou na Picardia. Mas, lendo seus livros, alguém poderia pensar que a antropologia cultural defende uma posição relativista e que afirma que uma cultura equivale a outra. Não me parece. No máximo, o antropólogo dizia que, enquanto os Outros estivessem em sua própria casa, era preciso respeitar seu modo de viver.



A verdadeira lição que se deve tirar da antropologia cultural é que, para dizer se uma cultura é superior a outra, é preciso fixar parâmetros. Uma coisa é dizer o que é uma cultura, outra é dizer com base em quais parâmetros a julgamos. Uma cultura pode ser descrita de forma aceitavelmente objetiva: essas pessoas comportam-se assim, crêem nos espíritos ou numa única divindade que deriva de si toda a natureza, unem-se em clãs de parentesco segundo essas regras, consideram que seja bonito transpassar o nariz com anéis (poderia ser uma descrição da cultura jovem no Ocidente), consideram impura a carne de porco, circuncidam-se, criam cães para colocá-los na panela em dias festivos ou, como ainda dizem os americanos sobre os franceses, comem rãs. O antropólogo obviamente sabe que a objetividade é sempre posta em crise por tantos fatores. No ano passado, estive em Dogon (Camarões) e perguntei a um garotinho se ele era muçulmano. Ele respondeu em francês: "Não, sou animista". Ora, acreditem, um animista não se define animista se não tiver pelo menos obtido um diploma na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris), e, portanto, a criança falava da própria cultura da forma como a haviam definido os antropólogos.

Crítica é arma contra desorientação

"A crítica dos parâmetros, que o Ocidente encoraja, faz entender como a questão é delicada"

Ninguém nunca consentiu realmente que os Outros estudassem os usos e costumes do Ocidente

A cultura ocidental elaborou a capacidade de desnudar livremente suas contradições

Os antropólogos africanos contavam-me que, quando chega um antropólogo europeu, os Dogon, a essa altura muito acostumados, contam-lhe aquilo que escreveu há muitos anos um antropólogo, Griaule (a quem, porém, segundo afirmavam os amigos africanos cultos, os informantes indígenas tinham contado coisas bastante desconexas que, depois, o antropólogo reuniu num sistema fascinante, mas de autenticidade duvidosa). Todavia, descontando todos os mal-entendidos possíveis de uma outra cultura, pode-se ter uma descrição bastante neutra.

Os parâmetros de julgamento são outra coisa, dependem de nossas raízes, de nossas preferências, de nossos hábitos, de nossas paixões, de um sistema de valores nosso. Por exemplo: será que julgamos ser um valor prolongar a média de expectativa de vida de 40 para 80 anos? Pessoalmente acredito que sim, mas muitos místicos poderiam dizer-me que, entre um devasso que viveu 80 anos e são Luiz Gonzaga, que viveu 23, o segundo teve uma vida mais plena. Mas admitamos que o prolongamento da vida seja um valor: se fosse assim, a medicina e a ciência ocidentais certamente seriam superiores a muitos saberes e práticas médicas.

Acreditamos que o desenvolvimento tecnológico, a expansão dos comércios, a rapidez dos transportes sejam um valor? Muitíssimos pensam assim e têm o direito de julgar superior a nossa civilização tecnológica. Mas, justo no interior do mundo ocidental, há aqueles que consideram um valor fundamental uma vida em harmonia com um ambiente não corrompido e, por isso, estão preparados para renunciar a aviões, automóveis e geladeiras para confeccionar cestas e mover-se a pé de vilarejo em vilarejo, desde que não haja buraco na camada de ozônio. E, dessa forma, vejam que, para definir uma cultura como melhor do que a outra, não basta descrevê-la (como faz o antropólogo). É preciso referir-se a um sistema de valores aos quais pensamos não poder renunciar. Só então podemos dizer que a nossa cultura, para nós, é melhor.



Nestes dias, assistiu-se a várias defesas de culturas diferentes com base em parâmetros discutíveis. Outro dia, lia em um grande jornal uma carta na qual se perguntava sarcasticamente como os Prêmios Nobel vão só para os ocidentais e não para os orientais. Deixando de lado que se tratava de um ignorante que não sabia quantos Prêmios Nobel de Literatura foram para pessoas de pele negra e grandes escritores islâmicos, deixando de lado que o Prêmio Nobel de Física de 1979 foi para um paquistanês que se chamava Abdus Salam, afirmar que os reconhecimentos pela ciência vão naturalmente para quem trabalha no âmbito da ciência ocidental é descobrir a água quente, porque ninguém jamais colocou em dúvida que a ciência e a tecnologia ocidentais sejam hoje a vanguarda. A vanguarda de quê? Da ciência e da tecnologia. Quão absoluto é o parâmetro de desenvolvimento tecnológico? O Paquistão tem a bomba atômica, e a Itália, não. Por isso nós somos uma civilização inferior? Melhor viver em Islamabad do que em Arcore?

Os defensores do diálogo, que se referem ao mundo islâmico lembrando que ele deu homens como Avicena (que, aliás, nasceu em Bukhara, não muito distante do Afeganistão) e Averróis --e é uma pena que sejam citados sempre esses dois, como se fossem os únicos, e não se fale de Al Kindi, Avenpace, Avicebron, Ibn Tufayl ou daquele grande historiador do século 14 que foi Ibn Khaldun, que o Ocidente até mesmo considera o precursor das ciências sociais. Recordam-nos que os árabes da Espanha cultivavam a geografia, a astronomia, a matemática e a medicina, enquanto o mundo cristão estava bem atrás. Todas coisas muito verdadeiras, mas esses não são argumentos, porque, raciocinando assim, dever-se-ia dizer que Vinci, nobre município toscano, é superior a Nova York, porque, em Vinci, nascia Leonardo quando em Manhattan quatro índios sentados no chão esperaram mais de 150 anos até que chegassem os holandeses para comprar-lhes a península inteira por US$ 24. E, ao contrário, sem querer ofender ninguém, hoje o centro do mundo é Nova York, e não Vinci. As coisas mudam. Não adianta lembrar que os árabes da Espanha eram muito tolerantes com cristãos e judeus, enquanto do nosso lado erguiam-se os guetos, ou que Saladino, quando reconquistou Jerusalém, foi mais misericordioso com os cristãos do que eles haviam sido com os sarracenos quando a conquistaram. São todas coisas exatas, mas, no mundo islâmico, existem hoje regimes fundamentalistas e teocráticos que os cristãos não toleram, e Bin Laden não foi misericordioso com Nova York. A Bactriana foi um cruzamento de grandes civilizações, mas hoje os membros do Taleban derrubam as estátuas de Buda a tiros de canhão. Por outro lado, os franceses fizeram o massacre da Noite de São Bartolomeu, mas isso não autoriza ninguém a dizer que hoje sejam bárbaros. Não incomodemos a história, porque ela é uma faca de dois gumes. Os turcos empalavam (e isto é mau), mas os bizantinos ortodoxos arrancavam os olhos dos parentes perigosos, e os católicos queimaram Giordano Bruno; os piratas sarracenos faziam coisas bestiais, mas os corsários de sua majestade britânica, com um tanto de licença, tocavam fogo nas colônias espanholas no Caribe; Bin Laden e Saddam Hussein são inimigos ferozes da civilização ocidental, mas dentro da civilização ocidental tivemos senhores que se chamavam Hitler ou Stálin (Stálin era tão mau que sempre foi definido como oriental, ainda que tivesse estudado em um seminário e lido Marx).

Não, o problema dos parâmetros não se coloca em chave histórica, mas, sim, em chave contemporânea. Agora, uma das coisas louváveis das culturas ocidentais (livres e pluralistas, e esses são os valores que consideramos irrenunciáveis) é que perceberam há um bom tempo que a mesma pessoa pode ser levada a manobrar parâmetros diferentes e mutualmente contraditórios sobre questões diferentes. Por exemplo, considera-se um bem o prolongamento da vida e um mal a poluição atmosférica, mas sabemos bem que, para termos os laboratórios onde se estuda o prolongamento da vida, é preciso ter um sistema de comunicação e um fornecimento de energia que, possivelmente, por sua vez, produza poluição. A cultura ocidental elaborou a capacidade de desnudar livremente suas próprias contradições. Pode ser que não as resolva, mas sabe que existem e o diz. No fim das contas, todo o debate a favor e contra a globalização está aqui, com exceção dos fascistas, que destroem tudo: como é suportável uma cota de globalização positiva, evitando os riscos e as injustiças da globalização perversa, como se pode prolongar a vida mesmo dos milhões de africanos que morrem de Aids (e, ao mesmo tempo, alongar a nossa) sem aceitar uma economia planetária que faz com que os doentes de Aids morram de fome e com que nós engulamos comidas contaminadas? Mas, justamente essa crítica dos parâmetros, que o Ocidente persegue e encoraja, nos faz entender como a questão dos parâmetros é delicada. É justo e civil proteger o sigilo bancário? Muitos consideram que sim. Mas e se esse sigilo permitir aos terroristas manter seu dinheiro na cidade de Londres? E então, a defesa da privacidade é um valor positivo ou dúbio? Nós colocamos nossos parâmetros continuamente em discussão. O mundo ocidental o faz a tal ponto que consente que os próprios cidadãos recusem como positivo o parâmetro de desenvolvimento tecnológico e se tornem budistas ou passem a viver em comunidades onde não se usam pneus, nem mesmo para as carroças a cavalo. A escola deve ensinar a analisar e a discutir os parâmetros sobre os quais se sustentam nossas afirmações passionais.



O problema que a antropologia cultural não resolveu é o do que fazer quando o membro de uma cultura, cujos princípios aprendemos até mesmo a respeitar, vem viver na nossa casa. Na realidade, a maior parte das reações racistas no Ocidente não se deve ao fato de que os animistas vivam em Mali (basta que fiquem em sua própria casa, diz, de fato, a Liga Norte), mas que os animistas estejam vivendo conosco. Deixem passar os animistas ou quem quiser rezar em direção a Meca, mas e se quiserem vestir o chador, se quiserem circuncidar suas meninas, se (como ocorre em certas seitas ocidentais) recusarem transfusões de sangue as suas crianças enfermas, se o último canibal da Nova Guiné (admitindo que ainda exista) quiser emigrar para cá e fazer pelo menos um jovem assado a cada domingo? Em relação ao canibal, estamos todos de acordo, colocamo-lo na cadeia (principalmente porque não são 1 milhão); em relação às meninas que vão à escola com o chador, não vejo por que transformar isso em uma tragédia se é assim que elas gostam; em relação à circuncisão das meninas, porém, o debate está aberto (há até mesmo quem seja tão tolerante a ponto de sugerir que ela seja administrada pelas unidades sanitárias locais, assim a higiene está salva), mas o que fazemos, por exemplo, com a solicitação de que mulheres muçulmanas possam ser fotografadas com o véu no passaporte? Temos leis, iguais para todos, que estabelecem critérios de identificação dos cidadãos, e não acredito que se possa ignorá-las. Quando visitei uma mesquita tirei meus sapatos, porque respeitava as leis e os usos do país anfitrião. Como resolvemos a questão da foto com véu? Creio que nesses casos se possa negociar. No fundo, as fotos dos passaportes são sempre pouco fiéis e servem para aquilo que servem. Que se estudem cartões magnéticos que reajam à impressão digital. Quem quiser esse tratamento privilegiado, que pague a eventual diferença de preço. E se, depois, essas mulheres frequentarem as nossas escolas, poderão também vir a conhecer direitos que não acreditavam ter, assim como muitos ocidentais foram a escolas do Alcorão e livremente decidiram se tornar muçulmanos. Refletir sobre nossos parâmetros também significa decidir que estamos preparados para tolerar tudo, mas que certas coisas são, para nós, intoleráveis.



O Ocidente dedicou recursos e energia para estudar usos e costumes dos Outros, mas ninguém nunca consentiu realmente que os Outros estudassem usos e costumes do Ocidente, a não ser nas escolas mantidas pelos brancos além-mar, ou consentindo aos Outros mais ricos que fossem estudar em Oxford ou em Paris --depois se vê o que acontece, estudam no Ocidente e voltam para casa para organizar movimentos fundamentalistas, porque sentem-se ligados a seus compatriotas, sentimento que os estudos não podem proporcionar (a história é, contudo, velha, e, pela independência da Índia, lutaram intelectuais que tinham estudado com os ingleses).

Antigos viajantes árabes e chineses tinham estudado um pouco dos países onde o sol se põe, mas são coisas sobre as quais conhecemos bem pouco. Quantos antropólogos africanos ou chineses vieram estudar no Ocidente para descrevê-lo não só aos próprios concidadãos, mas também a nós, ou seja, contar-nos como eles nos vêem? Existe há alguns anos uma organização internacional chamada Transcultura, que luta por uma "antropologia alternativa". Levou estudiosos africanos que nunca tinham estado no Ocidente a descrever o interior da França e a sociedade bolonhesa, e asseguro que, quando nós europeus lemos que duas das observações mais espantadas diziam respeito ao fato de os europeus levarem seus cachorros para passear e, à beira-mar, ficarem nus --bem, digo, o olhar recíproco começou a funcionar de ambos os lados, e nasceram discussões interessantes.

Neste momento, tendo em vista um congresso que acontecerá em Bruxelas (Bélgica) em novembro, três chineses --um filósofo, um antropólogo e um artista-- estão terminando sua viagem de Marco Polo ao contrário, exceto que, em vez de se limitarem a escrever seu diário, gravam e filmam. No final, não sei o que suas observações poderão explicar aos chineses, mas sei o que poderão nos explicar.

Imaginem que fundamentalistas muçulmanos sejam convidados a realizar estudos sobre o fundamentalismo cristão (desta vez não são os católicos, são os protestantes americanos, mais fanáticos que um aiatolá, que procuram retirar das escolas qualquer referência ao evolucionismo de Charles Darwin).

Bem, creio que o estudo antropológico do fundamentalismo dos outros possa servir para entender melhor a natureza do seu próprio. Venham estudar o nosso conceito de guerra santa (poderia aconselhar muitos escritos interessantes, mesmo recentes) e talvez vejam com olhar mais crítico a idéia da guerra santa em sua casa. No fundo, nós ocidentais refletimos sobre os limites do nosso próprio modo de pensar descrevendo "la pensée sauvage" (o pensamento selvagem).



Um dos valores sobre os quais a civilização ocidental fala muito é o da aceitação das diferenças. Teoricamente, estamos todos de acordo: é politicamente correto dizer em público que alguém é gay, mas, depois, em casa, se diz, rindo, que é um viado. Como se faz para ensinar a aceitação da diferença? A Academie Universelle des Cultures colocou no ar um site onde estão sendo elaborados materiais sobre diversos temas (cor, religião, usos e costumes e assim por diante) para os educadores de qualquer país que queiram ensinar a seus alunos como aceitar aqueles que são diferentes deles. Acima de tudo, decidiu-se não dizer mentiras às crianças, afirmando que todos somos iguais. As crianças percebem muito bem que alguns vizinhos de casa ou colegas de escola não são iguais a eles, têm uma pele de cor diferente, os olhos puxados, os cabelos mais crespos ou mais lisos, comem coisas estranhas, não fazem a primeira comunhão. Nem basta dizer que são todos filhos de Deus, porque os animais também são filhos de Deus e ainda assim os garotos nunca viram uma cabra na frente da sala de aula ensinando ortografia. Por isso é preciso dizer às crianças que os seres humanos são muito diferentes entre si e explicar bem em que são diferentes, para depois mostrar que essa diversidade pode ser uma fonte de riqueza. O professor de uma cidade italiana deveria ajudar suas crianças italianas a entender por que outros garotos pregam uma divindade diferente ou tocam uma música que não parece rock. Naturalmente, o mesmo deve fazer um educador chinês com as crianças chinesas que vivem ao lado de uma comunidade cristã. O passo seguinte será mostrar que há algo em comum entre a nossa e a sua música, e que também o Deus deles recomenda algumas coisas boas.

Objeções possíveis: nós o faremos em Florença, mas depois eles o farão também em Cabul? Bem, essa objeção está o mais distante possível dos valores da civilização ocidental. Nós somos de uma civilização pluralista porque consentimos que, na nossa casa, sejam construídas mesquitas, e não podemos renunciar a isso só porque em Cabul colocam na prisão propagandistas cristãos. Se o fizéssemos, também nos tornaríamos membros do Taleban. O parâmetro de tolerância da diferença é certamente um dos mais fortes e menos discutíveis, e nós julgamos madura a nossa cultura porque ela sabe tolerar a diferença e julgamos bárbaros aqueles que pertencem a nossa cultura e não a toleram. Ponto e basta. De outra forma, seria como se decidíssemos que, se numa certa área do globo ainda existem canibais, nós vamos comê-los, para que assim aprendam.

Esperamos que, visto que permitimos mesquitas na nossa casa, um dia haja igrejas cristãs ou não se bombardeiem os Budas na casa deles. Isso se acreditarmos na bondade de nossos parâmetros.



É muita a confusão sob o céu. Destes tempos surgem coisas muito curiosas. Parece que a defesa dos valores do Ocidente se tornou uma bandeira da direita, enquanto a esquerda é, como sempre, simpatizante islâmica. Agora, deixando de lado o fato de que existe uma direita e um catolicismo partidário de um integrismo decididamente terceiro-mundista, simpatizante dos árabes e assim por diante, não se percebe um fenômeno histórico que está sob os olhos de todos. A defesa dos valores da ciência, do desenvolvimento tecnológico e da cultura ocidental moderna em geral foi sempre uma característica das alas laicas e progressistas. Não somente, mas todos os regimes comunistas referiram-se a uma ideologia do progresso tecnológico e científico. O Manifesto Comunista de 1848 começa com um elogio desabafado da expansão burguesa; Marx não diz que é preciso inverter a rota e passar ao modo de produção asiático, diz apenas que os proletários devem se apropriar desses valores e desses sucessos.

Contrário foi sempre o pensamento reacionário (no sentido mais nobre do termo) --pelo menos começando com a negação da Revolução Francesa--, que se opôs à ideologia laica do progresso afirmando que se devia voltar aos valores da Tradição. Só alguns grupos neonazistas têm uma idéia mítica do Ocidente e estariam prontos para degolar os muçulmanos em Stonehenge. Os mais sérios pensadores da Tradição (dentre os quais muitos também votam na Aliança Nacional, pós-fascista) sempre se voltaram, mais do que para ritos e mitos dos povos primitivos ou para a lição budista, para o próprio islã, como fonte ainda atual de espiritualidade alternativa. Sempre estiveram ali a nos lembrar que não somos superiores, mas, sim, diminuídos pela ideologia do progresso, e que devemos ir procurar a verdade entre os místicos sufis ou entre os dervixes dançantes. E essas coisas não as digo eu, sempre as disseram eles. Basta ir a uma livraria e procurar nas prateleiras corretas. Nesse sentido, na direita está se abrindo uma curiosa rachadura. Mas talvez seja somente um sinal de que, nos momentos de grande desorientação (e certamente vivemos um desses), ninguém sabe mais de que lado está. Entretanto, é justamente nos momentos de desorientação que é preciso saber usar a arma da análise e da crítica, das nossas superstições e das dos outros. Espero que essas coisas se discutam nas escolas e não apenas nas coletivas de jornalistas.

Tradução de Gustavo Steinberg

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Lançado: 21/12


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